literatura
Reading (1919)
Nicolae Vermont
45 x 34 cm
terça-feira, 28 de abril de 2020
Fragmentos
Plena
Completa
Perco-me
Em ti
Retorno?
O que volta
Já não sou eu
Mas parte de mim
E parte de ti
A outra parte?
Fica no caminho
Entre o tu e o eu
E ainda fica contigo...
Talvez o melhor de mim!
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
A Observadora
Saia nas ruas e ficava a observar as pessoas. Parava em um café, sentava-se, pedia um cafezinho (apenas para disfarçar e poder ficar por aí) e ficava a observar as gentes que chegavam, que se sentavam nas mesas, que andavam na rua em frente. Quando chegava um casal, observava. Dependendo do jeito como chegavam, sabia se eram namorados, casados ou amantes, escondendo-se ali em encontros furtivos. Criava assim mentalmente histórias de vida, situações, dificuldades, facilidades. Ouvia algumas coisas, mas, na maioria das vezes, gostava mesmo é de criar as histórias sem ouvir nada. Muitas vezes as histórias que “criava” observando as diferentes situações impressionantemente mostravam-se muito próximas da realidade. Chegavam-lhe informações, em momentos díspares, mais distantes, e ficava a se perguntar como tinha chegado tão perto. Perguntava-se se era “vidente”, se possuía algum poder paranormal. Será?
O certo é que suas montagens tão humanas aproximavam-se da realidade e não eram retratos fantasiosos de um observador entediado com a vida.
Passou a cuidar mais de si. As histórias dos outros e da observação de seu fazer passaram a ficar mais verídicas, mais substanciais. Passou a escrever sobre elas, colocando temperos distintos de suas percepções, para não constranger ninguém e manter-se em um lugar ético. Assim escreve belas histórias, alegra a vida dos leitores e exercita seu fascínio pelo humano.
As histórias são formas de estabelecer relações entre a ficção e a realidade e dar subsídios aos leitores não só do prazer da leitura, mas também de vivências tão parecidas com suas vidas, com suas angústias, com suas tristezas e, por que não, suas alegrias. Identificam-se e vivem melhor.
Como a história que ela lançou no jornal local, em forma de crônica, do rapaz que se encontrou com a moça no café. Estava ele a esperar em uma mesa, fumando e tomando um cafezinho. Logo, chega a moça. Ele se levanta e a recebe com alegria. Conversam, quando toca o celular. O rapaz se afasta para atender. Por quê? Era outra mulher? Certamente tinha algo a esconder dela. E o olhar que ela tinha ao chegar, de esperança e alegria, se desfez. Agora uma nuvem de tristeza o cobria. Ela se levanta e sai. Decide voltar. Senta-se novamente e aguarda. O telefonema se encerra, mas a alegria e o momento pleno de promessas se esvai. O que se percebe são jogos de palavras. Ela fuma sem parar. Percebe-se que tenta impressionar e mostrar um ar de superioridade que está longe de ter. Ele está mais calado, mas percebe-se também que esperava mais. Mas, por quê não soube fazer por acontecer? Como seria fácil consertar as coisas, auxiliá-los a sair daí felizes e reconstruir talvez uma relação que se perdeu... mas, não se pode interferir. Deve-se manter afastados. Assim, saem os dois, depois de uma hora de conversas superficiais, em que um tenta mostrar mais superioridade que o outro, mais auto-controle. Podiam sair de mãos dadas, beijando-se? Mas não aconteceu. Saíram com orgulho... e infelizes.
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
Amar
Fragmentos de mim
Que se juntam a ti
e formam um.
Será?
O um não vem de fragmentos
Vem de inteiros
Plenos de si
Para no outro
Completarem-se
O que lhes falta.
A isso chamamos AMOR
Conseguimos chegar a ele?
...
Cada vez menos...
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
Ainda sobre Ética……divagações!!!
Seleção para Doutorado, pós-doutorado (PHD, que é isso?). Questionam-me sobre minha tese, proficiências, defesa de projeto (que é isso?), sobre minha assinatura, o que penso (penso?), o que sou (sou?)....educação?......tenho uma ideia....
Fala-se muito: “a educação é a solução....as respostas virão pela educação....”....o que mesmo virá pela educação? ....o quê deveria vir pela educação?...tenho algumas ideias...
Na seleção, digo: “como esperar algo da educação, quando professores (que deveriam ser os porta-vozes maiores da educação não portam o mínimo, a ética necessária à vida?” (sic)...
Estabeleço minha digressão sobre minha tão famosa tese: Se em sua desconstrução, Derridá, in Estados da Alma da Psicanálise, nos diz que em um universo em que vige a crueldade o que deveria nos responder, o saber (?) que deveria pensar (?) respostas seria a psicanálise, já não sei....Vivemos em um mundo onde, diferentemente (Lacan, em um de seus textos propõe que o uso do sufixo “mente” de alguma forma estabelece que aí há mentira, será?) da época de Freud, onde vigia a neurose, hoje o que vige no social é a psicose e a perversão. Psicose, junção mãe-filho, não corte, não separação, não possibilidade de sujeito pleno (que será isso, mesmo?). Perversão, bem, pouco se sabe sobre essa estrutura de difícil diagnóstico. Por quê?...ora, simplesmente porque o perverso dificilmente procura tratamento clínico, ele goza com o ato, ele age, lá onde o neurótico fantasia, ele procura tratamento para goza com a dor daquele que o escuta, seu gozo está no ato, na dor causada ao outro durante o ato e, em clínica, na dor percebida daquele que escuta o que diz de seu ato...que complicação, e que triste, pois o sujeito (?), além de mau (?), ainda tem na dor do outro suporte para mais dor.....se isso não é um mundo às avessas, não sei mais o que é ser avesso...
O neurótico sofre as dores desse mundo ”invertido”...mas ainda temos neuróticos?....sei lá....Escrevo este texto, tendo ao meu lado uma cadelinha para lá de dengosa, jogada a dormir e se sacudir ao meu lado, roncando, quase um ronronar de gato em seu sonho/sono e um pássaro (que me acordou e não me deixa dormir) a cantar/urrar (?) de dor, talvez trancado em algum apartamento deste prédio, em alguma gaiola, ou machucado no topo, sei lá, mas seu grito é ensurdecedor (para mim), sempre o mesmo lamento no posto de luz (um grande retângulo entre os apartamentos no prédio)...Dor é o que ele me diz. Como ajudá-lo se não consigo nem enxergá-lo....Isso é o neurótico frente à perversão. Sente dor, dor doída, dor insuportável, e está de mãos amarradas....
E aí, me pergunto: “a ética da psicanálise, centrada na ética do desejo, responde por tanta dor?”. Penso que não. Como libertar, como estabelecer, proporcionar a mínima liberdade num ambiente de hostilidade crescente e, talvez, de retorno civilizatório impossível? Muitas perguntas, será que tenho respostas?...Sei lá!...Quando o homem (?) mantém um pássaro aprisionado e não consegue ouvi-lo urrar de dor, em um canto repetitivo, porque doloroso, e libertá-lo para a vida, para seu vôo maravilhoso a nos alegrar só em vê-lo e invejá-lo, já não sei, mas vejamos...
Se, junto com Derridá, acreditamos que neste mundo às avessas o que pode responder por mudanças (?) é a psicanálise, penso que a psicanálise pode, deve fazer, para começar, uma reversão em sua tão estabelecida ética, dogmática, fechada, e partir para uma nova ética, talvez a ética para nosso tempo: desejo de ética....Aí entramos em outro campo de saber, qual será?
O único que responde, pode responder, a uma demanda dessa envergadura (palavra antiga, parece velha como o tempo), a educação....
Essa está mais perdida que nós em nosso tempo (desde quando mesmo?).A educação responde pelo “desejo de ética”, porque desejar a ética, desejar ser ético, antecede a tudo, antecede ao próprio homem, segundo um sábio aluno que me completou em minha digressão, questionamento a outra aluna, nesta semana, quando da apresentação de seu trabalho buscando responder, perguntar-se, sobre desenvolvimento humano, investimentos em pesquisa(?), investimentos em um mundo pleno de fome, de dor, de drogas, de violência,...., e buscando investimentos acadêmicos, aos reis do castelo, para sustentar sua busca por respostas ao nosso mundo...
Saio às ruas, caminho e só o que observo, mesmo em minha cidade natal, rica, muito dinheiro, muito poder, muito poderio empresarial, muitas possibilidades, físicas, materiais,....,nada de coração....essa minha cidade rica cidade (já fiz um trocadilho!)....já tem homens a dormir em suas ruas....mulheres também, mas isso é outra questão, por que essas ficam pouco tempo, se drogam, prostituem-se, tiram a roupa em público e.....são encaminhadas à capital, para serem escondidas em algum hospital psiquiátrico, “escutadas” (?) em alguma instância de saberes que já não se sabem e não mais respondem ao juramento de Hipócrates....muitos questionamentos...meu pensamento dispersa demais.....voltemos a centrar-nos, por favor?...
A educação responde, se é que responde, porque, num tempo em que não temos tempo sequer para olhar os seres que geramos , a natureza que destruímos, os bens que precisamos (?), a saúde que ansiamos, não temos esse tempo para “educar” as crianças, para amá-las suficientemente (mente nova(mente)), amá-las tanto para dispendermos o tempo necessário (será que precisa de tempo, ou de espaço?) para educá-las...Sobrará, já sobra, para quem?....ora, para a educação formal, para o professor...esse mesmo, que também já não consegue educar seus próprios filhos, talvez nem possa tê-los, pois como sustentá-los com os salários que recebe?...claro, que aqui também temos que “descontar” esquemas corporativos, de classe, da classe que, sob certo prisma não é tão pobre quanto se diz.....
Proposta inicial e talvez utópica, de uma cabeça ingênua, porque dizia eu em minha entrevista, como professores podem incutir desejo educativo de ética, se nem eles a portam?...se nem eles sabem o que é isso?.....
E aí, entro em outro questionamento de outro aluno, nesta mesma aula: mas, professora (fico me perguntando, escrevendo isso, sempre viajo para for a e para outro lugar, quando falo ou quando escrevo!- lia em um uma comunidade frequentada por um aluno, que professor só “licenciado”, professor é só o que porta o “título” de uma licenciatura- como minhas graduações são hipoteticamente técnicas, de bacharel, talvez não seja professor, devo me restringir ao consultório, ao técnico- que será isso?- ainda: mestrado, doutorado, diziam-me, ou os acadêmicos, senhores do castelo, me diziam que ambos fornecem subsídios, possibilidades para ser professor, da academia, instituição criada pelos gregos, de discussões sobre o saber, de fazer conhecimento, fazer, já é uma redundância aqui, pois conhecimento é a própria episteme grega, a ação sobre o mundo, por excelência- logo, talvez nem professor eu seja...sei lá o que sou, SOU?), o que é ética?....às vezes também me atrapalho, me confundo, não sei responder, leio autores, mas sei o que sinto....e busco entender....será que consigo explicar, será que consigo escrever o que é isso, a ética?....e, o mais importante, será que me farei entender, desse sentimento que me abarca e me arrasa?....mas me dá muita paz.....
Há muito tempo, ouvi um senhor que considerava muito sábio, um grande pai amoroso (hoje já não sei, as coisas mudam, os sentimentos vão se modificando, conforme as ações das pessoas, isso é triste e bom também, sei lá, vamos ver a evolução dos fatos!). Esse sábio senhor de um castelo, propunha-se a falar em um ambiente público, de grandes edis, que buscavam montar um “código de ética parlamentar”, que ética, vem do grego “ethos” e, explica ele, o que me fascina a ouvi-lo, deriva de um termo grego para um lugar, lugar singular da casa em que as famílias gregas montavam um altar, com objetos de seus antepassados, que os lembrassem. Quando surgia uma questão de difícil solução, reuniam-se os membros da família e giravam ao redor do altar a buscar uma solução que respondesse à questão. Assim a ação que tomariam seria uma resposta que honrasse (ouvi outro dia um ser, que só pode ser verdadeiramente sábio e lindo me dizer (?) que sua luta não é por justiça ou liberdade, porque não questões complicadas de serem atingidas, mas que lutava pela honra – será que sonhei com ele a me falar isso?) todos os antepassados e todos os que viessem depois. Que resposta seria, hem? Uma ação que honrasse a família, que não desonrasse nenhum membro que faz parte de meu DNA, que porta e portará meu sangue, é muita gente...bem, a isso chamaram ética, dizia meu sábio “professor”. Não sei hoje se ele é professor, mas a mim ensinou muito, talvez até sobre dor....
Depois dos gregos, vimos alguns falando de ética, mas o mais famoso de nosso tempo, Kant, estabelece que a ética, a moral deveria centrar-se em sua famosa máxima: ”age de tal forma que tua ação valha como uma lei universal”. Se a ética grega já é difícil, complicada de entender-se, essa então, muito difícil, pois minha ação, pelo que entendo, deve se pautar ao bem da maioria, deve responder pelo maior grupo, pelo maior número de pessoas... Na verdade, entende-se melhor o pressuposto kantiano lendo Benjamim, que nos diz: “age de tal forma que tua ação vise sempre a um fim, nunca como meio”. Aí sim temos em Kant o que os gregos também nos ensinaram por ética!!!!!
Entendo aqui e distingo ética, do ethos grego, poético, que me abarca, que me determina, que determina os meus, que diz de mim, que sabe de mim e que responderá por mim em todas as instâncias de minha “vida”, de minha história de moral (origem latina, numa tentativa talvez, dos romanos em estabelecerem uma palavra sua que traduzisse o ethos grego, nos costumes), moral que diz do meu fazer, do meu agir, a partir do estabelecimento de meus atos no mundo, da minha ação, para o bem, que responde pela maioria, para Kant....
Gostava de pensar-me grega, de seguir os primeiros(?), de “fazer” meu agir honrando a todos que vieram antes de mim e a todos que virão (será que virão?), até porque, dizia eu, não quero que minha ação seja válida apenas para uma maioria, quero pensar que toda minha ação seja válida a todos, que não prejudique ninguém, que toda minha ação seja para o bem das pessoas, de todas as pessoas, não quero ser kantiana, quero ser socrática, sou socrática! Mas, ao ler Hannah Arendt em suas belíssimas palavras (além de pensadora parece-me uma pessoa absolutamente espiritualizada, linda lá onde precisa sê-lo, dentro!), descubro que Kant segundo ela, e deve estar certa, claro, quem sou eu para duvidá-lo?, assim como Sócrates, em seu dois em um (penso comigo, como se fosse dois, faço digressões comigo mesmo, me questiono, faço a dialética, a maiêutica comigo mesmo, no silêncio e busco respostas às minhas indagações, dentro de mim, eu comigo – assim, dois, pergunto-me e respondo-me, ampliando o que sei, evoluindo (?)) provavelmente, porque não estamos neles para saber, já tinham a ética presente em si antes de estabelecerem qualquer pensamento, qualquer saber, qualquer dado, então antes da ação kantiana, o ser transcendental já é, já porta a ética, assim parece-me, fica mais fácil pensar em uma ação que valha para a maioria. Ela já porta em si o fazer ético, ela já tem estabelecido antes que o sujeito da ação carregará, meu querido interlocutor do sonho, a honra que tanto buscamos. Toda ação produzida pelo ser transcendental kantiano será honrada, porque o homem que a pratica é ético por excelência. Rawls estabelece em sua teoria geral da justiça cinco estágios para a constituição de um sistema justo: inicialmente devemos ter um grupo de pessoas isentas de qualquer vinculação partidária, num segundo estágio teríamos a constituição federal, o código de leis, o deliberativo e a lei na prática. Também aqui, na justiça, no estabelecimento da justiça, temos antes de qualquer coisa, de qualquer ação, o ser honrado. Sempre, qualquer evento humano, para ser correto, para ser justo, para ser ético, parte de um ser que já porta a diferença: a ética. Porquê será que estabeleci neste meu espaço singular, que a diferença é a ética?. Pergunto-me eu, neste momento. A psicanálise diz que a diferença é o que me distingue dos demais e nada mais correto do que esse meu ato falho, o que porta minha diferença é a ética que mostro, que demonstro em toda minha ação, não somente aquela válida para a maioria, mas sendo socrática, sem deixar de ser kantiana, mas principalmente sendo eu mesma, sendo ética em TODA minha ação, isso diz efetivamente de mim, isso me distingue de todos, porta minha marca pessoal. A ética de meus atos dirá de mim, portará meu nome, minha diferença, honrará meus ancestrais e meus descendentes, dirá quem sou, o que sou....
Professor para ensinar ética, para ensinar qualquer coisa, precisa ter essa diferença, portar essa diferença. Ser professor, querido aluno, meu amigo virtual, é portar essa diferença, para poder transmiti-la em todo seu fazer, em todo agir, em toda palavra proferida, mediada, o que quisermos instituir como sendo o fazer em sala de aula deve portar essa premissa primeira, partir de um ser com ética, um ser diferente....isso é muito lindo na verdade, porque me lembrei de um querido paciente que, em prantos de dor, trazia-me a questão: por quê não dizem para mim?....é isso, por quê, seres que respeitam, que pensam, que portam um saber, que se dizem professores (nossa essa palavra, para não deixar de ser derridariana – sou muitas anas- professa, profetisa, porta uma profecia?), por quê simplesmente, sendo éticos, portando ética pessoal, não falam o que sentem, não pensam com seus alunos, não mediam, não intermediam seu agir, seu fazer, seu pensar, não saem de uma postura de dogmas, de saberes congelados, de saberes que não se sabem e não partem para a sinceridade da busca, de um agir que valha a pena de ser cumprido, de ser realizado, um agir ÉTICO!....para começar......
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
(A)parências
Vivemos um tempo em que importa “aparecer” na grande “sociedade do espetáculo”. Devo, assim mesmo, imperativo, aparecer e não só aparecer, mas parecer. Parecer jovem, belo, saudável, com dinheiro, inteligente, competente, sexy, sério, bem vestido, carro do ano, e... feliz. Talvez o pior de todos os atributos exigidos a mim, embora muitos sejam dicotômicos, seja esse, a felicidade como imperativo de vida. Não tenho mais o direito de entristecer-me. Pior, de (a)parecer triste. Ninguém pode ver-me triste, pois quaisquer atributos não “esperados” pela sociedade são nocivos e tornam-me nocivo a esta mesma sociedade. Se não “pareço” o que esperam de mim, jogam-me para o fundo da caverna. Contrário do almejado por Platão em seu Mito da Caverna, que preconiza ser o sujeito que desvenda a si mesmo, que descobre-se, alheio às sombras, o que sai da “caverna” e governa as cidades.
Vamos em caminhos contrários à ética, não só com relação a condutas morais, mas à ética do sujeito, aquela que ele pode habitar livremente, em que ele pode fazer escolhas. Ética implica poder escolher!
Em nosso tempo as escolhas que podemos fazer limitam-nos às escolhas que devemos fazer. Logo, saímos do campo ético. Mesmo o estético não nos habita, pois algumas intervenções realizadas com o intuito de parecer melhor para aparecer, beiram a aberrações, que esteticamente produzem asco.
O que temos vivenciado são “éticas” oportunistas, em que realizamos o que nos interessa (ou ao grupo) e não o certo. Como nos casos em que, ao vivenciar violências, nos tornamos ávidos por prender, por ver o outro sofrer, padecer pelo que “fez”, sem que tenhamos provas do que fez. Esse outro serve apenas para mandar para o fundo da caverna esse nosso lado obscuro projetado nele. Lado que não queremos ver, diga-se de passagem!
E, ao final, com provas da inocência desse ser, olhamos para ele jogado na caverna (por vezes não queremos mais vê-lo) por nós, afundado na dor que lhe causamos e pensamos/dizemos: “ele era um otário de qualquer forma”.
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
Ser brasileiro: Ser Pelé!
Numa época em que se revisitam volores sobre o que é ser brasileiro, quem é o brasileiro, é o colonizador, o colonizado, o mestiço que decorre da junção dos dois anteriores; quem está certo, quem está errado, há o certo?, quem agrediu, quem foi agredido, a agressão continua?, etc... e com o olhar voltado para os atletas olímpicos que, como nos diz Roberto Pompeu de Toledo: “não é que nossos atletas não tenham evoluído,mas o problema são os outros, que também evoluíram”, me coloco a pensar e observo que nas olimpíadas o Brasil ficou em qüinqüagésimo segundo lugar no ranking de medalhas. Comparando com as paraolimpíadas, com menos patrocínio, menos estrelismo (porém não menos brilho!)os atletas brasileiros fazem muito e fazem bonito. Maravilhoso ver a medalha de ouro do atleta brasileiro Antônio Tenório da Silva, em judô e da atleta brasileira Ádria Santos, ouro em atletismo (100 metros), ambos com deficiência visual, e observar o país que consegue sua diferença, com garra, luta e determinação. Esse é o Brasil que desejamos e que devemos buscar no cenário internacional.
Na comemoração de seus 60 anos, Pelé nos diz da disparidade ao vermos atletas negando-se a defender a pátria brasileira, por esta ou aquela razão. Observo que se as razões alegadas pelos atletas são válidas devem ser defendidas, não à custa de afastarem-se de suas obrigações, mas ao assumí-las defender suas idéias para buscar a modificação do “status-quo”.
***
Em recente Congresso, Otávio de Souza lembra-nos que na América do Norte o paraiso se perpetua no fazer, no futuro, em contraposição a América do Sul onde o paraiso encontra-se, é um paraiso presente, é antes geográfico que histórico. Otávio nos instiga a retirar a brasilidade do cartão-postal, para um campo do possível, como sentimento íntimo do “ser brasileiro”.Deixar de ser um povo novo, para ser um povo do fazer, do construir história. O brasileiro o é assim tendo uma relação de criatividade com o mundo, em um “fazer” brasileiro, em um “estar” criativo em relação ao mundo,com nossas cores e, por que não?, com nosso exotismo.
***
Lembro que, na crônica dos 60 anos de Pelé dizem: “Ser Pelé em alguma coisa na vida é ser insuperável”. Esta é a verdadeira identidade brasileira para mim, onde apesar das dificuldades da origem podemos, se realmente desejarmos, ser “Pelés”, ou seja, insuperáveis em nossa arte.
#Artigo publicado no jornal Folha do Sul, em 26/12/2000.
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
Problemas com a Lei
Vivemos um momento particular no social, quando percebe-se afrouxamentos com a lei, nas estradas está determinado um limite de velocidade que sempre é ultrapassado e só é seguido se temo pela multa que me será infligida caso seja “pega”; quando não devo usar o celular ao dirigir e uso, mesmo arriscando minha vida e a de outrem; quando marcamos determinada hora com alguém que nunca é cumprida; quando busca-se, e até ensina-se (o que é pior!) aos filhos, o “jeitinho” para sair ganhando. Se alguém “ganha” é porque outro “perde”, isso é um “jogo”. Quando vivemos a lei, vivemos o respeito ao outro, assim todos ganham, pois todos têm o limite que é imposto pela existência do outro.
Este social impregnado de tentativas de tirar vantagens pessoais a qualquer custo (e muitas vezes não são tentativas) faz-nos pensar em uma estrutura social particular, diferenciada, algo como nomeia Contardo Calligaris “estrutura toxicômana”. Não é por acaso que vivemos neste nosso mundo globalizado o flagelo das drogas de forma exacerbada. As drogas evidenciam uma forma particular de transgressão, a transgressão à lei paterna, pois a marca paterna presente no sujeito é uma marca de respeito à lei familiar, à lei social, à lei do desejo. Não o desejo, como ele se apresenta na linguagem popular, mas o desejo de se constituir como sujeito, de crescer, não só externamente, de tamanho, mas de crescer em seu ser, progredir, conhecer-se e conhecer o mundo, fazer sua diferença.
Nestes tempos, junto à transgressão às leis interna e social, observamos momentos de uma violência ímpar, que difere muito da violência das guerras primitivas. É uma violência que se faz por vezes silenciosa, coercitiva, escravagista, fingindo-se de libertadora. Vemos, então, crimes bárbaros, que nos chocam pela frieza, pela falta de afeto, pelo distanciamento do humano.
Penso que muito temos a estudar sobre estes fatos, mas urgente se faz conscientizar da necessidade de mudanças, de uma busca de passagem de inscrições significantes na geração dos filhos, de cuidados primordiais para a estruturação destas crianças, para que sejam adultos melhores. Mas urgente se faz também que além dos pais serem pais, em seu sentido mais profundo, que busquem trabalhar suas dificuldades, descobrir-se, melhorar-se para não transmitirem, ou transmitirem menos, problemas a seus filhos.
Se tivermos leis internas firmes, as externas serão melhor assimiladas e seguidas.
# Artigo publicado no jornal Folha do Sul, em 15/08/2000.
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
Perdendo a Humanidade
A falta de segurança está mexendo com a vida emocional das pessoas a tal ponto de ver-se chegar a máximas de cercar uma cidade inteira e montar um arsenal de aparelhos tecnológicos para ilhá-la. Ficção científica? Pior é que não! A cidade existe e está localizada no interior de São Paulo, Iracemapólis, com 15000 habitantes. Mas a grande questão é que enfrentamos problemas realmente sérios com a violência, assaltos, roubos, seqüestros relâmpagos e tudo o mais... até incêndios criminosos feitos por piromaníacos de plantão. As penitenciárias estão lotadas, questiona-se construções de mais, as pessoas não as desejam por perto em seu bairro. As casas de menores parecem mais prisões, do que centros reformadores-educadores de jovens. Enquanto isso os que estão soltos(??) protegem-se como podem: gradeiam casas, instalam controles de segurança, câmeras de vídeo, alarmes. Além de toda essa “parafernália” eletrônica ainda tem os seguros de carro, da casa, ..., da vida. A cada dia vê-se surgir mais um “aparelhinho” destinado a essa área... e a cada dia observa-se a vida valer menos.
Quando vamos ao interior, se observarmos a natureza por alguns instantes, vemos os rios extremamente poluídos, com grandes blocos de espuma branca a tapar-lhes as águas. Mas não são só as empresas que despejam dejetos em suas águas (té porque as empresas são comandadas por pessoas e quem opera as máquinas também são pessoas, que nem sempre fazem o que o dono lhes orienta), vê-se também em toda a extensão desses rios, se formos tão curiosos ao ponto de seguir-lhe o trajeto das águas, restos de alimentos, de papel, de panos, enfim tudo que as pessoas descartam porque não mais lhes servem.
Em alguns momentos, o país não pode exportar carne porque o gado precisa ser abatido, controlada a aftosa. O respeito à vida também aí não se dá, pois, muitas vezes, segundo consta, o produtor compra a vacina e não a ministra ao gado, porque eles ficam mais “lentos” em virtude dos efeitos da vacina. O produtor compra a vacina, apresenta a nota ao fiscal do estado e não a ministra ao gado (??). Depois reclama de ter de abatê-lo, porque perde dinheiro (??). O fiscal não fiscaliza como deveria, será que não deveria ter um veterinário responsável pela vacinação (??). E a vida dos animais, a vida pela vida como fica? Só vale se der lucro?... E então chegamos ao submarino russo Knust, onde para testar armas que matam gente, pessoas morrem sem razão... Parece que na verdade, mais que as casas, os carros, os bens, as pessoas gradearam seus corações...
Não é à toa que riem de si mesmas em programas de televisão.
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
Paternidade
Quando em nossa cultura reservamos um dia para comemorar a paternidade, mesmo que sob o prisma comercial, imprescindível se faz que seja dito aqui da importância da função paterna, função que difere de pai-presença, mas que diz respeito a algo mais profundo, anterior. Ao ler das homenagens ao pai, aqui no jornal, no segmento denominado “meu pai” percebi pais idealizados, fortes, presenças marcantes na vida de seus filhos. Como é importante a figura do pai para seu filho, e não falo da presença do pai, mas de sua existência estrutural, marca significante de um lugar especial, lugar de pertencimento, lugar de lei, lugar de diferença,de singularidade constitucional.
No cotidiano, nas ruas, nas casas, no cinema, na literatura, observamos pais idealizados, muitas vezes “máscaras “ de pais, pais que se “espera” que sejam assim. Estes chegam à clínica trazendo filhos com “problemas emocionais” que dizem não saber de “onde vêm”, mas que se fizermos uma escuta teremos pais completamente ausentes (não fisicamente!), alienados da vida dos filhos. Percebe-se que a geração “laissez-faire” (deixa-fazer) ao invés de gerar angústias, parece ter fornecido benefícios, liberou-os da “obrigação” de criar o filho gerado, deixando-o criar-se com o mundo (como se isso fosse possível!). Com os problemas instalados trazem que tudo foi feito de forma correta, e então?.
O que se tenta trazer aqui não é um receituário (até porque como receita simplesmente não dá certo!), ou uma imposição, mas tenta-se apresentar o que é necessário para que um mínimo se dê. A inscrição desejante materna é necessária para que se possa ser “desejante”, para que possamos nos constituir como sujeitos e a inscrição paterna é necessária para que se possa estar inseridos no mundo, pois ela nos marca a lei, os princípios da lei. Ouvíamos muito de nossos pais a expressão “dou minha palavra!”, pois ter a marca paterna é, grosseiramente falando, assim: ser um “sujeito de palavra”, sujeito que fala, que “diz” de sua diferença. Como isso se dá, já que o que se está trazendo são seus efeitos?. Há a necessidade de que ao sujeito constituído amorosamente pela função materna, seja acrescido o desejo paterno, Desejo de um Pai para seu filho (que vem da mãe- LDM – Lugar de Desejo da Mãe) e desejo de reconhecimento deste filho, feito pelo “olhar” paterno, além de um “não” especial, que é aquele que diz “isso não é possível” e que possibilita, assim, muito.
É de uma imposição que podemos reconhecer liberdade. Podemos assim dizer: “como é bom ter um Pai, sem ti não seria quem eu sou!”.
....Aos meus pais . ....Únicos, como deveria ser!!!!!
# Artigo publicado no jornal Folha do Sul, em 12-13/08/2000.
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
Drogas – Algo de novo?
Diz-se das drogas que elas são um flagelo social. Flagelo pela degradação que ocasionam nos usuários e suas famílias e flagelo pela violência que desencadeiam, pois para ter acesso às drogas muitos precisam praticar roubos, assaltos, destruição e morte. Estuda-se muito e quanto mais se avança nas teorias existentes, ao aliá-las a uma prática percebe-se que muito há ainda a estudar para que possamos de fato causar algum efeito realmente eficaz e duradouro. Algo tem se evidenciado ao tratar usuários de drogas: problemas com a “lei”. Não somente a lei jurídica, a lei constitucional, mas percebe-se algo mais profundo, anterior, o que se constata é que nesta facção social os pontos de convergência têm a ver com o enfraquecimento da lei estrutural, da marca primeira que é a do “Nome do Pai” – significante básico e necessário para qualquer atendimento às normas, condutas e leis sociais. Famílias desestruturadas, com questões individuais e grupais exacerbadas geram filhos sem as “marcações”, sem as “inscrições” que fazem os pilares da estrutura psíquica. Uma dessas marcas é a do “Nome do Pai”, Lei Paterna, Lugar de Desejo da Mãe – inscrição da Lei.
Trabalhar com a recuperação na drogadição implica necessariamente fazer valer esta inscrição, quer fortificando-a (quando existente ou enfraquecida), quer buscando “costurá-la” a uma estrutura psíquica parcializada. Nisso percebe-se grandes avanços trabalhando a espiritualidade destes “doentes”, trazendo a figura de Deus como um Pai amoroso e disciplinador (que tem leis para ser cumpridas).
Percebe-se ainda, que a drogadição se alastra em um momento particular do social: quando a sociedade vive da mesma forma enfraquecimentos da lei paterna na estrutura de seus membros cidadãos. Isso está evidente quando, nas estradas há um limite de velocidade que é ultrapassado e só é seguido se temo a multa que me será infligida caso seja “pega”; quando não devo usar o celular no trânsito e o uso, mesmo arriscando minha vida e a de outrem; quando marcamos determinada hora com alguém que nunca é cumprida; quando busca-se o “jeitinho” para sair “ganhando”. Quando alguém “ganha” é porque outro “perdeu”, isso é jogo, se vivemos a lei, vivemos o respeito ao outro, assim todos ganham, pois todos têm o limite que é imposto pela existência do outro.
Enquanto buscarmos criar leis externas para tentar nos isentar da responsabilidade de transmitir a lei paterna pela educação estaremos apenas fazendo “remendos”, precisamos pensar em sustentar bases sólidas que sobrevivam às tentativas de degradação, a começar pela educação, via estruturação familiar.
VERA MARTA REOLON
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terça-feira, 28 de abril de 2020
Ciência e Verdade
Vivemos em um tempo em que a ciência predomina. Basta lermos jornais, revistas, livros, observamos que a cada dia há uma busca maior por dissecar a alma humana e tentar estabelecer a dimensão do físico ao homem. A era científica iniciou-se em Dèscartes e seu cogito e estende-se até nossos dias, comprovada na vida que levamos, nos alimentos e fármacos que ingerimos,etc..
Nossas vidas movem-se cada vez mais na direção da busca de respostas, numa tentativa incessante de cientificizar o mundo, o homem, tudo o que nos cerca. Como isso se dá? Através da observação, da experimentação da natureza, dos fatos naturais, de sua análise e posterior elaboração de teorias. As teorias científicas criadas devem atingir a maior quantidade populacional possível para serem consideradas válidas. Nesse sentido buscamos responder às demandas populacionais e as diferenças individuais perdem-se cada vez mais em contextos globais. Hoje tudo torna-se absolutamente “científico”, respondido pela ciência. Basta que observemos a quantidade de fármacos existentes (e ainda bem que assim o é, pois muitas doenças têm possível reversão dessa forma) que acabam também gerando outras doenças (quer pelo uso indiscriminado dos mesmos, quer pela resistência que nosso organismo faz aos mesmos, precisando aí de medicamentos mais potentes para atingir mesmos objetivos), há respostas para tudo, tenta-se explicar até a fé.
A impulsão do homem em desvendar a vida é o que nos move, é importante para que possamos entender nossa natureza, atuar sobre ela da melhor forma e vivermos melhor. Então qual o problema? O problema está quando respondemos a todas as demandas da mesma forma, quando esquecemos que, como nos diz Lacan “..não tem ciência do homem, porque o homem da ciência não existe, e sim unicamente seu sujeito..”.O sujeito é que existe, é de nossa posição de sujeitos que somos responsáveis por nossos atos e é por ela que entendemos aquele que nos procura para livrar-se de suas dores. O sujeito é sujeito quando fala, quando diz de si, quando fala de sua história, plena de significantes que produzem significação em suas vidas. O inconsciente está estruturado na linguagem: “eu, a verdade, falo” e nesta relação cada sujeito é um, cada um coloca o que pode colocar, dá-se o cerne de sua diferença. Devemos sempre lembrar que não há metalinguagem, porque a verdade se funda naquele que fala, é a sua verdade, que tem a ver com seu lugar de repressão originária. Aqui está o grande ponto de ruptura entre ciência e saber, entre ciência e verdade. O sujeito da ciência é um recorte de si mesmo, carne , ossos, músculos, .., diferente do sujeito sobre o qual trabalhamos, que é o sujeito da verdade como causa.
O que vemos em nossos dias é uma supressão da palavra do sujeito, há uma “aparente” liberdade, moldada em valorização da diferença para anulá-la e tornar a todos iguais. Esse “clima” sombrio desemboca nas crises sociais que vivenciamos, principalmente na drogadição, que é a forma maior de alienação de si mesmo, numa “igualdade alucinatória”. Há como nos livrarmos das drogas? Diria que sim, desde que busquemos valorizar o sujeito em sua individualidade, ouvir dele sua diferença e não instituir-lhe dogmas a seguir. Mas cuidado! Não se fala aqui da anarquia total, pois aí teríamos a “esquizofrenia sócio-cultural” em que ninguém se entende. Deveríamos sobre a base estrutural limitante da lei, vivermos o mundo fraterno, de “irmãos” que aceitam a diferença do outro, que sabe que o que é seu o outro não tem acesso, porque ninguém jamais tomará o lugar que é meu, pois ninguém é igual a mim, cada um é único.
Finalizando, trago uma homenagem a Marcelo Fromer, mas que parece feita para o momento: “..Quem espera que a vida seja feita de ilusão, pode até ficar maluco, ou morrer na solidão. É preciso ter cuidado prá mais tarde não sofrer. É preciso saber viver..”.
# Artigo publicado no jornal Pioneiro, em 27/08/2001.
VERA MARTA REOLON
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terça-feira, 28 de abril de 2020
“Certificado” de Ética
Ao ler uma reportagem que versava sobre uma nova busca de “certificados de qualidade” nas empresas, baseados nos comportamentos éticos entre as pessoas e com os negócios, assombrei-me em sentimentos conflitantes. Ao mesmo tempo em que vejo sedimentado no papel palavras, frases e idéias que sinto imprescindíveis ao homem, à sua evolução e à vida, pois o que dizem aí é que devemos buscar também nas empresas comportamentos, procedimentos, relações profissionais e de negócios com valores morais sólidos, fixados em nossa vida pessoal e espelhados em nossos procedimentos, em nossas ações pessoais e também (por que não?) em nossas ações com vínculos de trabalho.
Penso que, buscarmos valores que, para mim, seria um retorno ao pensamento socrático, dos gregos de sua época em que a ética era buscada e apregoada em todo fazer de qualquer cidadão e o Estado apenas retratava o individual, básico e necessário em nossos tempos em que a diferença individual, ao invés de se apresentar para o crescimento social e pessoal, apresenta-se para o choque e a contravenção.
Mas fico feliz por ver que nas empresas também buscar-se-á implementar melhorias de cunho agregado e de correção. Preocupo-me com as consequências que essa instituição, “certificação de conduta de negócios” pode trazer para os menos avisados (para dizermos o mínimo). E se aquele que não sabe o que é ética no campo pessoal, ao tentar buscar a certificação, embrenhar-se do “jeitinho brasileiro”, da “lei do Gerson” para obtê-la? Ou ainda, seguros que estamos de que a ética é necessária em todas as relações e, por que não dizer, em nossa vida pessoal e social, fizermos um código em que os comportamentos deverão ser obedecidos (e eventualmente burlados) e não incorporados em nosso agir, estaremos vivendo a ética em sua plenitude, teremos um agir ético?
Valores éticos, mas com intuito de lucro para obter “certificação ética”, podem até buscar caminhos não éticos como o racismo, entre outros...
Deixo estas interrogações e, junto a elas o pensamento socrático, nas palavras de Platão: “ Se vos dissesse que esse é o maior bem para o homem, meditar todos os dias sobre a virtude e acerca dos outros assuntos que me ouvistes discutindo e analisando a meu respeito e dos demais, e que uma vida desprovida de tais análises não é digna de ser vivida, se vos dissesse isto, acreditar-me-iam menos ainda.” Platão, in Apologia de Sócrates.
# Artigo publicado no jornal Folha do Sul, em 16-17/12/2000.
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
Cem Anos
No último treze de abril, Lacan completaria cem anos, se não tivesse nos deixado em mil novecentos e oitenta e um. Deixou-nos seu corpo, mas seu pensamento está cada vez mais vivo. Controverso sim, criticado, discutido, amado, odiado, mas é inegável sua contemporaneidade.
Jacques-Marie Lacan dizia-se um estudioso de Freud, em seu “resgate do pensamento freudiano”. Médico,psiquiatra de profissão, psicanalista de formação, Lacan se considerava um leitor de Freud, porém ele foi um leitor cuidadoso, corajoso, ousado.. A obra de Freud, para os que a lêem, nos leva a “êxtases”, pois é uma escrita literária, no sentido de que , ao propor a teoria psicanalítica, o faz como se contasse estórias, uma escrita solta, gostosa. Isso levou a falsas interpretações e a entendimentos equivocados de sua obra por todo planeta. Muitos leigos (e até não tão leigos!) supõem compreender o que Freud diz e o “interpretam” parcialmente. Lacan usa uma linguagem difícil em sua “leitura freudiana” que, como se diz nos círculos psicanalíticos, é preciso estar “transferenciado” com sua obra para entendê-lo, ou seja, é preciso “desejar” entendê-lo. Sua dificuldade também reside na construção de um pensamento original, pois rompe com muitos dogmas, parte de diversos pensadores como Spinoza, Saussure, Koyré, Kojève, Hegel, para nos deixar legados extremamente atuais como por exemplo nos Escritos, Ciência e Verdade, A Dialética do Senhor e do Escravo, etc... sem contar sua palavra, documentada por seus seguidores nos Seminários. Lendo filosofia, ultrapassa-a no entendimento da verdade dos “sujeitos”. Utilizando-se da matemática, cria seus “matemas” para conceitualizar a psicanálise.
De figura controversa, em função de sua insistência na defesa do “tempo lógico” para determinar a duração das sessões psicanalíticas, onde “o tempo é o tempo do inconsciente”, a pensador de importância ímpar em nosso tempo, Lacan nos convoca muito mais que a seguí-lo, nos incita sobre a necessidade de lê-lo para compreender nosso tempo.
É inegável sua importância na clínica, no atendimento e no entendimento destes “sujeitos” que nos procuram, mas também é impar a contribuição que sua teoria faz para a compreensão deste social que freqüentamos. Em tempos de globalização, ao lermos Lacan percebemos que ele previu muitos dos acontecimentos que vivemos e nos deixou, se soubermos interpretá-lo, os instrumentos para tratá-los: o analista do futuro. O analista do futuro é aquele que está sempre atento à ética do desejo, sem deixar de se preocupar com a técnica, uma técnica que dir-se-ia a técnica da escuta.
Guimarães Rosa, na voz de Riobaldo, em Grande Sertão Veredas diz que “mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”, lembra-me que Lacan ao nos incitar a não imitá-lo, a buscar sempre mais, realmente nos prova o que é um mestre genial !.
# Artigo publicado no jornal Pioneiro, em 19/07/2001.
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
Caxiense – Que denominação é essa?
Caxias cresceu rápido. Ainda me lembro de, em minha infância, ver o carroceiro a vender as verduras pelas ruas para que mães e “nonas” fizessem o almoço. Em curto espaço de tempo houve muito progresso, equipara-se hoje a grandes centros, mas na alma...
Venho, ultimamente, pensando muito sobre frases que ouço seguidamente em Caxias, como: “o “gringo” é distante, arisco com pessoas que vêm de fora...”, “...caxiense só pensa em dinheiro, carro do ano, não vive”, “...gringo daqui é invejoso, não suporta que o vizinho tenha mais que ele...”, “caxiense não tem cultura, fala mal, não sabe se expressar...”, entre outras tantas. Muitas vezes as frases são proferidas por nascidos na cidade, que nem se dão conta que estão incluídos em suas verbalizações. Outras vezes quem as enuncia são pessoas que aqui vieram para viver e procedem como aqueles a quem criticam. Aí me pergunto: de que falam mesmo? Todos parecem tentar construir uma identidade para esta cidade e determiná-la apenas aos “nativos” da terra, como se isso fosse possível. A meu ver não é possível porque, nessa Caxias de muitos berços e muitos imigrantes, ascenderam europeus que fugiram da pobreza e da morte, outros que fugiram de perseguições nazistas, fascistas, religiosas, ...Mais tarde foram recebidas pessoas de todo canto deste país em busca de trabalho, de possibilidades de vida. Sim, porque com esta miscigenação de raças, credos e línguas, se criou riqueza, fontes imensas de trabalho, única forma, ainda, de sobrevivência digna para todo ser humano. E aqui, com todas as dificuldades do povo, com o brilho de todos que aqui chegaram, de todas as raças, nacionalidades ou etnias, o trabalho se dá. Caxias parece que, mais que seu povo, conclama as pessoas ao trabalho, ao fazer riqueza, ao viver melhor. Claro que muitos já perceberam que é preciso mais que apenas o ter, buscam conhecer-se mais, saber de si, de suas origens. Penso que é nesse momento que a cidade está hoje, com esta apresentação da italianidade, que talvez seja a raiz do maior número de seus cidadãos. Talvez daqui a algum tempo o povo, como múltipla identidade, consiga buscar uma melhoria interna, um apaziguamento em seus corações, que neste momento ainda não é possível. Mas o que importa é que estamos no “processo” de busca dessa identidade.
E que, enfim, diferente do soneto de Gregório de Mattos, “...voz sem distinção, Babel tremendo, pesada fantasia, sono brando, onde o mesmo, que toco, estou sonhando, onde o próprio, que escuto, não entendo!...”, não sermos tão estranhos ao que é nosso!
# Artigo publicado no jornal Folha do Sul, em 09-10/12/2000.
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
Feminilidade
Nossa cultura, sociedade cultural, está centrada no masculino, a figura masculina “criou” esta sociedade, montou-a, orientou-a, fez descobertas, escreveu sobre ela,..., enfim vivemos uma sociedade “masculina”. O que caracteriza o masculino, diferentemente do outro ser (o feminino) é o pênis, sua presença na anatomia masculina. Desde Freud o estudo da libido, da energia sexual, centraliza-se na idéia do falo. E desde então confundimos falo com pênis, daí nossa sociedade crer que o portador do pênis, diferença anatômica masculina, é o portador do falo. A cultura como um todo baseia-se nesta diferenciação e nesta ilusão. Mas o falo é de outra ordem, ele é de ordem psíquica, é energia vital, é força, está no masculino, mas também no feminino.
Existe um lugar feminino, diferente do masculino? Existe um lugar feminino que exceda a ordem fálica?. O lugar do feminino ultrapassa as máscaras do senso comum, surge no que fascina, espanta, transgride, surge no apelo suplicante de Camile Claudel, na obra depressiva e plena de poesia de Virgínia Woolf., no gozo inalcançável representado no filme de Kubric, De Olhos Bem Fechados.
Feminilidade está relacionado aos termos fêmea, feminino, em contraposição a macho, masculino. As diferenças étnicas são posteriores ao aparecimento da humanidade, ao passo que a diferença sexual precede a humanidade. Pertencendo à ordem do subjetivo, a feminilidade não possui forma. Possui, outrossim qualidade semelhante à da água, ela é fluida. Ela está aí, em tudo e em todos. “Feminino” nesse sentido não significa apenas a pertinência do sexo feminino, indo além, onde Lacan propõe diferenciar sexo biológico e sexuação. O sexo biológico não consegue diferenciar o sexos no inconsciente. Há nas mulheres, para Lacan, uma natureza “antifálica”.
O lugar feminino escapa, para Lacan, à ordem fálica, escapa à ordem do todo, mas também não deixa de ter relações com este todo. O falicismo das mulheres está presente na mascarada, na maternidade, nas realizações mais variadas da existência, nos objetos, nas posses. A feminilidade seria, inversamente, marcada por um estado de “possuída”. Aqui como duplo sentido, como “possuídas pelo demônio”, as “bruxas” de outrora.
A mulher num lugar materno, lança-se a um gozo de des-possessão, amor para além do falo, semelhante a um voto de pobreza, gozo que vai além do gozo fálico. Assim, a mulher encarna um não-humano.
Lacan coloca que nossa civilização está calcada na linguagem, ele assim, situa a linguagem no campo fálico, humano. A mulher estando fora da norma fálica, como pode-se conceber que fale, que esteja atenta a linguagem , à cultura então?. Esse “fora da lei” atento às mulheres, faz com que ela nunca esteja lá onde se julga encontrá-la, ela é impossível, não-localizável. E, mesmo assim, ela volta sempre, como mascarada, fingindo existir. Ela se faz pela procura de suas ausências. Na maternidade ela apresenta uma presença inquestionável, que também se dilui quando do crescimento da criança. Talvez, por esta razão, quando a mulher não tinha outras formas de “aparecer”, com seu trabalho, seu corpo, suas aparições como nos dias de hoje, elas gerassem tantos filhos, um após o outro (aqui não era só a questão da não existência de métodos anticoncepcionais!).
A mulher se constitui a partir do olhar do homem, cuja perda representa a morte, enquanto que o homem se estrutura pelo olhar do mundo. As mulheres se adaptaram ao desejo dos homens e acreditaram encontrar nessa adaptação sua verdadeira natureza. O homem conseguiu que seu desejo se cumpra por meio do domínio e da anulação do outro desejo: o da mulher. A mulher não podia desejar, senão ser desejada. Assim, a mulher começa a ser pensada desde o desejo do outro: o homem. Nasce, a partir do homem a noção de mulher e ele a distingue como algo inacabado, inferior e excluído.
Para Lacan, a busca empreendida para encontrar um significante para o sexo feminino é nula, para ele não existe significante do sexo feminino, a mulher não existe como significante (como impossibilidade de colocá-la em um registro universal). Diz ele que só existe um único significante da sexualidade, o falo. Significante aqui, definido como aquilo que representa o sujeito para outro significante. O falo é definido como aquilo que aparece no lugar de uma falta (de uma entidade desde a qual todos ficam situados como simbolicamente castrados). O feminino se posiciona para além da rede significante e excede a organização fálica, seu gozo é suplementar, inatingível, a mulher não entra na relação sexual senão como mãe, enfim a feminilidade é uma experiência mística. Para Lacan , a relação sexual não existe (relação e não ato sexual), relação essa que sempre resulta de um encontro caracterizado pela ausência do outro, não há complementariedade, a posição feminina se define para além do registro fálico.
O ser humano vive marcado pela falta, nasce incompleto, e vive uma busca da plenitude, de suprir esta falta. Assim, nos perguntamos quem sofre mais esta falta, a mulher, sentindo-se castrada, o homem com seu temor pela castração, ou os transexuais que vivem a própria castração?. A falta é que nos permite o acesso ao humano, lugar daquele que pode lograr da plenitude, através da busca, do desejo. O desejo humano é da ordem da insatisfação. A mulher sente a maternidade como a via principal de acesso a uma identidade feminina, vivendo assim, imaginariamente a completude, a não-falta.
A diferença existente entre os sexos é produto de uma construção simbólica, em corpos anatomicamente diferentes produz efeitos imaginários .Esses efeitos imaginários constituem o que definimos feminino e masculino.
O ser humano não pode prescindir do outro, para ser homem ou mulher. O outro é sempre uma prioridade, até a morte. Esta prioridade do outro é a possibilidade de vir a ser. O futuro do laço social contemporâneo, responsável pela humanidade do mundo depende da mulher, depende que o feminino, que o que faz objeção à lei fálica não esteja esmagado pelos imperativos do discurso existente. O amor renovado pela alteridade, feminino/masculino, dessa dimensão feminina, levar-nos-á a uma dimensão incomum, de novos laços sociais.
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
TRADICIONALISMO X NATIVISMO
LESSA, Barbosa. NATIVISMO – Um Fenômeno Social Gaúcho. LPM.
Barbosa Lessa expressa em seu livro Nativismo, o processo de criação e solidificação dos valores gaúchos, nos CTG’s, através da luta de um grupo de estudantes (ele era um deles) da escola Júlio de Castilhos, em Porto Alegre. Ele, e o grupo, embasam a necessidade de criação deste “grupo local”, o CTG, como um local de encontro de pessoas para conversar (charlar), tomar mate, dançar, enfim difundir o que vai na “alma” deste sujeito que está “individual na multidão”.
Os CTG’s para Barbosa Lessa, Paixão Cortes e seu grupo seria semelhante ao antigo galpão da estância, onde todos se reuniam ao redor do fogo de chão, conversando, tomando mate, ....
Para sedimentar os CTG’s e o MTG Barbosa Lessa busca nas raízes do RS, desde os guaranis até nossos dias, quais os valores, as tradições, o modo de vida do gaúcho.
GOLIN, Tau. A Ideologia do Gauchismo.Tchê Editora.
Em seu livro, A Ideologia do Gauchismo, Tau Golin tenta desmistificar o “gauchismo”, no campo dos Movimentos Tradicionalistas, enquanto formas míticas de movimentação das “massas” ( do povo). Busca ele trazer as pessoas a uma vivência “social” do “gauchismo”, de consciência coletiva, mais racional (parece-me), buscando sair de um modelo pequeno-burguês, para uma vivência de classes sociais, mais abrangente, marxista.
Segundo Golin, a transferência do “gauchismo” do campo para as cidades, deve justificar uma ruptura com os modelos elitistas e a transformação do cenário do movimento deve buscar uma cultura mais popular, mais atenta às necessidades do povo, em sua maioria, não apenas às classes mais abastadas. Ele critica abertamente o tradicionalismo, como tendo nascido na elite, com ideologia positivista, parcial portanto. Coloca que o movimento serviu aos interesses políticos de manter a “ordem” em função do movimentos de imigração que ocorriam na época e da tentativa de seguir os programas políticos de modernização do Estado.
Através de uma visão e vivência marxista, socialista portanto, Tau Golin critica o modelo tradicionalista e o situa a favor e servindo aos interesses capitalistas do Estado, das elites então. O tradicionalismo serve aos interesses do poder dominante. Golin coloca o “Estado e o tradicionalismo na mesma trincheira”.
A partir da visão elitista do MTG, Tau Golin desmistifica e desconstrói seus modelos, a indumentária, seus princípios, a arte ligada ao MTG e as identifica a “mentiras” históricas do RS. O MTG não reflete a realidade riograndense, ou o seu povo, mas a “mentira”, a invenção de suas elites.
OLIVEN, Ruben George. A Parte e o Todo.Vozes Editora.
Oliven, mais do que sedimentar uma tradição ou contradizê-la, busca, antropologicamente, situar o Estado do RS no contexto brasileiro, seu povo, que povo é esse, na tentativa de identificar suas características, suas singularidades no contexto da nação brasileira. Busca faze-lo sem ideologismos, nem tendências, de forma a chegar a respostas que estejam isentas de um lado ou de outro.
Nesta busca da identidade gaúcha ele parte da conceitualização de nação e vincula a uma “memória coletiva”. A memória coletiva é particular, enquanto a memória nacional é universal. Logo, o nacional seria um discurso de segunda ordem.
Havia a crença de que através do nacionalismo se chegaria ao universal, Freyre propõe que a única forma de ser nacional é antes ser regional.
Oliven coloca as características específicas de nosso Estado: fronteira, clima, passado de guerras. Fala do povo que habita e que iniciou este Estado, suas especificidades.
Os movimentos tradicionalistas, suas bases, bem como o movimento nativista, as diferenças entre os dois, a construção da identidade cultural do gaúcho.
Oliven então chega a um ponto em que propõe que busquemos nossa identidade, valorizada nas diferenças culturais e na aceitação do outro.
VERA MARTA REOLON
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terça-feira, 28 de abril de 2020
MERLIN – ARTUR E O GRAAL
Merlin é filho de uma princesa, engravidada durante o sono por uma demônio incubo. Um bando de demônios fazendo algazarra dança durante a cena, mostrando a potência sexual e maléfica dos demônios sobre as humanas. A imagem enfatiza o caráter metade diabólico de Merlin.
A figura de Merlin, na mítica meideva está intimamente associada a personagem de Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda. Enquanto Merlin provavelmente é uma figura literária, a de Artur provavelmente é histórica.
Merlin é comparado, já na Idade Média a um personagem chamado Ambrosius, que na História Britonum dos séculos VIII-IX, é um profeta de pai desconhecido que anuncia o futuro dos bretões. Três elementos fornecem o significado e as bases do sucesso da personagem de Merlin: o seu nascimento, que, ao invés de pai desconhecido, ele se torna, em perspectiva cristã, filho de uma mortal e de um demônio incube – paternidade duvidosa, que lhe confere poderes excepcionais, mas de origem diabólica. O segundo elemento é o dom da profecia, esta estaria a serviço de Artur e dos bretões. Merlin passa,assim, a ser a figura-mor de um nacionalismo britânico. O terceiro elemento seria Merlin o próprio criador da Távola Redonda.Levando Artur a criá-la ele teria ensinado as virtudes cavaleirescas ao rei e à sua elite de cavaleiros.
A figura de Merlin está vinculada à busca do Graal, cerne da imagética arturiana e do imaginário dos homens de 1250. Também de um outro Graal, o do “desejo diabólico que leva o homem a saber, a forçar os segredos de Deus, a mudar o destino”. Merlin agonizaria em função de ter transmitido seus segredos à Dama do Lago. Assim, Merlin seria o profeta que causa o próprio infortúnio. Ele sucumbe ao poder da fada Niniane, que o hipnotizou. Niniane, que se torna Viviane, a Dama do Lago, prende-o para sempre em uma gruta.
Merlin também é um herói ligado ao espaço, à floresta, onde gostava de morar quando estava livre, ao ar e à água, onde leva uma existência de prisioneiro perpétuo.
Walt Disney vai reviver a figura romântica de Merlin, como o mago que prepara uma espada em uma pedra. Quem a retirar de lá, quem conseguir o feito, tornar-se-á rei. O desenho infantil A Espada era a Lei.
Artur será aquele que retirará a espada da pedra, o único que consegue, um menino, que se torna o Rei Artur, a espada Excalibur.
Artur aparece na História britonum,do cronista Nennius, no início do século IX. Segundo este, um certo Artur teria combatido os saxões ao lado do rei dos bretões durante a invasão da Grã-Bretanha pelos saxões. Guerreiro excepcional, defensor dos bretões, sua figura permanece vinculada à literatura oral dos celtas.
Utherpendragon,com a ajuda dos encantos do mago Merlin, concebe com a mulher que ele ama, Ingerne, um filho, Artur. Rei aos quinze anos, Artur multiplica vitórias contra os romanos e os povos da Europa Ocidental. Artur se torna um herói central de textos literários da imagética medieval. A constituição dos Cavaleiros que se reúnem ao redor de uma mesa redonda – logo sem pontas – onde todos estariam em igualdade de direitos para decidir em conjunto soluções justas, vai se constituir na imagem perfeita para modelos democráticos desejados em todo o Ocidente, bem como no Oriente.
Ao redor de Artur surgem heróis como Galvão,Percival e Lancelot. Este vai se apaixonar por Guenièvre, esposa de Artur.
Artur luta com a espada, aquela que Merlin teria preparado para ser retirada da pedra, Excalibur, esta só funcionaria, com poderes mágicos para Artur.
Artur é homem e, como tal, pecador, une-se a sua irmã e deste incesto nasce Mordred, sobrinho-filho que o matará. Artur agoniza no Etna, figura mítica cristã de um purgatório, onde esperaria a morte final.
VERA MARTA REOLON
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terça-feira, 28 de abril de 2020
Poesia: Masculino/ Feminino
Pode-se dizer que existe uma poesia feminina no Rio Grande do Sul? Como é essa poesia, ela se difere da masculina? Que é poesia feminina?
O Rio Grande do Sul, à semelhança dos outros estados brasileiros e mesmo do mundo tem poetas mulheres, em número reduzido ao de homens, mas as tem, quer seja em nomes como os de poetisas ligadas à Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul, quer em nomes como o de Lila Ripoll.
As componentes da Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul, constantes no livro Perfis de Musas, Poetas e Prosadores Brasileiros, de Alzira Freitas Tacques, são poetisas que se reuniam na casa de uma das acadêmicas, faziam uma Oração à Arte, de autoria de Alzira, uma ode parnasiana à arte, endeusando os valores clássicos gregos e o Belo e trocavam seus versos, em meio ao estilo clássico da casa e aos mitos clássicos gregos evocados na poética de suas membros. Adotando um modelo parnasiano ultrapassado, principalmente porque em 1950 os poetas já utilizavam as alterações poéticas e na arte implementadas na Semana de 22, Alzira Freitas Tacques, Lídia Moschetti, Aurora Nunes Wagner, Stela Brum, Seleneh de Medeiros,Honorina Bittencourt, Natercia Cunha Veloso, Camila Furtado Alves, Jeny Seabra de Souza, Noemy Valle Rocha, Lydia de Viveiros Leiria, Anita Gonzales, Otilia de Oliveira Chaves, Eudoxia Assumpção Almeida, Bertha Loforte Gonçalves, Déa R. de Figueiredo, Vera da Costa Vianna, Nenê Callage, Isis Freitas Tacques, Eni Taluá Tosca de Freitas, Maria Pavão Von Bassewitz César, Diva Machado Pereira Kastrup, Carmem Cunha Vianna, Consuelo Andrade Belloni, Diocólmata Berlese de Matos Dourado, Cely Dal Pai de Mello, Cora Torres Maia, Aracy Froes Peres, Lydia J.Martins, Heloiza Assumpção Plínio de Nascimento, Beatriz Regina, Leda de Aparecida Camargo, Virgínia Martins Michielin, Magda Costa, Jenny Maria Gobbi, Maria Isaura Gameiro, Suelly Isabel Luiza Rossler, Maria de Lourdes Weber de Carvalho, Eva Stein e Suely Freitas de Prunes marcam mais uma presença feminina na literatura do Rio Grande do Sul do que uma real diferença com suas escrituras.
O poema Promessa, de Stela Brum, retrata o fazer poético das acadêmicas, onde observa-se um lirismo quase adolescente, imaturo:
“Eu mesma prometi, meu coração,
que te haveria de ofertar um dia
o presente melhor, de mais valia,
a relíquia mais bela que existisse
dentro da vida, esparsa no universo.
E desde então meu pensamento triste
Buscou, forjou, arquitetou mil cousas
Que deveriam ser o curso presente.
Menina e moça, em meio à faceirice.....”[1]
Heloiza Assumpção Plínio do Nascimento, Bacharel de Direito em Pelotas e professora de História da Arte, na Escola de Belas Artes de sua cidade, publicou o Soneto para um Raio de Sol, onde faz uma ode à natureza:
“Com timidez entrou pálido a fresta
do postigo cerrado da janela...
E veio leve, com seu ar de festa,
a face me beijar...todo cautela.
Eu lhe sorri sem pressa, com amor,
fiz menção de pegá-lo junto ao rosto
como se fosse a haste de uma flor,
esse raio de sol do mês de Agosto.
E assim me despertou completamente
o luminoso e mudo rouxinol,
com a fidalga expressão de antigamente...
Quanta gente deseja, mas não diz,
um despertar tranqüilo..com este sol
que dá o divino dom de ser feliz!...”[2]
As trovas de Nenê Callage:
“Enquanto esta Humanidade
só pensa no poderio,
humildemente rabisco
TROVINHAS ao meu feitio...”[3]
Outra, de Nenê Callage, sobre São João:
“Nesta noite de São João,
tradicional em festejos,
eu peço com devoção
que Ele atenda aos meus desejos...”[4]
Diferente das acadêmicas de literatura, Lila Ripoll, nascida em 1905, falecida em 1967, de câncer, percorreu caminhos da poesia ocidental contemporânea, em temas como a morte e o amor, reminiscências da infância, perdas e na luta politicamente engajada do Partido Comunista. Inicialmente dedicada à música, Lila passa a publicar seus poemas e a lecionar no magistério estadual em Porto Alegre. Integra-se ao grupo de escritores denominado Geração de 30. Em 1939, é convidada a trabalhar na Secretaria de Educação. Com a morte de seu primo Waldemar da Silva Ripoll de forma violenta, Lila inicia sua militância política no Partido Comunista. Seu primeiro livro De Mãos Postas, editado pela Livraria do Globo, em 1938, dedicado à memória de Waldemar marca tristeza e solidão, como nos versos do poema Vim ao Mundo em Agosto:
“..Sou triste de nascença e sem remédio.
Vim ao mundo no triste mês de agosto: -
O mês fatal das chuvas e do tédio, -
E nasci quando o sol estava posto.
......
Sou triste. É irremediável este mal.
E eu não quero curar minha tristeza.
Só ela para mim tem sido leal
Na minha via-sacra de incerteza!.....”[5]
Seu segundo livro Céu Vazio, com capa a cores, ganhou prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras, em 1943, dedicado ao pai, trata basicamente da infância e das perdas, como se observa nos versos do poema Fugiram meus olhos:
“Fugiram meus olhos,
sem minha vontade,
e andaram perdidos
por dias, nos teus...
O fim dessa viagem
não posso entender.
Voltaram, e hoje,
nem sei se são meus!....”
Lila publicou mais livros: Por quê? Em 1945 (vem a público em 1947); Novos Poemas, primeiro da trilogia da Revista Horizonte, do Partido Comunista, em que se verifica um engajamento a uma poesia de caráter social; o poema Primeiro de Maio, poema extenso dividido em quatro partes Festejo, Passeata, Amanhã e Angelina; o terceiro da trilogia da Horizonte, Poemas e Canções, de 1957 que, segundo o Correio do Povo, contém a seleção dos melhores versos dos últimos anos; o último livro antes de sua morte, o melhor na opinião da crítica O Coração Descoberto e ainda, um livro póstumo Águas Móveis, em que no prefácio de Walmir Ayala consta:
“..Lila é uma mulher rodeada de mortos, e inesquecida. É uma mulher voltada para o escuro silêncio dos bens perdidos. Uma mulher em lágrimas, em permanente pranto convulsivo, visível, nobre....”[6]
Lila além de concertista, poetisa, trabalhadora, política engajada, ainda escreveu uma peça teatral Um Colar de Vidro, peça em três atos, encenada no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, em 1958.
Diferente das poetisas da Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul, que se mantinham isoladas em um “gueto” feminino, Lila freqüenta o mundo masculino, o grupo Geração de 30, o funcionalismo público, o mundo político, a dor.
Mas o que é feminino, masculino? Ethel Person e Lionel Ovesey, em seu artigo sobre Teorias Psicanalíticas da Identidade de Gênero, dizem:
“De maneira geral, definimos a identificação de gênero como composta de duas categorias: identidade de gênero nuclear e identidade da função de gênero. Neste contexto, identidade de gênero nuclear – a polaridade fêmea/macho – reflete uma auto imagem biológica e pode ser definida como a autodesignação por um indivíduo da sua qualidade de fêmea ou macho. É o senso de pertencer biologicamente a um sexo ou a outro: isto é, a convicção: “Eu sou fêmea” ou “Eu sou macho”. Em contraste, a identidade da função de gênero, a polaridade feminino/masculino reflete uma auto-imagem psicológica e pode ser definida como a auto-avaliação do indivíduo da feminilidade ou masculinidade psicológicas. É a percepção da feminilidade ou masculinidade: isto é, a crença: “Eu sou feminino” ou “Eu sou masculino”, comparativamente aos padrões sociais para o comportamento feminino ou masculino.”[7]
Na espécie humana as primeiras culturas foram as de coleta e, nelas, o primata/humano toma a posição ereta e começa o seu desenvolvimento do córtex cerebral com as suas primeiras conquistas tecnológicas. Um segundo “ponto de mutação” teria ocorrido, quando o ser humano inventa o machado e inicia-se o período de caça, criando, com isso, novas estruturas psíquicas coletivas. Há dez mil anos, a fundição de metais e a agricultura instauram um terceiro “ponto de mutação”, com a formação de aldeias e o fim do estado nômade. Um quarto “ponto de mutação” ocorre há pouco mais de trezentos anos com o advento da civilização industrial, possibilitando avanços científicos e tecnológicos, especializando a urbanização, onde se observa uma organização social mais individualizada da consciência. Hoje vivemos um novo “ponto de mutação” com a aceleração dos processos tecnológicos, com a informatização galopante. Este processo é forte, violento, à semelhança do primeiro, em que o animal transformou-se em homem (adquirindo a forma ereta).
As relações entre os grupos, inicialmente de solidariedade, passam a ser regidas pela violência, pela caça, pela competição. Hoje também, de uma forma mais sutil, mais “tecnológica”, as relações humanas são violentas, agressivas, de competição extrema, de subjugação, em que a Dialética do Senhor e do Escravo de Hegel torna-se extremamente atual. Num momento em que vale o “matar ou morrer”, a objetivação total do humano, parece transparecer um mundo masculino, forte, trágico, de dor e solidão.
Um mundo feminino seria onde as relações fossem regidas pela vida, pela solidariedade, pelas noções de cuidado, de preservação de si e do outro, de compartilhamento de vida e dos bens da natureza, mas também de perfídia, de deslealdade, traição, infidelidade.
O masculino e o feminino puros carregam estigmas de bem e de mal. Deveriam conviver dentro do homem (como ser) e da sociedade como tal a complementaridade das duas estruturas, a força convivendo com a vida, o equilíbrio. Evoluir como ser é buscar este equilíbrio de forças, esta convivência pacífica consigo mesmo e com os outros e o mundo. Isso pode ser observado na arte e na vida.
Na poesia de Lila Ripoll observa-se uma dor e uma solidão que não pedem solidariedade, que se bastam, que são absolutas. Sente-se o trágico em cada linha, como que um “gostar de sentir dor”, à semelhança de Baudelaire....., sangue,..., vinho tinto,.... É uma poesia masculina, com todas as suas características de destruição.
Podemos encontrar mulheres fortes, com espírito masculino como Lila Ripoll e homens com “alma” feminina, dizendo na poética ou não de si ou de mulheres.
Chico Buarque de Holanda carrega as características do feminino em seu trabalho (na forma de um gênio em sua área) equilibrando a força masculina com a leveza e a independência femininas, como na belíssima canção composta em parceria com Tom Jobim, “A Violeira”:
“Desde menina
Caprichosa e nordestina
Que eu sabia a minha sina
Era no Rio vir morar
Em Araripe
Topei com o chofer de um jipe
Que descia pra Sergipe
Pro serviço militar
Esse maluco
Me largou em Pernambuco
Quando um cara de trabuco
Me pediu pra namorar
......
Não tem carranca
Nem trator nem alavanca
Quero ver quem é que arranca
Nóis aqui desse lugar!”
Na verdade, o que importa mesmo é que tenhamos poetas, homens ou mulheres, masculinos, femininos, equilibrados em suas estruturas narrativas ou não ( e talvez a arte se faça deste desequilíbrio!) e possamos, cada vez mais, lê-los e nos deliciarmos com seus escritos:
“De Um Dito
Olha o céu, azul, disseste.
Olho o céu: está grisalho
como um velho encapotado;
de azul, mal uma nesga.
E só então me dou conta,
o azul estava em tua voz:
e num milagre, eu, meus olhos
e o dia fulguram sol.”[8]
Ou ainda,
“Faço o percurso dos pássaros
O céu é imenso
e longa é a distância
entre o deserto e o mar
Sozinho,
migro em minha própria direção. João Cláudio Arendt”
[1] TACQUES, Alzira Freitas. Antologia de Escritores Brasileiros. In: Perfis de Musas, Poetas e Prosadores Brasileiros. Porto Alegre: Thurmann, 1956. Pg 27.
[2] Idem, pg 150.
[3] Idem, pg.90.
[4] Idem, pg.98.
[5] RIPOLL, Lila. Lila Ripoll: Obra Completa. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro – Editora Movimento, 1998. Pg.29.
[6] Idem, pg. 250
[7] CECCARELLI, Paulo Roberto (org). Diferenças Sexuais. São Paulo: Escuta, 1999. Pg. 124.
[8] POZENATO, José Clemente. Mapa de Viagem. Caxias do Sul: Educs, 2000. Pg.22.
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
UM OLHAR PSICANALÍTICO SOBRE A LITERATURA; Estudos Culturais de Gênero
“Tu nada explicas, ó poeta, mas por ti todas as coisas se tornam explicáveis”
Claudel
Resumo: Busca, de forma interdisciplinar (psicanálise, filosofia, sociologia, letras e antropologia), investigar a questão da mulher, o feminino como e em que se diferencia do masculino na cultura, a partir do imigrante italiano da Serra Gaúcha, retratado nas obras O Quatrilho, A Cocanha e Mapa de Viagem, de José Clemente Pozenato. Especificamente aparecem aqui as formas de comparecimento das figuras feminina e masculina, delimitando-as sob diferentes perspectivas (culturais, sexuais, sociais, religiosas, etc) e busca-se transpor as informações coletadas para a realidade da mulher e do homem da região de imigração italiana no RS e no âmbito global.
Palavras-chave: psicanálise e conexões; gênero: feminino e masculino; cultura regional; literatura brasileira.
Este trabalho busca delimitar os modos de comparecimento das figuras masculina e feminina nas obras de José Clemente Pozenato, A Cocanha, O Quatrilho e Mapa de Viagem, além de observar as relações que estas diferentes figurações têm com a cultura, na região de colonização italiana no Rio Grande do Sul. Cultura e comunicação são interdependentes. A cultura necessita da comunicação para se fazer ouvir e ver e a comunicação retrata, ou busca retratar a cultura vigente.
Que visão de mulher tinha a sociedade da época da imigração e à época retratada nas obras literárias em questão?. As figuras masculina e feminina diferem, são singulares, mas em que contexto o são? Apresentam-se apenas na forma de vestir, de falar, de trabalhar, no social ou, além de todas as questões apresentadas, ainda diferem na forma psíquico-estrutural de cada um?
A mulher imigrante veio da Itália, como os homens, fugindo da miséria e da morte e buscando melhores condições de vida para si e para sua família, quer esta estivesse constituída ou não. Sofrem, homens e mulheres, os mesmos transtornos na viagem, nos trens, nos navios, na imigração, nos portos e alfândegas. São roubados, espoliados em seus pertences, nas informações que tinham até então (já que o que recebem nem sempre é o prometido!), em suas convicções sociais, psíquicas, enfim, em sua capacidade física e emocional.
As obras A Cocanha, O Quatrilho e Mapa de Viagem, de Pozenato, mostram como as relações entre homens e mulheres se davam, não só no contexto social, mas no contexto particular de suas vidas, em seus lares, no trabalho, em suas relações com a Igreja, com os padres, especificamente a Igreja Católica.
Inicialmente esta terra não tinha dono, os que aqui habitavam eram seres livres, que transitavam igualitariamente por estas terras, viviam e se alimentavam do que aqui era processado, plantado, colhido. Os brancos, que colonizam a terra, impõem sua cultura de forma dominadora. Ignoram a cultura existente ou mesmo negam que o que existia era cultura. O diferente era extinto, massacrado. O branco se adona das terras, toma posse, instala-se, espalha-se pelo território, registra seu nome nas terras, no fazer, no plantar, no colher, na vida.
O Rio Grande do Sul é ocupado mais tardiamente que o restante do país. Inicialmente, no estado, chegam alemães e portugueses, que se instalam nas terras mais planas. O italiano que aqui chega, na falta de melhores terras nas regiões que foram povoadas antes, buscam os espaços de planalto. Instalam-se então e aqui trazem sua cultura, seu sistema de plantio, de construções, sua alimentação, enfim, seus modos e costumes.
O solo de planalto do Rio Grande do Sul é parecido com o que os imigrantes viviam na Itália, daí também suas preferências na escolha das terras e instalação. Daí também, a singularidade do imigrante, de seus descendentes, que se estabelecem nesta região. Como a terra é uma terra basáltica, dura, o homem que aqui habita é um ser embrutecido, forte, destemido, como o solo. Os habitantes, imigrantes italianos, criam desta forma, mais do que uma identidade italiana, mas uma identidade do imigrante de colonização italiana, identificado com a terra, com o solo, com as novas condições de vida. Parece que, mais do que manterem uma identidade italiana, eles desenvolveram uma identidade do imigrante de origem italiana, na região serrana riograndense.
Região não apenas vista como divisão político-geográfica, mas como construção simbólica, constituindo uma rede de relações, como um espaço político-geográfico socialmente construído.
Nas obras de José Clemente Pozenato, o regional tem características singulares. A construção da identidade extrapola fronteiras, traz o território italiano para o contexto brasileiro, sem deixar de ter uma singularidade ímpar com a terra que habita, o solo brasileiro. As idéias de região não constituem idéias acabadas de uma realidade concreta, são realidades em construção influenciadas pelos valores simbólicos desenvolvidos em seus contextos e no decorrer da vivência do imigrante e de seus descendentes nesta terra.
Para Lacan, o “inconsciente está estruturado como linguagem” e “significante é o que representa o sujeito para outro significante”. Assim, os estudos do comparecimento do masculino e feminino, nas obras A Cocanha, O Quatrilho e Mapa de Viagem e o estudo das formações discursivas presentes nas obras, dos contactos de um e outro personagem, se dão através dos significantes lingüísticos, representantes da “coisa” no inconsciente.
Mais do que determinar o lugar feminino ou masculino num contexto histórico-antropológico, este trabalho busca ir mais além, determinando-o ou tentando determiná-lo num contexto discursivo, lingüístico-estrutural, além dos campos histórico-antropológico.
Somos herdeiros de uma ‘civilização greco-romana’, daí carregamos, estruturalmente, o lugar de inferioridade da mulher atribuído pelos gregos, além de termos a moral cristã impregnada em nossos fazeres e pensares, herdando-nos o masoquismo feminino, ao separar em termos absolutos as funções de reprodução e de gozo, presentes na experiência erótica da mulher. O cristianismo coloca o desejo feminino em um patamar de reprodução, em que o desejo é recalcado e a Igreja controla o “pecado”, através das confissões e orientações do padre.
A Revolução Francesa e suas idéias iniciais de liberdade, depois ampliadas em outras lutas na busca de liberdade, principalmente a feminina, tornam possível a construção de um novo modelo de sexualidade, centrado na diferença sexual, encontrado na modernidade.
Quando abordamos o tema se xualidade já estamos inseridos no discurso psicanalítico que, desde Freud, busca delimitar a natureza humana, sua estrutura.
A maternidade é uma marca inexorável da natureza feminina.
A psicanálise, centrada no discurso da histérica, precisa romper com o modelo essencialista da diferença sexual e se encaminhar para uma interpretação do erotismo centrada na feminilidade.
A arte retrata a sociedade que o artista está inserido, a cultura em que vive, os sentimentos que possui e que deseja passar, mas, principalmente, a arte retrata uma época, mostra e demonstra uma história, a história do artista e a história social.
Muitas são as formas de manifestação dos artistas em suas obras. E estas obras retratam a realidade em que vivemos, mostram-nos nossa história, estruturam nossas vidas.
Antônio Candido nos fala das diferenças entre a vida e a obra:
“[...] na vida tudo é praticamente possível; no romance é que a lógica da estrutura impõe limites mais apertados, resultando, paradoxalmente, que as personagens são menos livres, e que a narrativa é obrigada a ser mais coerente do que a vida.”[1]
Diz, ainda, da necessidade de que o autor construa a obra, para que esta funcione, como critério de coerência interna:
“Se nos capacitarmos disso – graças à análise literária – veremos que, embora o vínculo com a vida, o desejo de representar o real, seja a chave mestra da eficácia de um romance, a condição do seu pleno funcionamento, e portanto do funcionamento das personagens, depende dum critério estético de organização interna. Se esta funciona, aceitaremos inclusive o que é inverossímil em face das concepções correntes.”[2]
Para melhor analisar a obra de Pozenato , deve-se fazer uma pequena introdução, dizendo que o autor escreveu uma trilogia, para retratar a história de uma família de imigrantes italianos, três gerações, uma em cada obra, na Cocanha, Rosa e Aurélio, Gema e Bépi, Antônio Besana e Giuleta e o Padre Giobbe, como familiares de Ângelo; Pierina, Tereza e Máximo , respectivamente, que depois aparecem em O Quatrilho, e os filhos de Pierina, em A Babilônia (última obra da trilogia, ainda não publicada, tese de doutoramento do autor). A antologia poética de Pozenato está centrada em Mapa de Viagem. Procura analisar detalhes da vida desses personagens retratados nas obras, inicial mente em A Cocanha, centra-se a análise na figura das cinco “rondinélles”, andorinhas, cinco mulheres que emigram da Itália, com maridos arranjados para emigrar, além de alguns outros personagens que vêm desacompanhados, mas interligam-se nas relações sociais.
A obra A Cocanha retrata a vinda dos imigrantes italianos à América, fugindo da miséria e da morte, fazendo uma travessia do Velho ao Novo Mundo, em busca da terra da promissão, da terra da opulência, do paraíso terrestre.
No início da obra, há todo um simbolismo do mito fundador, a travessia marítima, as dificuldades, a calmaria, as crianças negras que se jogam ao mar e nadam livremente, sem temor ou dificuldade.
O imigrante carrega, porque também lhe é vendida esta idéia para que emigre, de que a América é esta terra da promissão, da opulência, de que, aqui chegando, ele poderá gozar a vida.
No texto literário, fica-se com a certeza de que o que foi vendido ao imigrante mostrou-se falho e falso, já que, ao chegar, ele e suas famílias enfrentaram todas as dificuldades possíveis e os problemas inimagináveis.
Através dos diferentes personagens apresentados pelo autor, solteiros ou casados, todos enfrentaram dificuldades em sua instalação, na aquisição das terras, no trabalho nessas terras, em manter-se e sobreviver.
No personagem Domênico, tem-se a visão do imigrante que vem com alguma posse financeira, além de trazer alguma arte. Domênico, no caso, toca em banda e é alfaiate. A figura de Domênico é singular porque ele será o pai biológico de Teresa, na obra O Quatrilho, além de que Domênico encontra-se com Giulieta, mãe de Teresa, em encontros furtivos, nas águas do rio. Teresa, também em encontros fugidios, encontra-se com Mássimo no rio. O rio, a metáfora utilizada pelo autor para retratar o amor na obra Mapa de Viagem, é a água, aqui águas de um poço.
É por Domenico também, na obra A Cocanha, que temos as noções dos esquemas políticos vigentes na época, além da presença da maçonaria, já à época da colonização, nos meios sociais.
Os personagens centrais de A Cocanha fixam-se em torno das ‘rondinèle’, as cinco amigas ‘andorinhas’ de Roncá, em Verona, na Itália. Elas moram próximas, em Santa Corona, juntamente com seus maridos. Betina, a quinta ‘rondinèle’, a única solteira do grupo, não vem ao Brasil, ficando na Itália.
Os grupos de imigrantes que se formam acabam constituindo as famílias, relações de amizade, pois suas famílias de origem ficaram na Itália, e os casais casaram-se para emigrar.
Além das ‘rondinèle’ e seus esposos, aparece uma figura singular, a de Roco, ferreiro, solteiro e dono da pensão, que se envolve na política, depois a abandona, casa-se com Marieta, uma auxiliar na pensão, e vive uma vida mais tranqüila. Roco é quem, mais tarde, em O Quatrilho, irá conversar com Teresa e apresentar-lhe uma vida diferente da vigente, mostrada pela Igreja Católica, o que propiciará que ela viva o amor com a intensidade que deseja.
Betina é a ‘rondinèle’ decidida, que não segue com os outros, não ‘vai com a maré’. Ela lança na história familiar, a marca de ser uma mulher que não se afeta com as opiniões, que não teme o futuro.
Marieta é a ‘rondinèle’ mais velha, que já tem filhos, a parteira do grupo, aquela que ‘dá o tom’ da vida das mulheres, de como elas devem ser e agir. Ela é casada com Cósimo, o líder do grupo, aquele que nomeia a localidade como Santa Corona. Marieta e Cósimo, então, fazem os papéis de mãe e pai do grupo.
Gema é a mulher forte, decidida. Gema carrega uma figura masculina em um corpo de mulher. Ela é uma mulher fálica, que nega sua feminilidade, para suprir as necessidades de um homem na família, já que Bépi, seu marido, é um homem feminino.
Giulieta é uma mulher inteligente, que não aceita ser mandada por todos na casa, que tem o desejo estrutural da busca da liberdade. Ela, como mãe de Teresa, irá levar à filha este desejo em sua busca pelo amor.
O desejo, que nos estrutura como seres humanos e nos induz à busca da vida, no decorrer de nossa existência, nos é transmitido no desejo do Outro, desejo daquele que um dia nos desejou (antes de nossa geração, por nossos pais) e que , mais tarde, nos olhou com um olhar de possibilidades para viver e ser feliz. Esse desejo inicial, estrutural, lançado pelo Outro, é o que denominamos, em psicanálise, Amor de estrutura.
Giulieta na obra, demonstra ter amado Tereza, desejado este filho, até porque Tereza era a lembrança constante da possibilidade da vivência do amor, já que foi resultado de uma situação furtiva entre ela e Domenico, mas de uma situação de liberdade e libertadora para ela. Daí Tereza trazer uma marca amorosa muito forte. Também não podemos deixar de observar que a vinda de Tereza lança diferença sobre o lar de Giulieta e Antônio, pois a partir da “traição” dela, os dois passam a ter uma vida familiar mais completa e pacífica. Tereza carrega a marca estrutural do amor, instituidor de desejo na estrutura.
Rosa, a outra ‘rondinèle’, é casada com Aurélio. Os dois são os pais de Ângelo. Ambos casam-se por amor, sendo essa sua importância, apesar das dificuldades enfrentadas. Este amor dará forças a Ângelo para buscar o progresso pessoal e profissional.
A obra O Quatrilho é uma ode, um louvor ao amor, na busca pelo amor e a conciliação entre os casais. Teresa, inicialmente, é casada com Ângelo, e Pierina, com Mássimo. No decorrer da história, vemos Teresa, uma mulher feminina, aproximar-se de Mássimo, um homem masculino. Os dois se apaixonam e vão embora da localidade, para viver o seu amor.
Pierina, filha de Gema, e identificada com esta, apresenta-se uma mulher fálica, que inicialmente vive o casamento como uma imposição social. Casar para auxiliar nos trabalhos da casa e gerar filhos para o trabalho na colônia. Com a traição do marido, ela acaba descobrindo a sua força feminina, seu poder de sedução e, aparentemente, descobrindo o amor, aproxima-se de Ângelo. Pierina e Ângelo, assim, progridem numa boa sincronia, formando uma família forte na localidade.
Os personagens de Roco e Scariot são os ‘iluminadores’, um para Teresa, outro para Mássimo, quanto à busca da liberdade e do amor. Os padre Gentile e Giobbe nos trazem, enquanto leitores, as vozes da repressão e da moral vigente na localidade: padre Gentile usa da prepotência e do poder que a Igreja Católica lhe outorga, enquanto seu representante, para ditar as normas e condutas, fazendo julgamentos nem sempre corretos e justos; padre Giobbe, ao contrário, é o padre justo, reflexivo dos acontecimentos e da vida, ele nos traz a visão do narrador, através da percepção dos fatos que ocorrem em Santa Corona.
Em Mapa de Viagem encontramos três poemas significativos: Declaração de Amor, um poema onde se abstrai que os lugares masculino e feminino, como a realidade, não são tão determinados, muitas vezes andam juntos, misturados; Quando o Amor, que parece fazer uma seqüência ao primeiro pois, após a descoberta do amor, os corpos se descobrem, se revelam, um se mostra ao outro, sabe-se do outro e de si mesmo através do olhar que lanço ao olhar do outro; e Os Retratos na Sala, que mostra o casal já mais velho revivendo sua vida nos descendentes, mostra também a visão da mulher mantida sob o jugo do marido, canalizando sua libido e sua dor na religiosidade.
Um estudo, nas palavras do professor Jayme Paviani, “é um abrir horizontes, um propor novos caminhos. O decisivo é fazer o caminho.”[3] O presente estudo, dos lugares masculino e feminino, na cultura da região de colonização italiana no Rio Grande do Sul, propõe isso, um novo olhar sobre esses lugares.
Antônio Candido nos ensina sobre a composição da estrutura do romance e sobre o sentimento de realidade que uma obra porta:
“O trabalho de compor a estrutura do romance, situando adequadamente cada traço que, mal combinado, pouco ou nada sugere; e que, devidamente convencionalizado, ganha todo o seu poder sugestivo. Cada traço adquire sentido em função de outro, de tal modo que a verossimilhança, o sentimento da realidade, depende, sob este aspecto, da unificação do fragmentário pela organização do contexto. Esta organização é o elemento decisivo da verdade dos seres fictícios, o princípio que lhes infunde vida, calor e os faz parecer mais coesos, mais apreensíveis e atuantes do que os próprios seres vivos.”[4]
Através da análise das obras literárias, na figura de seus personagens, se chega a uma idéia de que os lugares masculino e feminino não são estanques, além de não estarem vinculados a um corpo biológico. Um homem, biologicamente masculino, pode ser emocional, psíquica e estruturalmente feminino, assim como uma mulher, biologicamente feminina, pode ser masculina no campo estrutural. Os casais se constituem e acabam se completando em suas diferenças estruturais, de tal forma que se estabilizam, formando uma família regular.
Na região de colonização italiana, no estado do Rio Grande do Sul, a mulher não difere da mulher “universal”, sua estruturação e aspectos psíquico-emocionais que a estruturam como ser, mas esta mulher porta características singulares que fazem “marca cultural”, como comprovado pela sua apresentação nas obras estudadas.
Temos, tradicionalmente, pensado nas mulheres, desde a sociedade grega, fazendo chá e servindo aos homens, mesmo entre os apóstolos de Jesus, para citarmos a tradição cristã que, junto a civilização grega, nos constitui como estrutura histórico-antropológica. Quer seja apenas literatura, ou não, muitos historiadores têm dedicado suas vidas, provando que Maria Madalena era mais do que uma serva, estava ao lado de Jesus e seus apóstolos como membro efetivo do grupo. Se os evangelhos esqueceram-se dela, ou deliberadamente a ignoraram, não sabemos, não temos a certeza ainda. O que sabemos é que a mulher, enquanto membro de uma sociedade, tem crescido e buscado seu espaço na modernidade. Isso tem feito com que homens e mulheres saiam de uma visão apenas biológica de masculino e feminino para estudos mais amplos e mais corretos do que é ser um homem ou uma mulher. A cultura vigente apenas sedimenta os lugares tradicionalmente existentes. O que fica é um grande desejo de mudanças estruturais que busquem respostas mais condizentes com a realidade e com o desejo de cada um. Desejo esse estrutural, primeiro, marcadamente amoroso.
A obra literária é um tipo de conhecimento que representa aquilo que a psicanálise enquanto teoria, a sociologia, a antropologia, entre outras teorias enquanto ciências, já revelam. A leitura da obra traz uma forma de conhecimento que a realidade já traz. A obra de Pozenato consegue retratar a realidade e nos dá a impressão de seres vivos. Antônio Candido diz da importância de que:
“a personagem deve dar a impressão de que vive, de que é como um ser vivo. Para tanto, deve lembrar um ser vivo, isto é, manter certas relações com a realidade do mundo, participando de um universo de ação e de sensibilidade que se possa equiparar ao que conhecemos na vida.”[5]
Assim, as obras de Pozenato confirmam a vida das imigrantes italianos, sua dura realidade, de muita dor e trabalho, além de confirmarem o lugar da mulher na sociedade vigente, de inferioridade, de objectualização aos desejos do homem.
A constituição do feminino extrapola o regional. O feminino, enquanto especificidade de gênero, extrapola o regional e apresenta-se como universal, em suas diferentes abordagens. O que observamos, como especificidade regional, na região de imigração italiana, marcadamente vinculada ao fazer, ao trabalho, é que a mulher, enquanto esposa, enquanto lugar social feminino, se apresenta como uma “esposa/trabalho”, quero dizer, com isso, que a mulher, em sua maioria, vincula o lugar feminino, no casamento, como uma “tarefa para gerar filhos”, para auxiliar na produção, nos trabalhos nas colônias. Quando ela chega à menopausa, há um libertar-se, um viver mais espontâneo, desvinculado do “trabalho” de atender ao marido. Ela passa a ser uma mulher mais solta e, aparentemente, mais feliz, talvez mais feminina. Mas este lugar feminino é um engodo, porque ela só se apresenta mais fálica, mais “poderosa”, mais masculinizada. Observa-se esta condição “travestida” também nas viúvas, “mãezonas”, porque carregam em si o lugar de mãe e pai, poderosas.
O verdadeiro feminino, se é que há, é da ordem de um ultrapassar o falo, aceitar a castração e ultrapassá-la, viver com intensidade o seu lugar em qualquer momento.
A análise do texto literário, também uma arte, faz os personagens ganharem vida. Tem-se a sensação, ao analisá-los, de que estão vivos, presentes entre nós, o que dá força ao texto analítico. Analisar uma obra, deixando-se levar pelas personagens, traz uma riqueza de detalhes, enriquecendo o saber teórico, aprofundando-o como nos confirma Rosenfeld:
“Somente quando o apreciador se entrega com certa inocência a todas as virtualidades da grande obra de arte, esta por sua vez lhe entregará toda a riqueza encerrada no seu contexto. Neste sentido pode-se dizer com Ernst Cassirer que afastando-se da realidade e elevando-se a um mundo simbólico o homem, ao voltar à realidade, lhe apreende melhor a riqueza e profundidade. Através da arte, disse Goethe, distanciamo-nos e ao mesmo tempo aproximamo-nos da realidade.”[6]
A palavra sexo, secare, em latim, significa cortar, separar. Masculino e feminino são divisões de um mesmo ser. Um termo só faz sentido em contraposição, em comparação ao outro. Para que haja sexuação, é necessário que o sujeito se inscreva na função fálica, independentemente de sua anatomia. A diferença sexual é um recorte simbólico, que é resultado de movimentos psíquicos que permitem ao sujeito uma referência a seu sexo anatômico, que o designará homem ou mulher.
Ricardo Timm de Souza, em seu artigo Identidade e diferença: da mera identificação ao diferencial de gênero, para a obra As Mulheres e a Filosofia, nos apresenta uma bela conclusão quando diz que gênero é uma “construção”, um “constituir” diferença, ato ético, humano por excelência:
“‘Construir’ gênero – ou seja, ‘constituir’ diferença - é um ato humano por excelência, um ato ético que supera as determinações da identidade ao assumir a contingência do “ainda não”, ao ser no tempo e apostar na construção do tempo- do novo tempo: o tempo da diferença . Mas diferença real, para além do jogo de espelhos da racionalidade tradicional e das infinitas gradações de violência que ela comporta e justifica em sua hipertrofia tautológica.”[7]
Ao término deste trabalho, não com respostas estanques, e sim com mais perguntas, mas o que importa é que a arte, novamente, nos dá uma solução parcial, porque a vida não é final, é sempre parcial. Na voz de Antônio Carlos Jobim, em seu belo poema/canção Águas de Março, sempre ouvido em não menos nome do que o de Elis Regina, tem-se o masculino e o feminino novamente simbolizados e presentes:
“É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá, candeia, é o Matita Pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra na atiradeira
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão
É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto o desgosto, é um pouco sozinho
É um estrepe, é um prego, é uma ponta, é um ponto
É um pingo , pingando ,é uma conta ,é um conto
É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada
É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um passo, é uma ponte, é uma sapo , uma ra
É um Belo Horizonte, é uma febre terçã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração”
Apesar das pedras, dos paus, das dificuldades, chega-se ao fim do caminho, um pouco, não de todo, sozinhos, com mistérios profundos a desvendar, quer queiramos ou não.
É a luz da manhã iluminando o caminho na promessa de vida em nossos corações. [...] São as águas (amor) de março fechando o verão e fechando um “início” de trabalho.
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[1] CANDIDO, A. et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1972. p.76.
[2] Idem. p.77.
[3] PAVIANI, Jayme. Donde se avista o caminho. Jornal Pioneiro. Almanaque. 26 e 27 de março de 2005. p. 23.
[4] CANDIDO, A. et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1972. p.79.
[5] Idem. p.64.
[6] ROSENFELD, Anatol. Literatura e Personagem. In: Idem. p.49.
[7] SOUZA, Ricardo Timm. Identidade e diferença: da mera identificação ao diferencial de gênero. In: TIBURI, Márcia, MENEZES, Magali de, EGGERT, Edla (Org.). As Mulheres e a Filosofia. São Leopoldo: Unisinos, 2002. p.242.
VERA MARTA REOLON
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terça-feira, 28 de abril de 2020
Sorôco, sua mãe, sua filha – Guimarães Rosa
Guimarães Rosa leva-nos do regional ao universal através da linguagem e mostra-nos ser, desta forma, um dos maiores escritores brasileiros e mais, coloca o Brasil com seu nome entre os melhores da literatura mundial.
Em seu livro Primeiras Estórias nos insere, a meu ver, nas questões básicas a educar crianças, as primeiras verdades: sobre a solidariedade, sobre a compaixão(mesmo que este termo esteja vinculado ao religioso!), sobre a morte, sobre a infância, sobre o amor fraterno e sobre o amor romântico, sobre sexo, sobre o interior e suas vicissitudes, sobre o urbano e suas mazelas, ..., sobre a vida.
O livro divide-se em 21 contos, aparentemente independentes entre si, mas que, observando bem, têm uma ordem ímpar. Os dez primeiros parecem lançar questões que, tendo “O Espelho” como eixo central, são refletidas nos dez finais como reelaborações.
O conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, terceiro da série inicial, passa-se numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, no espaço urbano “subindo a Rua de Baixo” até a estação férrea, onde um trem levaria a mãe e a filha de Sorôco para Barbacena, longe, para interna-las em uma instituição para loucos.
Na diligência para Barbacena elas seriam acompanhadas por “Nenêgo, despachado e animoso” e por “José Abençoado, pessoa de muita cautela”. O Governo pagava a ida delas para a instituição, pois Sorôco as atendera por bastante tempo sozinho, mas com a passagem do tempo elas pioraram, “não dava mais conta”.
Ao chegar à estação Sorôco, “homenzão, brutalhudo de corpo, com cara grande, uma barba fiosa, encardida de amarelo”, tendo uma a cada lado, a mãe de preto, aparentando uns 70 anos, a filha vinha muito enfeitada, “de disparates, num aspecto de admiração, com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça nos espalhados cabelos”, a mais moça volta a cantar a cantiga que cantava na subida da Rua de Baixo, a mãe de Sorôco desprendida de seu braço, sentada na escada da estação a olha com “amor extremoso” e canta junto a canção, “cantiga mesma da outra”, “elas cantavam junto, não paravam de cantar”.
Na hora da partida do trem, não há despedidas, pois “elas nem haviam de poder entender”. Muitas pessoas observavam a partida delas.
Chega o trem, pega o vagão de grades que leva as duas para sempre...
Sorôco não espera “tudo se sumir”, não olha, se sacode, se vira para ir embora, as pessoas todas estão emocionadas com toda a situação. Sorôco volta para casa como se estivesse “indo para longe”, pára e, de repente, passa a cantar a cantiga delas. Todos caminham com ele, entoando a canção. “Foi caso sem comparação”. Todos indo para a casa de Sorôco, “de verdade”, indo “até aonde que ia aquela cantiga”.
Local/Espaço/Tempo/Narrador:
Local do conto: estação de trem de uma cidadezinha do interior de Minas Gerais.
Espaço: de uma caminhada até a estação de trem, desde a Rua de Baixo.
Tempo: tempo razoavelmente presente, “dias de hoje”.
Narrador: alguém que está a observar a cena na estação, um dos que vieram ver o acontecimento.
Análise do Conto:
O vagão era novo, mas as janelas eram de grades (feito as de cadeia, para presos). As duas mulheres seriam levadas para longe, para sempre.
Muitas pessoas foram à estação para ver o acontecimento.
Ficava o vagão no fim da esplanada, ao lado do curral de embarque de bois.
Boi – touro castrado
Sorôco – não era castrado, tinha filha, mas ela se ia para sempre – Sorôco ficaria sozinho (era viúvo).
Mãe + de 70 anos
Filha só tinha essa ficaria só com a partida delas
Sorôco era viúvo e não tinha parente algum
O trem ia para Barbacena, para longe!
Sorôco era um homenzão brutalhudo de corpo, com a cara grande... – as crianças tinham medo dele.
Ele vinha bem vestido e calçado.
Filha vinha fantasiada, vestida de “maluco”, põe-se a cantar uma cantiga inteligível, com os olhos voltados para o alto.
A velha estava “vestida de velha”, de preto.
Vinham no braço de Sorôco, uma de cada lado.
Diferentes, se assemelhavam
Dicotomia – o narrador parece confuso, “amalucado”, entristecido
Parecia casório, parecia enterro
Sorôco veste-se com sua melhor roupa, todos se compadecem dele e ele agradece.
Todos dizem que Sorôco tivera muita paciência com elas e agora teria alívio.
A mãe se solta do braço de Sorôco e se senta no degrau do vagão. A velha não atende, ela olha para a neta com amor extremoso (estremado e amoroso?).
Elas se entendiam, uma entendia a linguagem da outra – ambas cantavam a mesma cantiga.
Não se despediram, porque elas não entenderiam.
Iam junto com elas o Nenêgo, despachado e animoso, e o José Abençoado, pessoa de muita cautela.
Pessoas boas que cuidariam bem delas.
A cantiga “era um constado de enormes diversidades desta vida”.
O autor coloca aqui o nome de Sorôco em uma linha após o evocado da cantiga. Dá impressão de Sorôco ser ele um constado de enormes diversidades desta vida. Um ser oco, solitário, sozinho.
Sorôco fica só, oco sem beiras (sem elas em cada lado) – não se queixa, para dar exemplo, não falar.
Todos entristeceram-se.
Ele volta para casa, “indo para longe”. Como elas.
Parou – parecia que ia perder o de si, parar de ser – enlouquecer também, porque elas faziam falta! – então ele as traz de volta na cantiga delas...
Todos acompanharam Sorôco para sua casa, todos cantando, indo até onde ia aquela cantiga (para Sorôco não ficar só em sua loucura, todos enlouquecem?)
Análise Regional/Universal:
A cantiga aparece aqui como signo da loucura, signo da anormalidade.
O canto ao final é cantado por todos.
Loucura individual X Loucura Coletiva
O que é a loucura mesmo?
foi um caso sem comparação – a comunidade toda cantando – quem é realmente louco?
Semelhança com O Alienista, de Machado de Assis
Primeira estória, porque fronteira decisiva entre razão e loucura, relativização da loucura, como dado local ou coletivo.
Tema deste conto
Loucura enquanto originalidade, é o que todos buscamos sempre.
O louco está aí para fazer a revelação da loucura coletiva.
Também aparece o Governo como agente de enclausuramento. Aqui, Guimarães Rosa coloca o povo como “a gente”.
Em uma analogia Agente, a gente – todos somos agentes de enclausuramento dos diferentes, porque não aceitamos sua diferença!
Em uma sociedade real os mitos se perdem, são revividos na arte e na literatura. Aqui, Guimarães Rosa revive a referência às origens na dicotomia:
Aparência x essência
o aparente, o que aparece como real não faz parte do essencial, que é o âmago da vida.
“Podemos igualmente colocar-nos uma questão: não teria teria o indivíduo, em função de diversos fatores atuais, tendência a visar, hoje em dia, mais o “padrão”, do que o “normal”?
Com efeito, no momento em que o mercado comercial aos poucos substitui os antigos produtos artesanais, por vezes excelentes e por vezes muito inconstantes, por artigos industriais padronizados (alimentação, artigos domésticos, móveis, construção, etc.), dos quais se pode dizer que certamente seu nível está abaixo do refinamento, contudo em geral acima da mediocridade, não seria espantoso ver, paralelamente, o ser humano sacrificar-se à mesma necessidade de segurança, conformidade, de polivalência mal diferenciada em sua própria utilização de si mesmo.”1 pg.36
“Não mais se favorece a originalidade e, sem respeitar a originalidade, podemos ainda falar de “normalidade” no sentido pleno do termo?... definir a “normalidade” como uma adaptação pelo menos bastante perceptível aos dados estruturais internos estáveis e exteriores móveis, somos levados a considerar como “normais” os comportamentos mais ou menos originais de todas as estruturas, neurótica ou mesmo psicótica, não descompensadas.”1 pg.39
“Quinta/D. Sebastião, Rei de Portugal – Fernando Pessoa
Louco, sim, louco, porque quiz grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Porisso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que ha.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nella ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadaver adiado que procria?
20-2-1933”
Bibliografia:
BERGERET, Jean. Personalidade: normal e patológica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. 1
PESSOA, Fernando. Antologia Poética de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Ediouro.
ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
VERA MARTA REOLON
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terça-feira, 28 de abril de 2020
ANA – Amor Narcísico Ancestral – Marca Primordial
Resumo: Homens e Mulheres sul-riograndenses, formação do mito gaúcho, identificatório do lugar masculino/feminino de nosso povo. Relação de Ana Terra com o vento.
Palavras-chave: Homem, mulher, vento, amor.
Para que sejamos marcados como desejantes, tenhamos “voz plena de valor”, precisamos da marca primordial de instituição narcísica, que denominamos Amor do Outro, Outro este que faz para nós um papel materno, materno de mãe instituidora da marca amorosa que levaremos em nossas vidas. Sem esta marca inicial não somos considerados estruturalmente sujeitos, donos de uma identidade, estaremos sempre presos a alguém que nos deve conduzir pela vida, pois esta marca é primordial, necessária em nossa frenética luta pela libertação. Com a marca podemos nos libertar e seguir, sem a marca estamos presos ao desejo do Outro, inclusive clones que seguem a copiar o “preso”, ao invés de buscar identidades próprias.
“Freud via nos primórdios da experiência psíquica uma identificação primária que consistiria na “transferência direta e imediata” do ego em formação para o “pai da pré-história individual”, o qual possuiria as características sexuais de pai e mãe e seria um conglomerado de suas funções.”- PAI DA HORDA PRIMITIVA[1]
A história de Ana Terra faz-nos pensar sobre esta questão. Ana, enquanto sujeito, libertou-se, viveu seu desejo, foi em busca de algo com força e coragem e assumiu as conseqüências de seus atos (responsabilidade, INCLUSIVE SOBRE ROUBOS E TORTURAS – se as idéias não são minhas cito de quem as são – depois de autorizadas e assinadas, assumidas como verdadeiras) , mesmo que isso tenha implicado a dor extrema da rejeição paterna, da afiliação. Assumiu seu filho, viveu, apesar de tudo, até mesmo do sofrimento pela morte de Pedro.
Ana também é modelo para Érico Veríssimo da mulher regional. A mulher gaúcha, desde os primórdios é uma mulher forte, longe de ser a prenda enfeitada dos Centros Tradicionalistas, a gaúcha é uma alma forte, lutadora, trabalhadora em todas as tarefas que lhe impõem, ao lado do homem em todas as “lidas” e mesmo na falta dele, quando vai guerrear ou se ausenta para a caça ou para as saídas da estância para a cidade ela assume um lugar duplo, de identidade masculina e feminina, e batalha para que a vida se dê.
“..conforme os estatutos do MTG e CTGs não há nenhum cargo de importância reservado à mulher. ..São raras as intervenções de mulheres em congressos tradicionalistas, conforme seus anais. As atividades femininas se restringem, quase sempre, à escolha da primeira prenda,etc...Por diversos fatores, a arte tradicionalista não reflete o peão em sua forma real, como ele realmente se estrutura socialmente, mas sim como o patrão gostaria que fosse...”[2]
Rio Grande do Sul, estado desabitado, fronteira do país, clima diferente, terra diferente,...,o vento – o Minuano.
O Rio Grande do Sul, um estado tardiamente habitado, pelas dificuldades de aqui chegar, pela distância do mar e impossibilidade de portos navegáveis,.., mas também porque o colonizador preferiu estabelecer-se mais ao norte, em terras mais paradisíacas, com praias, sol, calor. Assim, não sabendo bem se era espanhol, português, o RS, sendo um pouco dos dois, mantinha-se perdido entre esses grupos culturais tão distintos. Quando o país Brasil passa a se preocupar com as fronteiras, precisando delimita-las para formar uma base ao sul, começa a povoar estas terras. As dificuldades com o clima, a terra “generosa” (boa e voluntariosa), singular, basalto (pedra resultante da lava de vulcão “esfriado”) terra roxa (ao centro) e terra batida, arenada ao sul, faz com que o povo que aqui permanece seja visto como um povo de “raça”, raça distinta, forte, audaz (“faca na bota”). Mas para o povo, misto de índios, negros, imigrantes, mestiços, falta uma identidade. Era preciso achar uma identidade. Identidade de terra: a própria terra, o vento característico. Mas também era preciso achar uma identidade de raça: como são seus homens, e suas mulheres?.
Os homens, sabe-se, sempre foram audazes guerreiros, “peleando” na defesa de suas terras, de suas fronteiras, para si e para o país. As mulheres, bem essas submetem-se a seus maridos, submetem-se àqueles que amam (quando os casamentos eram arranjados a submissão não se dá, o que autentica essa “passividade” é o amor), porque aqui é RESPEITO. Mas, quando eles partem para seus “jogos de guerra”, elas assumem a casa, a plantação, a fazenda, a família, suas vidas e suas dores,... e esperam.
Érico Veríssimo, gaúcho, escritor/poeta vai em busca da criação de mito, mito de origem desse povo. Povo que, pertencendo ou não a esta nação brasileira, queria e quer uma identidade própria - mulher correta – homem correto, mulher ética – homem ético, mulher honrada- homem honrado, que o identifique e diferencie dos demais. Todo povo precisa de um mito onde se espelhar (que me diga quem sou!), de um lugar a que posso recorrer quando nada mais me resta e devo (preciso!) recriar-me. Surge então, O Tempo e O Vento. A obra começa determinando a epopéia, partindo do O Continente e nos mostrando quem são os homens e as mulheres gaúchos. O homem aqui representado pelo Capitão Rodrigo Cambará, portador do falo para a guerra, para a disputa, à luta. A mulher: Ana Terra, aquela que sabe ouvir o vento, que adquire nele sua força, força vital para a vida, para agüentar as intempéries que a vida oferece.Rodrigo Cambará, marca masculina, Ana Terra, marca feminina. O Tempo e o Vento narra a saga da família Terra-Cambará, em cem anos de história, principiando na figura de Ana Terra, sua filha Bibiana, que se casa com Rodrigo Cambará e assim sucessivamente, até o século XX e a derrocada da família.
As mulheres gaúchas estão em Ana Terra, e ela nelas. Ana é aquela que sabe ouvir o vento. Vento diferenciado, vento que traz história, tempo, dor e prazer, amor COM O ÍNDIO, COM O ÚNICO QUE AMOU. Vento de vida, vento de morte. Vento que também faz marca mítica, pois ouvi-lo implica ter dons premonitórios, dons superiores aos demais, implica ser sobre-humano para o bem e para a dor. A alguém que é semi-deus é exigido mais, geralmente acompanhado de mais dor e não mais prazer, pois à semelhança de Jesus Cristo, homem-Deus “porque mais te foi dado, mais te será exigido”.
Se assim procedem, seriam elas suas mulheres? . Não! Homens fortes – Mulheres fortes, senão não é casamento.
O Vento Minuano é que dá força a Ana, é dele que ela extrai vida, falo, força vital para agüentar as intempéries e viver. Vento caracterísitco, vento com som, grito, sunido, um choro, vento dolorido, que diz de toda dor que há.
“..se a palavra pênis fica reservada ao membro real, a palavra falo, derivada do latim, designa esse órgão mais no sentido simbólico.... o adjetivo “fálico” ocupa um grande lugar na teoria freudiana da libido única (de essência masculina), na doutrina da sexualidade feminina e da diferença sexual e, por fim, na concepção dos diferentes estádios... o falo é um atributo divino, ..Lacan faz do falo o próprio significante do desejo, ..”[3]
“..sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando...”[4]
Às mulheres era relegado um segundo plano nas estâncias, pelos que detinham o poder, sem falo (líder tem falo, é reconhecido, valorizado), sempre à mercê dos anseios do dono da casa, ora trabalhando com eles na “lida” da terra, ora cuidando da casa, das roupas, da vida. Em casa de Ana não era diferente, sua vida era o trabalho, não havia diversão, alegrias, trocas. Na falta de pessoas com quem se comunicar Ana comunica-se com o vento. O Vento aqui é uma presença/ausência, polifônico, Bakhtin, que preenche os vazios de comunicação, de tristeza, de solidão.
À semelhança das vozes polifônicas de Dostoievski, no olhar de Bakhtin, Érico Veríssimo, transpõe diálogos e pensamentos de Ana com o vento que dizem do não-dito, dizem e dão vida. Não há possibilidade de miscibilidade do que é singular, particular. O que pode haver é apenas trocas, só assim haverá plenitude.
“a multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes ... a multiplicidade de consciências eqüipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade.”[5]
A força de Ana, e sua relação com o vento, não se desfaz nem com as agressões e afastamentos do pai. Ana só se dobra ao amor, em sua relação com “Pedro Missioneiro”, índio/marido, morto pelo pai e irmãos de Ana, porque a engravida sem casar (embora a pureza dos costumes e da sinceridade amorosa de Pedro para com Ana).
Pedro, desde o primeiro momento, abala Ana com sua simplicidade, sagacidade, força e maciez.
“tinha uma voz que não se esperava daquele corpo tão vigoroso, macio e doce.”[6]
Ana ouvia além do que era dito. Ana ouvia com o coração. Alma, singular e única, não transferível, não miscível, ligada ao corpo e ao espírito.
Pedro, à semelhança de outros guaranis, aprendera a cultura do branco, aprendera a língua, os costumes e foi enviado pelo governo brasileiro a defender as fronteiras do RS, como soldado da “pátria”. Conseguiu progredir até o cargo de tenente. Sabia latim, castelhano, música, instrumentos, entre outros, ensinados pelos jesuítas nas missões jesuíticas do RS.
“A quem interessar possa. Declaro que o portador da presente, o Ten. Pedro Missioneiro, durante mais de um ano serviu num dos meus esquadrões de cavalaria, tomando parte em vários combates contra os castelhanos e revelando-se um companheiro leal e valoroso. Rafael Pinto Bandeira.”[7]
A vida para Ana e Dona Henriqueta, para as mulheres então, na estância era triste, sem atrativos, solitária, trabalhosa, no atendimento da casa, do trabalho, sem distrações, vida para o trabalho, sem contatos sociais, fora o da família, que também se mantinha à distância. Daí a relação de Ana com o vento, mística, de escuta. Ana, quando passava alguém pela estância se extasiava (era moça, com os hormônios a funcionar, a pedir vida!). Daí a chegada de Pedro mexer tanto com Ana, mobiliza-la na direção da vida.
Pedro trabalha na estância, junto aos Terra. Pedro reproduz o sistema aprendido nas missões jesuíticas no trabalho com a terra.
A vida na estância transcorria dentro da normalidade, levar a produção, trazer materiais necessários à vida diária, rezar, mas era uma reza desvinculada da religião.
Pedro traz a história do Natal e outras à família Terra. Ana escuta Pedro e a paixão se instala.
A mulher representada em Ana era mítica, sabia o que iria acontecer, o que devia acontecer, antecipava dor e vida.
Pedro, como os demais guaranis, viviam o sexo livremente, sem as imposições religiosas ou familiares. Deita-se com Ana. Mas para ela, ter-se deitado com Pedro, viver este amor só a faz refletir depois: pensa, pensa muito e antecipa também o destino de Pedro.
Ana engravida, é execrada pelos homens da casa, a mãe a auxilia, mas ela se mantém, mesmo quando os irmãos levam Pedro à morte e o enterram.
Nasce Pedrinho, a vida na estância continua como sempre. Ana agora tem um companheiro para sua solidão?. Por quê sempre dor?
Aos poucos, a família (o pai e os irmãos) passa a re-incluir Ana, a conversar com ela. A dor cicatriza, ferida, Ana continua a escutar o vento.
Após a morte da mãe, o barulho da roca de fiar traz a alma da mãe, a escuta dessa situação Ana divide com o filho, a relação dela com Pedrinho é intensa.
Ana e sua força, Ana e sua garra, Ana...a mulher, mulher de bravura, mulher que não teme, que faz qualquer coisa para salvar os seus, mesmo que isso demande dor extrema e selvagem como o ataque dos castelhanos, ataque à sua casa, à sua honra, à sua vida. Defende a todos, sujeita-se a dor para que os demais não sofram. Castelhanos saqueadores, ladrões, assassinos, maus cruéis.
A força volta-lhe e ela decide viver, levar a família, sai em busca de novos horizontes, inclui a família (que restou) em uma caravana, aí sua profissão de “parteira” se instala, quando ela auxilia as mulheres a dar a luz aos filhos que trazem em seus ventres. E a Ana mística, que dá luz onde passa se instala para sempre na alma de todas as mulheres rio-grandenses. Naquelas que têm alma própria.
Nenhum como Érico soube estabelecer raízes identificatórias em nosso povo, raízes estas que permanecem e são a base de nossa história.
[1] KRISTEVA, Júlia. No Princípio era o Amor. São Paulo: Brasiliense, 1987. pg.36
[2] GOLIN, Tau. A Ideologia do Gauchismo. Porto Alegre: Tchê Editora, 1983. pg.92 e 93.
[3] ROUDINESCO, Elisabeth, PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. pg.221.
[4] VERÍSSIMO, Érico. Ana Terra. São Paulo: Globo, 1995. pg 7.
[5] BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. São Paulo: Editora Forense, 1997. pg 5.
[6] VERÍSSIMO, Érico. Ana Terra. São Paulo: Globo, 1995. pg 21
[7] Idem. pg.23
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069