artigos científicos
Jurisprudência (1887)
Munch
81,5x125,5cm
Nasjonalgalleriet
Oslo
por VERA MARTA REOLON
Se deixamos de reconhecer como nosso o que o é, recusamos o que somos pelo que não podemos ser (já que o outro não nos reconhece como idêntico a ele), ou seja, recusamos a diferença para desejar uma identidade impossível. A identidade se cria e se recria, se faz através de sua rememoração que implica repetir, mas necessariamente diferenciar. (MILAN, 1984, p. 87-88).
A escrita, “o que ele escreve é a consequência do que ele é” (p.77). Mas a escritura é a ex-sistência presente e com sentido: “Quando se escreve, pode-se muito bem tocar o real, mas não o verdadeiro. [...] O real encontra-se nos emaranhados do verdadeiro. [...] Só é verdadeiro o que tem um sentido, o real não tem sentido algum”. (LACAN, 2007, p.78-112).
Entre todos os problemas da criação artística, o que mais imperiosamente requer – e até para o próprio artista, acreditamos – uma solução teórica, é o do estilo [...] o artista, com efeito, conceberá o estilo como o fruto de uma escolha racional, de uma escolha ética, de uma escolha arbitrária, ou, então, ainda, de uma necessidade sentida cuja espontaneidade se impõe contra qualquer controle, ou mesmo que é conveniente liberá-la por uma ascese negativa” (LACAN, 1987, p.375).
O segredo do estilo está na enunciação:
O enunciado é lugar das paródias, do pastiche de todos os jogos de linguagem, mas a enunciação vem da memória e do esquecimento do autor, dos segredos do seu corpo, do ritmo pulsátil de sua mão que segura o estilete da escrita, na letra, sua marca inaugural, inscrição primeira que se escava no Real (BRANDÃO, p.53-54).
Numa versão psicologizante de estilo, no entanto, Spitzer (1970) vê o estilo como desvio de uma norma. Assim, o detalhe é revelador da obra, e o estilo expressa o espírito do autor.
É por esse conjunto de razões que Lacan nomeia de canalhice a paixão de não querer saber do desejo, a paixão de criar metalinguagem para representar a verdade na estabilidade do enunciado, elidindo a diferença real entre enunciação e enunciado, entre desejo e sua representação. [...] A expressão “queda do objeto” parece designar algo bastante diferente da realização da fantasia, que Lacan chamou de travessia da fantasia. Atravessar a fantasia é esvaziar o objeto da consistência imaginária que garantia a ele esse lugar determinante nas formas de gozar próprias a um sujeito. É, portanto, dar lugar ao objeto como causa de desejo, não mais de gozo mórbido. Queda do objeto quer dizer, pois, perda de gozo. [...] A queda das identificações constitutivas do eu como corolário desse processo é precondição para que o objeto, e não o eu, possa emergir através do estilo. (IANNINI, 2013, p.124 & p.306-7).
Para Whitehead, o estilo é a eminência do falante, ponto mais alto a que este pode chegar. O estilo é a letra, a qual é efeito do discurso. Instalação sintomática com incidências decisivas no campo da ética, o estilo, além de ser um lugar, é um modo de operação. Tentar depreender os elementos que constituem a sintomática brasileira implica, pois, para a psicanálise, destacar o estilo que nela vigora (MAGNO, 1985, p.69).
Está em nosso poder sermos bons ou maus, fazer ou não fazer. A maldade, neste sentido, é voluntária. Uma vez que nos tornamos injustos, ou seja, pelo hábito, não é mais possível não o ser.
17 de fevereiro de 2021
SEMIOTIZAÇÃO: A construção de um saber educacional voltado à interpretação da imagem
Guilherme Reolon de Oliveira
Há consenso que, a partir da segunda metade do século XX, o mundo sofreu mudanças radicais em todos os meandros sociais, especialmente no que concerne à cultura. Uma série de rompimentos paradigmáticos, refletidos no cotidiano e no agir humano, foi provocada por sui generis acontecimentos históricos. Com a inserção da mídia na sociedade, a sociedade passa a se configurar de maneira muito diferente, ora refletindo o veiculado, ora servindo de fonte para aqueles se configurarem.
Características singulares marcam a atualidade, denominada por alguns de pós-modernidade, sendo o individualismo, a fragmentação, o consumismo e a informação as mais mencionadas. Sob a égide da televisão e da internet, o tempo contemporâneo é um período de simulacros midiáticos que, mais que influenciar comportamentalmente, agem sobre a estruturação do sujeito. Atuam, assim, como grande Outro, conceito introduzido por Jacques Lacan, a partir de Hegel, para explicar o campo de inscrição de significantes aos quais o sujeito está à mercê.
Para Lacan, assim como para Hegel, em sua Dialética do Senhor e do Escravo, na qual há uma interdependência entre senhor e escravo para ambos existirem, só há sujeito se há Outro: é o Outro quem fornecerá as ferramentas (os signos) essenciais ao sujeito para sua constituição.
Desde o início do século XX, a cultura é determinada pelos meios de comunicação. A contemporaneidade é produto da indústria cultural, termo empregado por Adorno e Horkheimer para denominar o conjunto de fatores que, de certa forma, massificam e generalizam os modos de vida sociais, que propiciam à mídia um poder de contenção do desenvolvimento da consciência das massas. Desde então, a cultura é uma mercadoria, produzida segundo as regras industriais. A mídia, ocupando o lugar da família, da Igreja e da escola, acaba por recalcar o desejo do sujeito, sua diferença; instaura um não-objeto, objetos simulados, causas de pseudo-desejos.
O estruturalismo, neste sentido, especialmente com Foucault, faz uma crítica da atualidade, questionando seus pressupostos e problematizando a ética e a política vigente. Ele aborda nosso tempo a partir do que denomina de “sociedade disciplinar”. Essa sociedade, metáfora da vivência contemporânea, caracterizada por métodos de vigilância e controle, atua a partir de um dispositivo: os micropoderes, que, não percebidos, agem em todos os pontos relacionais.
Outra metáfora, essa da crise do homem moderno, pode ser encontrada em A Metamorfose, de Kafka. Gregor Samsa, o metamorfoseado em inseto monstruoso, é o homem condenado à rotina, aprisionado no determinado, sujeito pacato, que, através de um sintoma, tenta sair do mundo sufocante, desse mundo apenas de trabalho, imposto pela sociedade (pós-)industrial. É o sujeito contemporâneo: em crise existencial, inserido num contexto disciplinar, que adapta os indivíduos aos seus interesses.
Isso, pois a pós-modernidade é um período atribulado, cujos valores são voláteis e descartáveis. A sociedade, baseada no consumismo e no espetáculo, exalta a aparência. As relações sociais são medidas pelo capital. As grandes companhias de entretenimento exercem poder de manipulação sobre as massas. O diálogo foi substituído pela linguagem virtual. Os relacionamentos, pela ficção ou pela superficialidade.
Nosso agir, assim como o conhecimento, está fragmentado, consequências dos movimentos cartesiano e positivista. Simultaneamente ao progresso técnico e cientifico, assistimos ao endeusamento da ciência, fechada em uma visão mecanicista. Com a superespecialização, advinda da separação das ciências em disciplinas, em caixas, cada vez sabemos mais sobre menos. O pensamento, nesse sentido, torna o homem um ser desconectado de seu meio.
Na sociedade pós-moderna, o sujeito se constitui de maneira diferenciada, cujo Outro, enfraquecido, perde valor ao Outro substituto, campo ocupado pela mídia. É o que se observa, metaforicamente, em O Perfume, obra de Patrick Süskind, que ilustra a trajetória de Jean-Baptiste Grenouille, sujeito nascido na imundície – física e emocional. Não-desejado, sem-nome e descrito como “sem cheiro”, Grenouille não foi inscrito no discurso social, na linguagem. Dessa forma, busca um Outro substituto, uma vez que o Real, não desejando ocupar esse lugar, o deixou em aberto.
Grenouille adapta o olfato a esta função, a esse campo. Assim, conhece o mundo através do cheiro, recebe seus significantes a partir desse novo referencial. O olfato, logo, é seu Outro, sua base sígnica, simbólica. A estrutura contemporânea é a estrutura psíquica descrita, metaforicamente, em Grenouille, sujeito constituído através de um Outro substituto, a saber a mídia. Com a figura paterna anulada, uma vez que o Outro, que inscreve Nome-do-Pai no sujeito, é substituto, inumano, ficcional, o homem da pós-modernidade não abstrai, não introjeta Lei. O discurso ao qual o contemporâneo está inscrito, então, é o do consumo, do espetáculo, líquido, que privilegia a congregação dos iguais à singularidade.
O tempo parece modificar com a tecnologia. Há uma aceleração, que remete a uma situação de caos. Como parar o tempo, já que a tecnologia adquire vida própria, impossível de ser detida? Sem agirmos para cessar nosso tempo, adaptarmos nossas necessidades a uma nova rotação, como ficaremos? A falta de tempo para realizar tudo o que nos é incutido fazer, frente ás necessidades que são criadas constantemente pela onda mercantil, nos fere. Com isso, nos sentimos perdidos. Por isso, a busca por respostas imediatas, por medicamentos, por terapias breves, por aparelhos mais velozes. Qual a saída? Eis uma opção à sociedade que prima pelo visual e utiliza da ignorância nesse sentido para manipular e persuadir: uma educação voltada à alfabetização das imagens, uma educação aos signos imagéticos. Pois, como coloca Giovanni Sartori (2001), “é bastante evidente que o mundo em que vivemos já está se apoiando nos ombros da 'geração-televisiva': uma espécie recentíssima de ser humano criado pela tele-visão – diante de um televisor – antes mesmo de saber ler e escrever” (p.8). Ou seja, o sujeito está diante de um espectro imagético, cuja decodificação consciente é, sobremaneira, de maior complexidade que a dos signos linguísticos formais. Se ele não possui as ferramentas essenciais para o entendimento destes últimos, o que dizer em relação àqueles? Sem dúvida, no mundo regido por imagens, o contemporâneo, é mais que necessária uma educação para essa realidade. Não basta decodificar letras, é preciso entender e compreender as imagens. Caso contrário, elas continuarão exercendo papel estruturador, uma vez que não passam pelo nível consciente: introjetam-se diretamente nos registro do Real.
Tal “semiotização”, um saber educacional voltado à interpretação das imagens, cremos, é fundamentado no que hoje se convenciona como media literacy, ou literacia (alfabetização midiática). A Unesco sugere, nesse sentido, desde 2016, a MILID, uma alfabetização para a mídia, a informação e o diálogo intercultural, estabelecendo diferentes dimensões das competências midiáticas: linguagem, tecnologia, estética, produção e difusão, ideologia e valores, processos de informação. Um desafio e uma urgência, especialmente em tempos cujas fake news se proliferam, bem como os discursos de ódio e os cancelamentos nas redes sociais.
Referências
ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1981.
_______. Vigiar e punir. 21 ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1992.
KAFKA, Franz. A Metamorfose. São Paulo: Nova Cultural, 2002.
LACAN, Jacques. Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1992.
LIPOVETSKY, Gilles. Metamorfoses da cultura liberal: ética, mídia, empresa. São Paulo: Sulina, 2004.
SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
SARTORI, Giovanni. Homo videns: televisão e pós-pensamento. Bauru: EDUSC, 2001.
SODRÉ, Muniz. A máquina de Narciso: televisão, indivíduo e poder no Brasil. São Paulo: Cortez, 1994.
SÜSKIND, Patrick. O perfume: história de um assassino. São Paulo: Círculo do Livro, 1985.
Palavras-chave: Imagem. Literacia. Semiotização. Mídia. Estruturação do sujeito.
Grupo de Trabalho: GT Educação Básica
17 de fevereiro de 2021
O futuro da Academia
Vera Marta Reolon
O que aqui exponho é resultado de meu trabalho como docente em Educação na UFRGS, especificamente nas disciplinas de Psicologia da Educação I e II e Intervenção Psicológica e Necessidades Educativas Especiais. Ambas disponibilizadas aos cursos de Licenciatura da Universidade. Tais disciplinas, especialmente Psicologia da Educação I e II, seguiam basicamente como orientação teórica as diferentes teorias e teóricos da aprendizagem. Quanto à disciplina de Intervenção Psicológica e Necessidades Educativas Especiais preparei Plano de Ensino tendo em vista a disciplina ter iniciado a partir de meu interesse em ministrá-la aos licenciandos (a COMGRAD de Licenciatura em Matemática havia autorizado a incorporação desta como obrigatória para o curso). Assim sendo foquei psicanálise lacaniana.
Se, junto com Derrida, acreditamos que neste mundo às avessas o que pode responder por mudanças (?) é a psicanálise, penso que a psicanálise pode, para começar, fazer uma reversão em sua tão estabelecida ética, partir para uma nova ética, talvez ética para nosso tempo: desejo de ética. Aí entramos em outro campo de saber, qual será?
O único que pode responder, a uma demanda dessa envergadura é a educação. A educação responde pelo “desejo de ética”, porque desejar a ética, desejar ser ético, antecede a tudo, ao próprio homem.
A educação responde, se o faz, porque, num tempo em que não temos tempo sequer para olhar os seres que geramos , a natureza que destruímos, os bens que precisamos (?), a saúde que ansiamos, não temos esse tempo para “educar” as crianças, para amá-las suficientemente, amá-las tanto para dispendermos o tempo necessário para educá-las. Sobrará, para quem?. Ora, para a educação formal, para o professor, que também já não consegue educar seus próprios filhos. Como professores podem incutir desejo educativo de ética, se nem eles sabem o que é isso? Conhecimento é a própria episteme grega, a ação sobre o mundo, por excelência. O que é ética? Ética, vem do grego ethos e deriva de um termo grego para um lugar, lugar singular da casa em que as famílias gregas montavam um altar, com objetos de seus antepassados, que os lembrassem. Quando surgia uma questão de difícil solução, reuniam-se os membros da família e giravam ao redor do altar a buscar uma solução que respondesse à questão. Assim a ação que tomariam seria uma resposta que todos os antepassados e todos os que viessem depois seriam honrados por ela. Que resposta seria, hem? Uma ação que honrasse a família, que não desonrasse nenhum membro que faz parte de meu DNA, que porta e portará meu sangue, é muita gente. Bem, a isso os gregos chamavam ética.
Depois dos gregos, vimos alguns falando de ética, mas o mais famoso de nosso tempo, Kant (2013), estabelece que a ética, a moral deveria centrar-se em sua famosa máxima: age de tal forma que tua ação valha como uma lei universal. Benjamim (2009) a explicita assim: age, de tal forma que teu ato sempre vise a um fim, jamais como meio. Distingo ética, do ethos grego, de moral (origem latina, numa tentativa talvez, dos romanos em estabelecer uma palavra sua que traduzisse o ethos grego, nos costumes), moral que diz do meu fazer, do meu agir, a partir do estabelecimento de meus atos no mundo, da minha ação.
Segundo Hannah Arendt (2008), Kant, assim como Sócrates, em seu dois em um, já tinham a ética presente em si antes de estabelecerem qualquer pensamento, qualquer saber, qualquer dado, então antes da ação kantiana, o ser transcendental já é, já porta a ética, Ele já porta em si o fazer ético, o sujeito da ação carregará a ética em seu fazer, sua ação será honrada, porque o homem que a pratica é ético por excelência. Rawls (1997) estabelece em sua teoria geral da justiça cinco estágios para a constituição de um sistema justo: inicialmente devemos ter um grupo de pessoas isentas de qualquer vinculação partidária, num segundo estágio teríamos a constituição federal, o código de leis, o deliberativo e a lei na prática. Também aqui, na justiça, no estabelecimento da justiça, temos antes de qualquer coisa, de qualquer ação, o ser honrado. Sempre, qualquer evento humano, para ser correto, para ser justo, para ser ético, parte de um ser que já porta a diferença: a ética.
Professor para ensinar ética, para ensinar qualquer coisa, precisa ter essa diferença, portar essa diferença. Ser professor é portar essa diferença, para poder transmití-la em todo seu fazer, em todo agir, em toda palavra proferida, mediada, o que quisermos instituir como sendo o fazer em sala de aula deve portar essa premissa primeira, partir de um ser com ética, um ser diferente
Qual o futuro da Academia? A Academia de Platão estruturava-se no pilar da discussão sobre o conhecimento. O conhecimento era discussão! Como as aulas à distância podem (se podem) realizar as trocas para que o conhecimento se dê. A origem do termo epistemologia (episteme) remete a troca, o conhecimento em movimento, em ação, ciência é troca, conhecimento não é algo estanque, parado, é movimento, movimento de saber, as discussões em sala de aula, em diversos ambientes implicam a troca de saber. .
A Academia, o que é uma faculdade, uma universidade, para quê ela serve? Nela se dá a formação de seres para todos os campos da vida, desde os doutores de pesquisas, até os professores para a educação infantil, não necessariamente nesta ordem. Os recursos não deveriam ser destinados à Academia para melhor formação de profissionais? Quando dizemos recursos, citamos todos, inclusive ter melhores professores na Academia.
A Academia tem-se voltado na direção contrária de sua missão, que é a troca de saber, preparação dos profissionais para a sociedade. No entanto, suas energias têm-se voltado para a formação de doutores para a pesquisa. Os órgãos que administram, exigem e admitem nos quadros acadêmicos pesquisadores. Mas o que se precisa não são professores? Claro, professores que se reciclem, que estudem, mas professores!
Como preparar profissionais para processos inclusivos?
Que tipo de profissionais e saberes devem ser privilegiados?
O que é inclusão?
Incluir implica receber alunos que estejam fora do espectro considerado normal! Ou seja, do espectro da maioria. Isso inclui desde os superdotados, geniais, até os subdotados. As deficiências de toda ordem também estão aqui. Então o que precisamos realmente para fazer frente a processos inclusivos?
E, especialmente na formação de licenciandos, as discussões em aula sempre serão mais ricas se montarmos turmas de diferentes cursos, com diferentes origens de saber para que as trocas sejam e se tornem mais amplas, mais profícuas, mais interessantes.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
BERNJAMIN, Walter. Estética y política. Buenos Aires: Las Cuarenta, 2009.
KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes: 1997.
Palavras-chave: Educação. Academia. Ética. Inclusão. Professores.
G07: Educação Superior
30 de novembro de 2020
CANCELAMENTOS E ECOLOGIA
Guilherme Reolon de Oliveira
Resumo: Os “cancelamentos” nas redes sociais. São fortes os embates entre os que defendem a liberdade de expressão como direito fundamental e os que elevam o “lugar de fala” à categoria de superioridade, principalmente quando o assunto é relativo a questões identitárias e minoritárias. A polarização das redes deu contornos extremados a esse embate. A solução talvez passe pelo equilíbrio, pela temperança. Aristóteles, e mediedade, a virtude moral. Sartre, a liberdade com responsabilidade. O fundamento da sustentabilidade, cujo objetivo é a agregação, jamais qualquer tipo de exclusão. Já foi dito que as redes sociais tribalizam a cultura partilhada. Formam-se “bolhas”. O “cancelamento”, ainda que motivado por questões ético-políticas, destrói mais sujeitos que ideias e é oposto à democracia. No lugar do “cancelamento”, o acolhimento, a responsabilidade pelo Outro (e o respeito à sua singularidade), que não passa pela dimensão do dever, mas do reconhecimento do Rosto: ecosofia.
Palavras-chave: cancelamento, redes sociais, ecologia & ética, reconhecimento, hospitalidade, equilíbrio, responsabilidade
Abstract: The “cancellations” on social networks. There are strong clashes between those who defend freedom of expression as a fundamental right and those who raise the “place of speech” to the category of superiority, especially when the subject is related to identity and minority issues. The polarization of the networks gave extreme contours to this clash. The solution may be balance, temperance. Aristotle, and mediation, the moral virtue. Sartre, freedom with responsibility. Such is the foundation of sustainability, whose objective is aggregation, never any kind of exclusion. It has already been said that social networks tribalize shared culture. “Bubbles” form. “Cancellation”, although motivated by ethical-political issues, destroys more subjects than ideas and is opposed to democracy. In place of “cancellation”, acceptance, responsibility for the Other (and respect for their uniqueness), which does not involve the dimension of duty, but the recognition of the Face: ecosophy.
Key-words: cancellation, social networks, ecology & ethics, recognition, hospitality, balance, responsibility
Etimologicamente, ecologia é palavra que deriva das gregas oikos e logos. Oikos designa casa, ambiente, o que amplia a significação da ecologia: perpassa questões relativas à natureza. O filósofo e psicanalista Felix Guattari, atento a isso, destacara que são três os registros ecológicos: o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana.
Parece-me importante, neste momento pandêmico, refletir não somente sobre o que fazemos com as árvores, as águas e os animais que nos cercam e convivem conosco, mas sobre nossas relações. É evidente o debate sobre os “cancelamentos” de pessoas – sim, porque, independente de suas ideias, são sujeitos – nas redes sociais. Destroem-se reputações, carreiras e subjetividades. São fortes os embates entre os que defendem a liberdade de expressão como direito fundamental absoluto e os que elevam o “lugar de fala” à categoria de superioridade, principalmente quando o assunto é relativo a questões identitárias e minoritárias.
Na polarização que foi exacerbada nos meios digitais, esse embate também ganhou contornos extremados. A solução, me parece, sempre passa pelo equilíbrio, pela temperança, o caminho do meio, como também nos legara Aristóteles, na Ética a Nicômacos .
1.Ecologia e ética
1.1.
Da virtude moral: a mediedade como ápice
Ethica Nicomachea é um dos quatro tratados de ética de Aristóteles, ao lado de Ethica Eudemia, Magna Moralia e De virtutibus et vitilis. É também a obra ética mais conhecida do pensador e a mais comentada desde a Antiguidade. O livro fora dedicado, com maior probabilidade, ao seu filho e, com menor probabilidade, ao seu pai.
A ética aristotélica está associada à noção grega de felicidade (eudaimonia) e, como tal, “certa atividade da alma segundo perfeita virtude”. As virtudes, por sua vez, disposições dignas de elogios, se configuram em intelectuais (por ex. a sabedoria, a perspicácia, a prudência), adquiridas pelo ensino (em termos de experiência e tempo), e em morais (por ex. a generosidade e a temperança – que inclui a indignação, ou seja, diferente do ‘acatamento’), adquiridas pelo hábito, alcançadas na prática, via convivência com a alteridade: primeiramente o Outro fundante do sujeito e, posterior à sua simbolização, o outro da socialização.
A virtude moral, ou a boa medida de nossas ações, por sua vez, é correlata à mediedade e à disposição do sujeito em escolher por deliberação. Ligada à felicidade e, também ao Bem (eis o objetivo da ação virtuosa), a ética aristotélica se contrapõe à ética dos prazeres (dos gozos
[1]
), contemporaneamente designada como utilitarismo, já que, antes, está associada à responsabilidade. Para Aristóteles, o prazer não é um bem: ele provém de natureza perversa (o que, logo, poderíamos traduzir, por gozo), seja de nascença, seja por efeito do hábito, como os “prazeres” dos homens viciosos
[2]
.
Felicidade, portanto, é agir bem. Não raras vezes, implica buscar o que é moralmente belo (o ethos) às custas do que não nos é vantajoso. O tratado nicomaquéio da virtude moral gira em torno da responsabilidade moral e da liberdade da ação – por isso é que, a seguir, o associarei à ética sartreana. A virtude moral, nesse sentido, é a mediedade (o equilíbrio, a harmonia) entre a falta e o excesso – lembremos do preceito délfico, “nada em excesso”.
Para compreendermos como se configura a virtude moral, associada à noção de mediedade, e que é adquirida pelo hábito (logo por escolhas, e Aristóteles coloca aqui a expressão “escolha deliberada”), necessário se faz o entendimento da noção de deliberação. A virtude moral é uma disposição de escolher por deliberação, por isso a escolha deliberada encontra-se no cerne da noção de virtude moral. A escolha deliberada está, intimamente, ligada à responsabilidade do sujeito: não na adoção dos fins, mas antes na escolha dos meios
[3]
. Enquanto disposição, neste sentido, a deliberação está associada às tendências do caráter (também traduzível pela estruturação psíquica do sujeito): as intenções, as motivações do agente, o discernimento de reconhecer, nos particulares, o que é, de fato, bom.
A virtude aprimora o bom estado. Todo conhecedor, para Aristóteles, evita o excesso e a falta, e busca o meio termo. Por essência e pela fórmula que exprime equidade, a virtude é mediedade, mas segundo o melhor e o bem, é um ápice. É também neste sentido que nem toda ação admite mediedade: há ações que são vis por elas mesmas, não por seus excessos ou faltas. Para Aristóteles, entretanto, ações e reações tendem sempre ao equilíbrio, devem estar atentas à harmonia, de acordo com as circunstâncias: novamente, a moderação
[4]
.
Moderação implica, acrescento, uma ex-sistência e Olhar sobre o Outro de forma existencial, qual seja a do respeito, se o que se recebe é da ordem de uma límpida alteridade, e do limite, se há invasão, porque o Rosto, como muito sabiamente Levinas afirmara, é o começo da inteligibilidade – e, acrescentaria, da subjetividade (a mascarada, no oposto é a da ordem da dessimbolização, do a-sujeito). Não há sociedade na mascaração: há o espetáculo, que não passa de relação invertida, desumanização, repetição, aniquilamento da alteridade, negação da diferença e, consequentemente, da realidade que a sustenta.
O inter-humano propriamente dito está numa não-indiferença de uns para com outros, numa responsabilidade de uns para com os outros, mas antes que a reciprocidade desta responsabilidade, que se inscreverá nas leis impessoais, venha sobrepor-se ao altruísmo puro desta responsabilidade inscrita na posição ética do eu como eu; antes de todo contrato que significaria, precisamente, o momento da reciprocidade onde pode, com certeza, continuar, mas onde pode também atenuar-se ou extinguir-se o altruísmo e o des-interessamento.(LEVINAS, 2005, p. 141).
Bem é diferente de Bem aparente (ou o que é agradável). Ao homem virtuoso é objeto do querer o bem segundo a verdade. O virtuoso vê a verdade, esta se manifesta a ele, em cada coisa. A verdade, no entanto, às vezes se apresenta encoberta, “mascarada”, há na troca virtuosa o alcançar a verdade (alethéia, desvelamento
[5]
, des-marcaramento).
Com efeito, o homem virtuoso julga corretamente cada coisa e em cada uma a verdade se manifesta a ele, pois há coisas belas e agradáveis a cada disposição e presumivelmente o homem virtuoso se distingue sobretudo pelo fato de ver o verdadeiro em cada coisa, como se fosse um padrão e uma medida delas. (ARISTÓTELES, 2008, p.70).
Está em nosso poder sermos bons ou maus, fazer ou não fazer. A maldade, neste sentido, é voluntária. Uma vez que nos tornamos injustos, ou seja, pelo hábito, não é mais possível não sê-lo. É por isso que são reprováveis os vícios que estão sob o nosso poder. Vícios e virtudes são voluntários. Diante disso, as virtudes morais são mediedades, são disposições por si mesmas (de distinguir entre o bem e o mal), estão em nosso poder, são voluntárias (ou seja, seus princípios estão no agente e o agente conhece as circunstâncias nas quais a ação ocorre) e são designadas tais quais a reta razão ordena.
Não obstante, a ética aristotélica é também uma ética da liberdade, já que fundada na possibilidade de dizer sim ou não em função da deliberação sobre os meios para realizar bons e belos fins. Não se trata de dizer que um ato moralmente bom é o que é feito por um agente moralmente bom: não se trata de agir conforme um imperativo categórico, mas antes a um ethos fundamental – a moralia (ao íntimo das deliberações familiares, de acordo com os preceitos ancestrais). O ato é moralmente bom porque responde a propriedades que o caracterizam como um meio termo em certas circunstâncias, apartado do excesso e da falta, que constituem ambos o vício.
1.2.Do existencialismo: não há liberdade sem responsabilidade
Sartre, em O existencialismo é um humanismo (1987), inicia afirmando que o existencialismo é uma "doutrina que torna a vida humana possível e que, por outro lado, declara que toda verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana" (p.3), cujo cerne está calcado na afirmação "a existência precede a essência, ou, se se preferir, que é necessário partir da subjetividade" (p.5). Compactuo com o autor: é necessário que partamos da subjetividade, do homem em si – e acrescentaria: não só do humano, mas de todo ser vivo –, para investigar qualquer questão que possamos pensar social: a sociedade é um conjunto, uma formação de seres individuais, portadores de subjetividades, logo existências singulares, únicas, não replicáveis. Cada ser é permeado por uma dignidade inviolável: o indivíduo, jamais replicável, é portador de um complexus, uma sacralidade, jamais escrava de Outrem.
Se unos, não passíveis de cópia, cada ente, cada sujeito, é responsável por suas ações. Sartre coloca que "quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que o homem é apenas responsável por sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens" (p.6). Se nos encaminhamos para uma nova condição subjetivo-social, há que se olhar (Olhar com escuta!) o Outro, esse que convive e vive conosco, esse que nos constitui e nos abarca, há que se avistar a ética, o âmago do ser, do ser-agir no social. É o que Sartre expõe como o sujeito legislador, que não escolheu apenas a si mesmo, mas, simultaneamente, a humanidade inteira. Levinas acrescenta que Outrem é aquele por quem sou responsável e que essa responsabilidade só acontece pelo encontro, que é o inverso da aniquilação ou da contaminação de unicidades.
O encontro com Outrem é imediatamente minha responsabilidade com ele [...] é sempre a partir do Rosto, a partir da responsabilidade por Outrem, que aparece a justiça, que comporta julgamento e comparação, comparação daquilo que, em princípio, é incomparável, pois cada ser é único; todo outrem é único. (LEVINAS, 2005, p. 143-144).
Esse ente "não consegue escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade" (SARTRE, 1987, p.7), pois qualquer projeto (tal qual o da condição que investigamos) "por mais individual que seja, tem um valor universal" (p.10). Como nos lembra Levinas: minha liberdade começa quando começa a liberdade do Outro. Ressaltemos, a sacralidade do indivíduo é anterior a qualquer social: a dignidade humana, o valor humano consiste na subjetividade, no que cada sujeito porta de singularidade e diferença: não há possibilidade de social sem a liberdade - e ressaltamos, a responsabilidade - de cada qual.
Destaca o pensador que "não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade" (p.5), então somos o uno único, inscrito num âmago individual-social, portanto que não pode conceber a não-liberdade da humanidade inteira. Se assim o procedemos, não há como escapar da ética, filosofia primeira. Há uma imensidão conosco, há um inteiro em cada um de nós, sempre faltante
[6]
, sempre em busca de algo, logo há uma impossibilidade da solidão, somos um feixe de relações, há uma intersubjetividade. Se há, e há, não escapamos da responsabilidade integral por cada escolha. Caso contrário, nasce a anti-sociedade, a anti-polis. Não há liberdade quando um único ser é escravo - ou mesmo senhor. O humano é livre quando inscrito em um ethos digno de existência: o ethos da responsabilidade. Não concebemos social sem a existência livre de cada ser, sem a total liberdade - de escolha, de opinião e de existência - de cada indivíduo: "[...] nós nos apreendemos a nós mesmos perante o outro, e o outro é tão verdadeiro para nós quanto nós mesmos [...] Para que eu obtenha qualquer verdade sobre mim, é necessário que eu considere o outro" (p.16).
2. Contra o cancelamento: acolhimento e hospitalidade
A responsabilidade pelo Outro e o equilíbrio (no que se refere à moralidade) são os fundamentos da sustentabilidade, cujo objetivo é a agregação, jamais qualquer tipo de exclusão. Pensar a ecologia na atualidade, obviamente passa pela preocupação com o que acontece na Amazônia e no Pantanal, mas não só. Com a mineração em terras indígenas, mas não só. Com as podas e derrubadas de nossas árvores, nas cidades, mas não só. Lembro-me de um desenho de minha infância, Capitão Planeta, em que o herói era constituído pela união dos elementos naturais (materiais) com os emocionais (as relações, os sujeitos). Isso é comunidade!.
Já foi dito que as redes sociais tribalizam a cultura partilhada, ou seja, juntamo-nos cada vez mais, aos nossos semelhantes
[7]
(nem tanto!), não àqueles diferentes. Formam-se gangues
[8]
, bolhas.
A mídia, de fato, é uma das forças subentendidas na formidável dinâmica de individualização dos modos de vida e dos comportamentos da nossa época. A imprensa, o cinema, a publicidade e a televisão disseminaram no corpo social as normas da felicidade e do consumo privados, da liberdade individual, do lazer e das viagens e do prazer erótico: a realização íntima e a satisfação individual tornaram-se ideais de massa exaustivamente valorizados. (LIPOVETSKY, 2004, p.70)
Mas as pesquisas indicam que elas, as redes sociais, estão em declínio. O “cancelamento” ainda que motivado por questões ético-políticas destrói mais sujeitos que ideias e é o oposto à democracia. Respeitar o outro em sua singularidade, independente de suas características (ou por elas e apesar delas), demonstra que o politicamente correto é a pior censura.
Entendemos, com Levinas, que ética é a própria relação com a alteridade de Outrem, que só se efetiva na cultura (a responsabilidade por Outrem), e na valorização do Rosto (semblante), a linguagem antes das palavras. Antes do Rosto, o Olhar que deseja e constitui Desejo, Sujeito, dá base para que a lei seja inscrita. É por meio do Olhar, no Olhar – no entre-Olhares – que há o reconhecimento do Outro. O Mesmo acontece pelo Olhar, e o Olhar é que permite mais que o ver, o Reconhecer – princípio primeiro da Ética.
O Mesmo, sua identidade e sua diferença, revelado no Olhar e no Rosto que porta, também está inscrito numa marca, num traço, no nome próprio, advindo, inclusive, do Outro. “Um nome próprio não é nunca puramente individual”, afirmara Jacques Derrida (2003, p.23), já que nele o sujeito carrega sua estrutura, sua unicidade e sua multiplicidade, que, tal qual o nome (inviolável e intransferível), só a história do sujeito comporta e alicerça – seu passado, seu presente e mesmo seu futuro.
O filósofo da desconstrução (que nunca é o que alguns associam à destruição mas, pelo contrário, à absoluta construção de algo, “destrinchamento”) destaca que, no acolhimento, a ética interrompe a tradição filosófica do parto e desfaz a astúcia do mestre quando este finge desaparecer atrás da figura da parteira. Uma política de hospitalidade é uma política do poder quanto ao hóspede, quer seja ele o que acolhe ou o acolhido. Para Levinas, o acolhimento dá e recebe outra coisa, mais do que eu e mais que outra coisa:
Desde as primeiras páginas de Totalidade e infinito, lê-se que abordar o Outro no discurso é acolher sua expressão em que ele ultrapassa a todo instante a ideia que se poderia ter dele. É então receber do Outro para além da capacidade do eu; o que significa exatamente: ter a ideia do infinito. Porém isso significa também ser ensinado. A relação com o Outro ou o Discurso é uma relação não-alérgica, uma relação ética, porém esse discurso acolhido é um ensinamento. Porém o ensinamento não retorna à maiêutica. Ele vem do exterior e me traz mais do que eu contenho. (DERRIDA, 2004, p.35-35).
Esse receber, proposto como sinônimo de acolher por Derrida, só recebe na medida – uma medida desmedida – em que ele recebe para além da capacidade do eu. Essa desproporção dissimétrica marca a lei da hospitalidade. A palavra “acolher” designa, com a noção de Rosto, a abertura do eu, e a anterioridade filosófica do sendo sobre o ser. O Discurso, assim, se apresenta como Justiça “na retidão do acolhimento dado ao rosto” (DERRIDA, 2004, p.46).
A hospitalidade, para Derrida (2004), é a essância (diferente de essência) do que é ou, antes, do que se abre assim para além do ser. Numa continuidade do pensamento levinasiano, a hospitalidade é infinita ou ela não é; ela é acordada ao acolhimento da ideia do infinito, portanto do incondicional, e é a partir de sua abertura que se pode dizer, como o fará Levinas, que a ética não é uma disciplina da filosofia, mas a “filosofia primeira”.
Já nos aconteceu de perguntarmo-nos se a hospitalidade absoluta, hiperbólica, incondicional, não consistiria em suspender a linguagem, uma certa linguagem determinada, e mesmo o endereçamento ao outro. Sendo assim, não seria preciso submeter a uma espécie de contenção essa tentação de perguntar ao outro quem ele é, qual é o seu nome, de onde ele vem, etc? Não seria preciso abster-se de colocar essas questões que anunciam um tal número de condições requeridas, portanto limites a uma hospitalidade assim constrangida e confinada num direito e num dever? (DERRIDA, 2003, p.117).
No lugar do “cancelamento”, o acolhimento, a responsabilidade pelo outro, que não passa pela dimensão do dever, da obrigação, mas do reconhecimento, do respeito de si. O respeito ao outro indica respeito e ética consigo mesmo e com os seus (verdadeiro sentido da ética mesma).
REFERÊNCIAS
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REOLON, Vera Marta. mulheres para um homem... para O Homem, A Mulher. Porto Alegre: Edipucrs, 2008.
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ZINGANO, Marco. Aristóteles: tratado da virtude moral: Ethica Nicomachea I 13 – III 8. São Paulo: Odysseus, 2008.
[1]
Gozo difere de Prazer, segundo REOLON (2008), em sua leitura da psicanálise freudo-lacaniana. Segundo a autora, o Gozo vincula-se à estrutura perverso-paranóica e ao instinto de morte. O Prazer, à estrutura neurótica e suas manifestações (histeria e obsessão) e ligado ao instinto de vida.
[2]
“Como são três os objetos de busca e três os de fuga – o belo, o proveitoso e o agradável – e três os contrários – o feio, o danoso e o penoso –, o homem bom é correto e o homem perverso é incorreto a respeito de todos eles, mas sobretudo a respeito dos prazeres, pois este comum aos animais e acompanha a tudo o que cai na rubrica busca, pois o belo e o proveitoso são manifestamente prazerosos”. (ARISTÓTELES, 2008, p.45).
[3]
Na interpretação de Walter Benjamin, do imperativo categórico de Kant: a ética está atenta ao humano sempre como fim, nunca como meio.
[4]
“Nem toda ação admite mediedade, tampouco toda emoção, pois algumas são denominadas em imediata conjunção com a vileza, como a malevolência, a impudicícia, a inveja e, quanto às ações, o adultério, o roubo, o assassinato. Com efeito, todas essas e as demais são censuradas por serem elas próprias vis e não por serem vis os seus excessos ou faltas. Não há jamais como acertar a seu respeito, mas sempre se erra”. (ARISTÓTELES, 2008, p.52).
[5]
“[...] a verdade não é desvelamento que destrói o mistério, mas antes uma revelação que lhe faz justiça” (BENJAMIN, 2013b, p.19).
[6]
“Se a ação de cada um não está mais referida ao que a ultrapassa e a garante, não há mais diferença entre o direito à liberdade de que cada um dispõe doravante incondicionalmente e o abuso do direito à liberdade” (DUFOUR, 2005, p.97).
[7]
“Do mesmo modo que Narciso, o personagem da mitologia grega, apaixonou-se por sua própria imagem numa lagoa, os indivíduos do capitalismo contemporâneo também precisam de um espelho em que possam recobrar o amor por sua própria imagem, tão comprometido pelo esforço de continuar a gerar valores financeiros. É por causa disso que Adorno diz que a cultura de massa como um todo é narcisista, pois ela vende a seus consumidores a satisfação manipulada de se sentirem representados nas telas do cinema e da televisão, nas músicas e nos vários espetáculos” (FREITAS, 2003, p.19).
[8]
Segundo Mike Featherstone (1995), o pós-modernismo é caracterizado pela transformação da realidade em imagens e pela fragmentação do tempo numa série de presentes perpétuos. Esta segunda característica tem como paradigma a esquizofrenia, considerada um colapso da relação entre os significantes, o colapso da temporalidade, memória, senso de história. A experiência imediata e indiferenciada da presencialidade do mundo, para o esquizofrênico, conduz a uma noção de “intensidades”.
30 de novembro de 2020
GEWALT e uma Critica Socio-Ambiental
Vera Marta Reolon
RESUMO: Partindo da conceituação das três ecologias propostas por Felix Guattari , como podemos e (se) devemos intervir para tornar ambientes, sujeitos e instituições mais aptos a viver no mundo contemporâneo, propiciando melhor bem-estar aos ambientes e aos membros da população. Só uma articulação ético-política – ECOSOFIA – entre os três registros ecológicos: do meio ambiente, das relações sociais e da subjetividade podem esclarecer as questões. Necessários novos dispositivos de produção de subjetividades individuais e coletivas. Égide ético-estética de uma ECOSOFIA. Gewalt. A violência e suas diferentes esferas de atuação. O poder , aquele aliado da liderança, e o poder que aliena e escraviza, vinculado à paranoia. Humano, que é humano? Desejo. Ação. Liberdade. Responsabilidade. Os estilos de vida, sua escolha no viver. A ação humana. O trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: Contemporaneidade, Crise Ecológica, Possíveis Soluções, Poder, Ação, Humano
Abstract: Starting from the conceptualization of the three ecologies proposed by Felix Guattari, how can and (if) we intervene to make environments, subjects and institutions more apt to live in the contemporary world, providing better well-being to environments and members of the population. Only an ethical-political articulation - ECOSOPHY - between the three ecological records: the environment, social relations and subjectivity can clarify the issues. New devices for the production of individual and collective subjectivities are needed. Ethical-aesthetic aegis of an ECOSOPHY. Gewalt. Violence and its different spheres of action. Power, that ally of leadership, and the power that alienates and enslaves, linked to paranoia. Human, who is human? Desire. Action. Freedom. Responsibility. Lifestyles, your choice to live. Human action. The work.
Key Words: Contemporaneity, Ecological Crisis, Possible Solutions, Power, Action, Human.
O que é ECOLOGIA? Sempre que falamos em Ecologia nos remetemos diretamente a questões ambientais, ao meio ambiente, ao mundo que nos cerca, à natureza!
Mas, o que é ECOLOGIA mesmo?
ECO: da raiz grega öikos: lar, bem doméstico, habitat, meio natural.
Então, o que pensamos ao sinalizar o termo Ecologia torna-se muito mais amplo, pois nos remete à casa, ao lar, ao habitat. Vamos, assim, muito além do estudo do meio ambiente, da natureza. Estudamos o ambiente doméstico, social, coletivo, o eu pessoal, a natureza que nos abarca, enfim todo o ambiente que habitamos, inclusive nosso próprio corpo.
1.
As Três Ecologias de Guattari
Guattari irá partir de uma Análise Institucional. Para ele, há uma progressiva deterioração nos modos de vida humanos, individuais e coletivos. A esses fenômenos, denominará de “desequilíbrio ecológico”. Nomeará tais fenômenos de infantilização regressiva. Dirá que só uma articulação ético-política, que nomeia ECOSOFIA, entre os três registros ecológicos – do meio ambiente, das relações sociais e da subjetividade – podem esclarecer as questões.
1.1 Capitalismo Mundial Integrado
Necessária é uma revolução social, política e cultural, com o fim de reorientar objetivos de produção de bens materiais e imateriais. Essa revolução deverá ser das forças visíveis, mas também de domínios moleculares de sensibilidade, inteligência e desejo.
Modos dominantes de valorização das atividades humanas concentrados em estabelecer, no mesmo patamar, bens materiais, culturais, áreas naturais: o patamar do mercado, além de colocar o conjunto das relações sociais e internacionais sob a direção das máquinas policiais e militares.
Há um sistema de capitalismo mundial integrado, que estimula a miséria, a fome, a morte, grandes centros de exploração e, ainda, o reforço: há uma exacerbação das questões de imigração e racismo.
Os jovens ficam concentrados numa esfera cultural de pseudo-identidade rock, isolados em um mundo de alienação, de distanciamento social, vivendo em “tribos”.
Tudo isso leva a uma fratura social extrema.
1.2
Revolução Ecosofia
Ecosofia propõe uma reconexão das práxis humanas nos mais variados domínios. Necessários novos dispositivos de produção de subjetividades individuais e coletivas. No lugar de uma usinagem pela mídia, que só conduz ao desespero:
-
Formação de líderes carismáticos
-
Criação artística liberta do mercado
-
Ecosofia mental libertada de fantasmas e máscaras
Se não houver uma rearticulação dos três registros da ecologia (mental, social e ambiental), podemos pressagiar a escalada de:
-
Racismo
-
Fanatismo religioso
-
Cismas nacionalitários (com fechamentos reacionários)
-
Exploração do trabalho infantil
-
Opressão feminina
Ao invés de sujeitos, teríamos componentes de subjetivação trabalhando cada um por conta própria (conjuntos sócio-econômicos, máquinas informacionais, etc.) – o sujeito seria apenas um “Terminal”. Tudo se passa como se um “sistema científico” exigisse do sujeito coordenadas de vivências fora dele. Necessário livrar-se dos paradigmas científicos em favor de novos paradigmas ético-estéticos.
Dois pontos devem ser levados em consideração:
1. A apreensão do fato psíquico como inseparável do agenciamento de enunciação, como fato e processo expressivo. Fato e processo não desvinculados, mas em relação
2. Deve haver uma inteligibilidade discursiva – tarefa específica do cuidador (também do professor, em sala de aula), que difere de todo trabalho de mídia tecnológica.
Expressar-se para chegar ao outro (em relação) e discutir com o outro os fatos da vida, com o intuito de elucidá-los.
1.3 Insustentabilidade Ética
Devemos fazer do fato freudiano outro uso, desmascarar a psicanálise sem fantasmas e mitos, torná-la extensiva, realizar intervenções não apenas no campo psi, mas na educação, na saúde, na cultura, no esporte, na arte, na mídia, na moda. Deve-se sair da insustentabilidade ética abrigada na neutralidade, sustentada em um corpus científico e buscar interfaces com campos estéticos.
Fim dos catecismos psicanalíticos, comportamentalistas e sistemistas. O povo psi convergindo com o mundo da arte se desfaz de aventais brancos, de linguagem opressiva e da forma de ser para fazer evoluir sua prática tanto quanto suas bases teóricas. Recomposição das práticas sociais e individuais através de três rubricas complementares:
ecologia social,
ecologia mental e
ecologia ambiental.
Égide ético-estética de uma ECOSOFIA para fugir dos quatro regimes semióticos que compõem o Capitalismo Mundial Integrado: a semiótica econômica, a semiótica jurídica, a semiótica técnico-cientifica e a semiótica de subjetivação.
1.4 Passividade e homeless
Um dos problemas dessa modernidade tardia é a questão do sujeito manter-se passivo diante do imposto pelas mídias e pelas políticas. Precisamos aprender a pensar transversalmente as diferentes interações entre cultura e natureza para evitar o efeito do que Guattari chama de homeless (instalação de conglomerados e arranha-céus, arrastando a população para a marginalidade e a periferia). Não desaparecem apenas as espécies, mas também as palavras, as frases, os gestos de solidariedade humana.
1.5 Ecologia Social
Deverá trabalhar na reconstrução das relações humanas em todos os níveis do socius. Tornou-se igualmente imperativo encarar seus efeitos no campo da ecologia mental, no seio da vida cotidiana individual, doméstica, conjugal, de vizinhança, de criação e de ética pessoal. A subjetividade capitalística se esforça por gerar o mundo da infância, da ordem da loucura, da dor, da morte, do sentimento de despertencimento – se anestesia num sentimento coletivo de pseudo-eternidade. São necessárias novas práticas micro-políticas e micro-sociais; que as práticas sociais e políticas trabalhem para a humanidade e não mais para um simples reequilíbrio permanente do universo em semióticas capitalísticas.
1.6 Ecologia Ambiental
Cada vez mais os equilíbrios naturais dependerão das intervenções humanas. Interessante seria pensarmos em requalificar a ecologia ambiental como uma ecologia maquínica, porque sempre será uma questão das máquinas e, especialmente, das máquinas de guerra. Sempre pensando numa ética ecosófica: em políticas focalizadas no destino da humanidade.
1.7 Ecologia Mental
Julgada em função de:
Capacidade de circunscrever cadeias discursivas em ruptura de sentido
Possibilidade de operar conceitos, autorizando uma auto-construtibilidade teórica e prática.
•
Confusão público-privado
•
Proteção à violência levando a mais violência (a questão da vigilância constante, os armamentos, a tecnologia que ocasiona o desemprego e sucessiva marginalização).
Necessária a promoção de práticas inovadoras, disseminação de experiências alternativas, centradas no respeito à singularidade e no trabalho permanente de produção de subjetividade, que vai adquirindo autonomia e, ao mesmo tempo, se articulando ao resto da sociedade.
O principio comum às três ecologias consiste, pois, em que os territórios existenciais com os quais elas nos põem em confronto não se dão como um em si, fechado sobre si mesmo, mas como um para si precário, finito, finitizado, singular, singularizado, capaz de bifurcar em reiterações estratificadas e mortíferas ou em abertura processual a partir de práxis que permitam torná-lo ‘habitável’ por um projeto humano.
Não se trata de criar regras universais, como guias das práticas, mas de liberar as antinomias de princípio entre os três níveis ecosóficos. Agir, em Políticas Públicas, demanda conhecimentos que não se restringem a mera ação especulativa.
Necessitamos conhecer o campo cultural, as demandas sociais, o agir comunitário, as formas de aglomeração social, os ajuntamentos, as problemáticas advindas desses ajuntamentos e, mais do que tudo, necessitamos conhecer como as problemáticas acontecem. Logo, para resolver, ou, ao menos, buscar formas de amenizar problemas sociais decorrentes, cada vez mais, da violência, precisamos urgentemente, determinar, buscar conceituar o que é violência, nos diversos contextos culturais.
2 Gewalt: Violência como Poder
A violência acontece nos nichos culturais atentos às dependências químicas, cada vez mais presentes em nosso cotidiano social, mas também às dependências sociais.
Se pensarmos em um mundo estabelecido na e da dependência, aos moldes das manifestações apresentadas em todas as dependências químicas, urge que busquemos problematizar violência, mas, principalmente que determinemos modos de atuação social para reduzi-la, amenizá-la, eliminá-la do cotidiano, para que a vida em sociedade possa se dar. Se não providenciarmos soluções, tendemos a eliminar o social, tendemos ao desgoverno, a morte social.
São diversas as formas de violência existentes, a física, a moral, a social, a institucional, a marital, a familiar, a filial, a paternal... Mas existe uma violência que nos chega através das máximas formas de PODER, poder atento ao que Jacques Lacan, relendo Freud, entre outros, nomeia no campo das PSICOSES (aqui, especialmente no campo da PARANÓIA) E PERVERSÕES.
Necessário então conceituar estas estruturas psíquicas, levá-las aos meios sociais, pensar em produções sociais psicótico-perversas e conceituar violência, suas formas, os “establishment” do que vemos apresentar-se nos diferentes contextos sociais e na vida – ou poderíamos dizer morte em sociedade.
Então, a partir da obra de Sigmund Freud, de Jacques-Marie Lacan pensamos as estruturas clínicas. Através da obra de Walter Benjamin – Para uma Crítica da Violência - buscamos a conceituação de Gewalt, pois Gewalt significa não só violência, como também poder legítimo, autoridade, força pública..., designa tanto a violência como o poder legítimo. Benjamin, segundo Jacques Derrida, em Força de Lei, conceitua Gewalt , e faz uma “Crítica à Violência”.
Pensar, então, violência, a partir de movimentos de ataques e horror praticados uns contra os outros, distingui-la de “poder legítimo”, se é que podemos fazê-lo, nos tempos atuais e pensar em formas de ação para isso, e/ou a partir disso, penso ser imprescindível para agir publicamente, principalmente no campo das políticas públicas, no agir político, na vida em sociedade, nos movimentos sociais, na educação, ..., na VIDA!
Como fazê-lo sem saber por onde andamos?
O que é VIOLÊNCIA – como conceituá-la, em que parâmetros e sob quê critérios; como ela se dá no social estabelecido no século XXI, há critérios ético-estéticos para determiná-la? Que políticas públicas podem ser implementadas, se é que já poderemos determiná-las, para agir de forma a, se não eliminá-la, reduzi-la?
3 O Humano: desejo, estilo de vida, ação
O que nos diferencia como humanos? O homem, em alguns momentos, diz-se humano porque possui racionalidade, porque possui espírito, enfim diferentes conceitos, construções teóricas que, na verdade, nada dizem, são apenas palavras que não trazem respostas às nossas inquietações.
A psicanálise, como teoria interpretativa da realidade, serve para analisar os fenômenos, no campo individual, através das manifestações do inconsciente, presentes na linguagem dos diversos sujeitos, nos chistes, na interpretação dos sonhos, etc. Pode, entretanto, interpretar os fenômenos sociais, através da análise das manifestações da sociedade, das organizações e instituições, dos grupos sociais. Aliando-se a filosofia, essencial para seu desenvolvimento desde o início, a psicanálise, além de realizar interpretações, reflete sobre os fatos, utilizando-se das teorias dos grandes pensadores.
Partindo-se, assim, da escrita desconstrutiva de Derrida, o discurso psicanalítico é o que pode dar conta das questões contemporâneas: “Se há um discurso que poderia, hoje em dia, reivindicar a causa da crueldade psíquica como assunto próprio, este é o que se chama, de mais ou menos um século para cá, psicanálise” (DERRIDA, 2001, p.8-9).
Basta que eduquemos, que adestremos os animais, mesmo que selvagens, para observarmos neles amorosidade, carinho, dedicação. Se os tratarmos com amor, recebemos amor e dedicação para sempre. O ser humano também precisa desta “amarragem” amorosa, sem esta estruturação, sem esta dedicação ele fica perdido, como um objeto do Outro, este que o gerou. É preciso que o ser humano, ao nascer, ou antes disso, seja desejado, seja marcado com a insígnia do desejo por alguém, que ele tenha sido esperado, querido por alguém, mas não desejado para completar este alguém, e sim que ele seja desejado para viver, ser feliz, progredir, fazer-se. É um processo, e um projeto de humanização constante, que se inicia com este Outro.
Para que sejamos marcados como desejantes, tenhamos “voz plena de valor”, precisamos da marca primordial de instituição narcísica, que denominamos Amor do Outro. Outro este que faz para nós um papel materno, de mãe instituidora da marca amorosa que levaremos em nossas vidas. Sem esta marca inicial não somos considerados estruturalmente sujeitos, donos de uma identidade, estaremos sempre presos a alguém que nos deve conduzir pela vida, pois esta marca é primordial, necessária em nossa frenética luta pela libertação. Com a marca podemos nos libertar e seguir. Sem a marca estamos presos ao desejo do Outro, às suas imposições.
O que nos torna humanos então, para a psicanálise, não nos deixando objetivar, ou sermos objetivados, é este amor de estrutura, que nos diferencia perante os demais, que nos torna desejantes, desejantes de vida, de felicidade, de busca.
Sartre vai além deste conceito, ele fala do existir humano, do processo da existência humana, como uma construção, construção essa que parte da própria liberdade de ser humano. O homem vai construindo sua existência, a partir da liberdade que possui, liberdade de escolher, conforme seu desejo: “toda verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana” (SARTRE, 1970, p.01).
No texto sartriano, há uma noção de humanidade que extrapola toda a individualidade, todo egoísmo ou todo egocentrismo narcisista que o homem possa carregar, pois ele expõe a liberdade existencial humana como uma responsabilidade que inclui a humanidade inteira: “a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, pois ela engaja a humanidade inteira” (SARTRE, 1970, p.03).
Logo, em Sartre, toda nossa ação é livre, a partir de nossas escolhas, toda nossa ação é uma construção livre de nossa individualidade, uma marca individual de nossa existência, mas ela também é uma responsabilidade sobre a marca que transmitimos como retrato da humanidade toda e “sobre” toda essa humanidade. Essa responsabilidade carrega muita angústia, e daí a afirmação de Sartre de que o “homem é angústia” (SARTRE, 1970, p.04). Não há disfarces para a angústia, pois ela faz parte deste existir humano, de escolhas e de responsabilidade.
Kierkegaard vai propor que o homem deve/pode escolher/eleger como vai conduzir sua vida. Propõe dois estilos de vida, de escolha: o estilo de vida estético e o estilo de vida ético. Se o homem opta por seguir um estilo de vida estético (que aqui nada tem de estética – arte ou o que hoje entendemos pelo termo estética), ele é o que vive o INSTANTE (fronteira entre o antes e o depois). Em princípio ele viveria em liberdade. Mas na crítica que Kierkegaard faz a este “escolhedor”, dirá que esta liberdade é um engodo, já que a verdadeira liberdade só se dá na opção pelo estilo de vida ético
o que vale é madurar a própria personalidade antes de formar o espírito. [..] desejarias fortalecer tua alma [..] tem em cada ser uma potência capaz de desafiar o mundo inteiro. [..] o principal da vida , reconquistar-te a ti mesmo , adquirir-te a ti mesmo, com a condição de que possas, o mais bem que queiras poder a energia necessária para fazê-lo. (KIERKEGAARD, 1966, p.9-11).
O estilo de vida ético, à semelhança do que ocorria no mundo grego, incorpora, abarca o que entendemos por estético. Ao optarmos pelo estilo de vida ético, incluímos em nossa opção a vida estética, incluímos a opção por nós mesmos, o eterno. O sujeito que opta pelo estilo de vida estético vive no desespero e nada tem de fato.
Tua escolha é uma escolha estética, mas uma escolha estética não é uma escolha. Em verdade, o fato de escolher é uma expressão real e rigorosa da ética [...] o único aut-aut (ou isto, ou aquilo) absoluto que existe é a escolha entre o bem e o mal e essa escolha também é absolutamente ética. (KIERKEGAARD, 1966, p. 20).
O desespero não deve ser um inibidor de minha ação. Ao contrário, deve me engajar na ação: “não é preciso ter esperança para empreender [...] não deverei ter ilusões e que farei o melhor que puder” (SARTRE, 1970, p.08).
A realidade só existe a partir da ação, o homem só existe à medida que se realiza na ação, o homem é o conjunto de seus atos. Para Hanna Arendt, o homem não é um ser de natureza, é um ser de condição. A condição humana é que o homem é um ser de ação (arte) e discurso (político). Hanna diferencia labor de trabalho, mas dirá que a condição humana por excelência é o trabalho, ação humana que nos diz quem e o quê somos.
Com a expressão vita activa pretendo designar três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação. [...] o labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano [...] tem a ver com as necessidades vitais [...] a condição humana do labor é a própria vida. O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana. [...] a condição humana do trabalho é a mundanidade. A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade. (ARENDT, 2008, p.15).
Independentemente se tomamos cada uma das atividades humanas ou se nos dedicarmos, abarcarmos o termo proposto por Hanna, vita activa, as três atividades referem-se ao que designa, distingue o homem como homem, à durabilidade do mundo, já que o homem o habita.
o trabalho de nossas mãos, em contraposição ao labor de nosso corpo – o homo faber que “faz” e literalmente “trabalha sobre” os materiais, em oposição ao animal laborans que labora e “se mistura com eles” – fabrica a infinita variedade de coisas cuja soma total constitui o artifício humano. (ARENDT, 2008, p.149).
Outros autores também nos apresentam a importância do trabalho na vida humana, para o seguir de sua existência: “No trabalho, o homem satisfaz uma potência de criação que se multiplica por numerosas metáforas” (BACHELARD, 2001, p.24). A própria Hanna vai nos conduzir, em seu texto A Condição Humana, o que faremos (ela já se questionava nos anos 60 do século XX), sem trabalho: “O que se nos depara, portanto, é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta” (ARENDT, 2008, p.13).
E ela mesma nos aponta o que pode nos ter conduzido a esta “situação”:
[..] talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida para além do limite de cem anos. [..] O problema tem a ver com o fato de que as “verdades” da moderna visão científica do mundo, embora possam ser demonstrados em fórmulas matemáticas e comprovadas pela tecnologia, já não se prestam à expressão normal da fala e do raciocínio. [..]Se realmente for comprovado esse divórcio definitivo entre o conhecimento e o pensamento, então passaremos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso know-how, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja. (ARENDT, 2008, p.11)
As confusões público-privado, câmeras e os excessos de invasões sobre a vida das pessoas, ao mesmo tempo que tais invasões em nada auxiliam no cessar da violência (já que o são por si) e nada provam, quando exigidas pela justiça penal. Esta violência (invasão) produz uma violência virtual que, sob pressão, desencadeia violência física.
As FEBEM’s e a falsa educação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) na prática. As prerrogativas do ECA na prática mostram-se ora defasadas, ora falsas, sem suso real, mas uma virtualidade para mostrar-se à mídia. As falas dos meninos da FEBEM o comprovam: “eu quero ficar com os grandões no presídio, depois dos 18, quando zera minha ficha policial”(sic). A necessidade se faz premente de educação, uma educação abrangente que inclua ética, moral. Nietzsche já nos ensinava: “nunca se precisou tanto de educadores morais” (sic).
Leis iguais para todos. De que leis, de fato, se fala aqui? Como fica, por exemplo, o Complexo do Alemão, lei igual? Que leis podem ser aplicadas num ambiente pleno de violência e onde qualquer ação torna-se também uma violência?
Importante lembrar do caso Eichmann, debatido por Hanna Arendt, e a forma “judaica” de conduzi-lo, assim como do conceito de autonomia, ou em outros termos, a Bildung, a partir da Paidéia grega e de Rousseau e Hobbes.
Michel Foucault, em seus seminários sobre o Governo de Si e dos Outros e sobre a Hermenêutica do Sujeito aborda e discorre sobre o cuidado de si, como uma questão ampla de uma busca de saúde que vai de encontro com o conhecimento de si, com o saber de seu corpo, com o saber de suas necessidades, de seus desejos, com vistas a uma ampla busca de felicidade, não mais como uma busca utópica, subjetiva, inalcançável (talvez como ideal demais!) mas, através desse conhecimento de si, uma felicidade possível, palpável, vivenciável: “A filosofia está assimilada ao cuidado com a alma (o termo é precisamente médico: hugiainein), e esse cuidado é uma tarefa que deve ser seguida ao longo de toda a vida”. (FOUCAULT, 1997, p.120).
A hermenêutica de si - epimeléia heautou (grego) e cura sui (latim) – como princípio de ocupar-se de si, cuidar de si mesmo, obscurecido pelo brilho do Gnôthi seauton. (FOUCAULT, 1997, p.119).
Que fazer de nossas vidas, quem somos, para onde vamos, tudo depende de nós: “o destino do homem está em suas próprias mãos” (SARTRE, 1970, p.09).
Já o dizia Arnaldo Antunes, em O Pulso:
“o pulso ainda pulsa
Peste bubônica, câncer, pneumonia,
Raiva, rubéola, tuberculose, anemia,
Rancor, osteoporose, caxumba, difteria,
Encefalite, laringite, gripe, leucemia
O pulso ainda pulsa
[...]
Hipocondria [...] hipocrisia [...] miopia [...] culpa [...] lepra [...] afasia”
O que é normal?
Existe uma normalidade?
E se buscarmos a normalidade, como traduzí-la?
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Trágico Alemão. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
__________Estética Y Política. Buenos Aires: Las Cuarenta, 2009.
DERRIDA, Jacques. Estados-da-alma da psicanálise. São Paulo: Escuta, 2001.
_______. Da hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003.
_______. Margens da Filosofia. Campinas: Papirus, 1991.
_______. Paixões. Campinas: Papirus, 1995.
FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
_______. Resumo dos cursos do Collège de France. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
FREUD, Sigmund. Edição stantart brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. 21 ed. Campinas: Papirus, 2012.
KIERKEGAARD, Sören. Estética y ética em la formación de la personalidad. Buenos Aires: Editorial Nova, 1966.
LACAN, Jacques. Da Psicose Paranóica em suas relações com a Personalidade. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
_______. Escritos 1. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 1990.
_______. Escritos 2. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 1988.
_______. O mito individual do neurótico. Lisboa: Assírio e Alvim, 1980.
_______. O seminário 6: o desejo e sua interpretação. Porto Alegre: APPOA, 2002.
_______. O seminário 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
_______. Écrits. Seuil, 1966.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 2011.
_______. O existencialismo é um humanismo. In: www.odialetico.hpg.ig.com.br/filosofia/livros/ exhuman.htm. Consulta em: 20 de agosto de 2006. Fonte: L’Existentialisme est un Humanisme, Les Éditions Nagel, Paris, 1970.
30 de novembro de 2020
Horror ao tédio, ou a arte quarentenada
Guilherme Reolon de Oliveira
Sim, o império está doente e, o que é pior, procura habituar-se às suas doenças. O propósito de minhas explorações é o seguinte: perscrutando os vestígios de felicidade que ainda se entreveem, posso medir o grau de penúria. Para descobrir quanta escuridão existe em torno, é preciso concentrar o olhar nas luzes fracas e distantes.
(CALVINO, 1990, p.57).
“Poesia numa hora dessas?” perguntou um colunista do jornal de maior circulação impressa do país, no início da pandemia, diante do sofrimento, do medo e da insegurança, frente a uma realidade incerta, com um vírus totalmente desconhecido. A importância das artes – ainda que caracterizada por muitos como supérflua, principalmente se comparada aos problemas sanitários e de saúde, consequências da nova doença instaurada – durante a quarentena (que parece interminável!), no entanto, parece-nos fundamental. No início, houve uma onda, uma inundação de lives, em que artistas, sem saber como proceder no novo cenário, expuseram seus trabalhos em apresentações ao vivo na internet. Tais lives, muitas vezes acompanhadas de campanhas de doações de alimentos e Equipamentos de Proteção Individual (destinados especialmente aos profissionais da saúde e às entidades de assistência social), depois de um esgotamento, uma proliferação, estressaram também o espectador (tendo em vista o excesso de apresentações e a angústia da escolha). Este, o espectador, com isso, migrou para as mídias tradicionais, como a televisão (com programas, especialmente de humor, dedicados ao tema da quarentena, em paralelo àos números e estatísticas bombardeados a todo instante pelos programas jornalísticos, repetitivos na temática, e lives de especialistas, mais acadêmicas). Ou para mecanismos de streaming, de filmes e séries, que já vinham crescendo, mas aumentaram consideravelmente em seus números de assinantes.
É consenso que a arte, agora quarentenada (com a ausência de apresentações ao vivo de peças de teatro, espetáculos de dança, shows musicais, exposições – não digitais – de artes visuais), exerce papel constituidor da/na sociedade (inclusive econômico-financeiro, com a geração de emprego e renda a inúmeros profissionais, bem como de economia criativa) e no bem-estar individual (saúde física e mental, e na instauração de subjetividade, por meio da produção de sentido e presença). Uma das funções da arte é a de operar como uma forma de conhecimento da realidade. A pandemia, nesse sentido, parece colocar em xeque, inclusive, a ontologia da arte.
A arte tem papel estruturador societário (do coletivo), porque além de uma função antecipatória, possibilita (favorece, não institui obrigatoriamente) o laço social, lança os alicerces para o que está por vir (e aí sua responsabilidade, seu caráter ético), e dá espaço para a sublimação (segundo Freud, negação do princípio da realidade, via transformação do instinto sexual em arte), em contraposição à barbárie, conduz a uma catarse para instintos agressivos. Neste último sentido, em uma sociedade que valoriza a “passagem ao ato” de fantasias perversas, não estaria a arte perdendo sua real função, transformando-se em mais um veículo de apoio à fetichização dos objetos
[1]
(ou, melhor, de meras coisas), principalmente quando, por meio de performances, convida o espectador, ou melhor, o obriga a participar de “jogos” dos quais não sabe as regras?
A arte pode cumprir sua função revolucionária interna somente se ela própria não se torna parte de qualquer establishment, inclusive o establishment revolucionário [...] A realização da arte como princípio de reconstrução social pressupõe mudanças sociais fundamentais. O que está em jogo não é o embelezamento do que existe, mas sim a reorientação total da vida em uma nova sociedade. [...] Por que o artista hoje parece incapaz de encontrar a transfiguração e a transubstancialização da forma que capte as coisas e as liberte de sua sujeição a uma realidade bruta e destrutiva? [...] Não uma arte política, não a política como arte, porém a arte como arquitetura de uma sociedade livre. (MARCUSE, 2000, p.161-170)
O objeto só é auratizado quando não tem função utilitária. A arte só acontece na inefabilidade
[2]
e no prazer desinteressado. Não há transvaloração do objeto em obra de arte se este se configura como instrumento
[3]
. A obra adquire o verdadeiro estatuto de arte quando atinge o limiar do não-dito, na pura expressividade
[4]
do dizer não-dizendo: a própria linguagem (e não o objeto) é, pois, transfigurada numa universalidade
[5]
. No cinema, dois exemplos são “Orgulho e Preconceito” (Pride and Prejudice, 2005), e “Amor além da vida“ (What dreams may came, 1998). No primeiro, o sublime, ainda que complementado pelo figurino, pelo roteiro, pela fotografia, está no indizível, nos olhares, nas frases inacabadas, nos sentimentos, nos pensamentos dos personagens, “ditos” não pela palavra. No segundo, é a qualidade plástica, do Paraíso criado como uma tela impressionista, carregado de tinta, cuja cor é a própria expressividade de um “além da vida”, a partir do sentimento familiar vivido “na Vida”. No cinema, cabe lembrar ainda de “O sorriso de Mona Lisa” (Monalisa Smile, 2003), mas aqui a arte não exatamente no conteúdo fílmico (claro que ali também há), mas numa cena específica, quando Julia Roberts, a professora de História da Arte, encomenda um painel-tela de Pollock e, diante da surpresa de suas alunas (trata-se de um College conservador, nos anos 60) – “isso é arte?” interroga uma delas – apenas diz: “parem de falar, aproximem-se, olhem-no de perto, e apenas apreciem!”: a interpretação
[6]
não é necessária, arte acontece, por si, identiferenciando-se na novidade (não apenas material, mas espiritual
[7]
– ou seja, na forma e no conteúdo, no exterior e no interior da obra).
Kant, em sua Crítica da faculdade do juízo, afirmara que “o Belo é o símbolo da moralidade”. Se a (des)lógica contemporânea é a da des-simbolização, com o Imagético (“fingindo-se” de Imaginário) a imperar e a se sobrepor ao Simbólico (à linguagem), como pensar em “símbolo”?. Se o símbolo se desintegra – e a arte do sem-sentido nos mostra isso, trancafiando o Belo nas caves e nas instalações –, a moralidade e o enlace fundamental, fundacional, são denegados, por conseguinte: a hybris toma conta!
Talvez nem grau zero (plenitude de sentido), nem sem-sentido (anti-sentido), mas Presença e Sentido dialetizados, porque na Arte sempre há sujeito (feitor) e sujeito (olhador), em relação – obra e experiência estética. Um novo paradigma, que vise uma arte efetiva, verdadeira, pós-nonsense (pós-grau zero
[8]
), pós-mídia (cultura-de-Sentido e não cultura-de-imagem), ainda mais se torna necessário, senão obrigatório, propiciando, então, que a hybrida crie um novo estatuto existencial, pleno de sentido, ou seja, ético e estético por excelência. Só assim – se a arte se restabelecer como tal – é que ela será, também como Kant afirmara, liberdade
[9]
. Só assim, enterraremos essa “existência inautêntica” (segundo Heidegger), calcada numa cultura da máquina e da técnica (que deveria ser ferramenta e não fim em si mesma). Só assim escaparemos às armadilhas do esfacelamento do Ser
[10]
.
Talvez a arte seja importante fundamento para as questões éticas contemporâneas, como abertura para a alteridade e a valorização da diferença – Olhar o Outro em sua singularidade – tendo em vista exatamente a responsabilidade para com o Outro que se dá no conceito de acolhimento e hospitalidade em Levinas, posteriormente revisado por Derrida.
O filósofo da desconstrução destaca que, no acolhimento, a ética interrompe a tradição filosófica do parto e desfaz a astúcia do mestre quando este finge desaparecer atrás da figura da parteira. Uma política de hospitalidade é uma política do poder quanto ao hóspede, quer seja ele o que acolhe ou o acolhido. Para Levinas, o acolhimento dá e recebe outra coisa, mais do que eu e mais do que outra coisa:
Desde as primeiras páginas de Totalidade e infinito, lê-se que abordar o Outro no discurso é acolher sua expressão em que ele ultrapassa a todo instante a ideia que se poderia ter dele. É então receber do Outro para além da capacidade do eu; o que significa exatamente: ter a ideia do infinito. Porém isso significa também ser ensinado. A relação com o Outro ou o Discurso é uma relação não-alérgica, uma relação ética, porém esse discurso acolhido é um ensinamento. Porém o ensinamento não retorna à maiêutica. Ele vem do exterior e me traz mais do que eu contenho. (DERRIDA, 2004, p.35-35).
Esse receber, proposto como sinônimo de acolher por Derrida, só recebe na medida – uma medida desmedida – em que ele recebe para além da capacidade do eu. Essa desproporção dissimétrica marca a lei da hospitalidade. A palavra “acolher” designa, com a noção de Rosto, a abertura do eu, e a anterioridade filosófica do sendo sobre o ser. O Discurso, assim, se apresenta como Justiça “na retidão do acolhimento dado ao rosto” (DERRIDA, 2004, p.46). Nossa questão é exatamente neste ponto: se a arte pode ser entendida como Discurso, atuando como produtora de sentido e presença numa dimensão de abertura à alteridade.
A hospitalidade, para Derrida (2004), é a essância (diferente de essência) do que é, ou antes do que se abre assim para além do ser. Numa continuidade do pensamento levinasiano, a hospitalidade é infinita ou ela não é; ela é acordada ao acolhimento da ideia do infinito, portando do incondicional, e é a partir de sua abertura que se pode dizer, como o fará Levinas, que a ética não é uma disciplina da filosofia, mas a “filosofia primeira”.
Pensamos que a arte pode figurar precisamente como originária de um olhar para o diferente e como abertura para questões fundamentais da contemporaneidade – como fielmente é produzida, sempre como atenção ao tempo presente, e mesmo como antecipatória de problemáticas futuras – a partir das formulações do conceito de acolhimento e hospitalidade, tendo em vista que a lógica desses, como destaca Derrida, é uma “estranha lógica, mas tão esclarecedora, essa de um senhor impaciente que espera seu hóspede como um libertador, seu emancipador” (2003, p.107).
Entendemos que a arte é suspensão da linguagem, porque anterior a ela. Novamente, parece-nos que a arte acontece na hospitalidade, só é se acolhe, se permite uma abertura do eu. Nesse sentido, Derrida acrescenta:
Já nos aconteceu de perguntarmo-nos se a hospitalidade absoluta, hiperbólica, incondicional, não consistiria em suspender a linguagem, uma certa linguagem determinada, e mesmo o endereçamento ao outro. Sendo assim, não seria preciso submeter a uma espécie de contenção essa tentação de perguntar ao outro quem ele é, qual é o seu nome, de onde ele vem, etc? Não seria preciso abster-se de colocar essas questões que anunciam um tal número de condições requeridas, portanto limites a uma hospitalidade assim constrangida e confinada num direito e num dever? (DERRIDA, 2003, p.117).
Merleau-Ponty ressalta que “a criação artística colabora, de maneira privilegiada, com a elaboração da questão do Ser” (1984, p.109). Mondzain (2015), em outras palavras, ao pensar uma ontologia da imagem, destaca:
a imagem é [...] duas coisas em uma: ao mesmo tempo uma operadora em uma relação e objeto produzido por essa relação. As operações imaginantes são inseparáveis dos gestos que produzem os signos que, por essa razão, permitem os processos de identificação e a separação sem as quais não haveria sujeito. A definição da imagem é, portanto, inseparável da definição de sujeito (MONDZAIN, 2015, p.39)
Rancière (2015), em outro sentido, lembra que a vida das imagens é uma vida ao mesmo tempo mais sólida que a das aparências e uma vida mais leve que a das potências maléficas (p.193): em outros termos, não são apenas representações, não são tão coisas em si, são uma mescla, nem inocentes de suas consequências, nem supremo-poderosas. Para o teórico, “as imagens não são reflexos, sombras ou artifícios, são seres viventes, quer dizer, organismos dotados de desejos” (2015, p.193).
Em outra passagem, ele explicita melhor o que quer dizer com esse termo tão inusual quando se trata de imagem – ser vivente: “a imagem é eficaz ao abolir a distinção usual entre a abstração desencarnada das palavras e a vitalidade do corpo” (p.199). Rancière esclarece: “o que constitui uma imagem é a operação que transforma uma corporeidade em outra” (p.200), ou seja, a imagem é justamente a passagem entre palavra e corporeidade, entre o imaterial e o material, entre significante e significado. Ou, até mesmo, a passagem entre significantes, o que lhe confere exatamente o caráter de Sujeito, na conceituação de Lacan (1961), aquele que desliza numa cadeia de significantes, o que é representado por um significante para outro significante.
Para Rancière, “dar às imagens sua consistência própria é justamente lhes dar a consistência de quase-corpo que são mais que ilusões, menos que organismos vivos” (p.200). A imagem só é como quase, ou seja, ela só é, só acontece, só se estrutura ou se constitui como sujeito a partir do olhar do Outro: sua potência só ascende a partir desse olhar desejante que, por sua vez, lhe confere desejo e consistência, ainda que ficcional
[11]
.
Durante a pandemia, diante da fundamental importância que a arte exerce, como destacamos no início deste ensaio (tanto no quesito econômico-financeiro, com a geração de emprego e renda e movimentação da economia criativa, como no bem-estar individual, na saúde física e mental, bem como na produção de subjetividade, por meio do sentido e da presença), esta (a arte) acaba por operar também um exercício de poder, tal como as práticas clínicas e a governança.
O exercício do poder opera através de uma modalidade especial de ação, de natureza agônica, que pode ser entendida como o governo das próprias ações e das ações dos outros. Governo significa ordenar um campo de probabilidades através da condução de condutas, ou seja, governar é “conduzir” ações. Para Foucault (1982), “a conduta é, ao mesmo tempo, o ato de ‘conduzir’ os outros e a maneira de se comportar num campo mais ou menos aberto de possibilidade” (Foucault, 1982, p.243).
Segundo Tedesco e Rodrigues (2009), as práticas clínicas podem ser afirmadas como formas de governo do outro, ou seja, ação realizada sobre a maneira como o outro se cuida para se governar. A arte também opera nesse sentido, dado seu papel societário, evidenciado na pandemia. Trata-se de atos que contribuem na construção do autogoverno do outro. E, ao realizar essa aproximação entre arte, prática clínica e modo de governo, “a problematização ética é recolocada em novos termos. A questão é saber como a ética, que diz respeito à ‘relação consigo’, se aplica no contexto do governo do outro” (p.91).
A orientação ética da arte deve, portanto, alocar-se do lado da incitação ao movimento de forças, da instalação e da preservação dos jogos de poder. Tal estratégica deve ser realizada em duas direções:
De um lado, devemos evitar, nas relações de poder, que soframos os abusos de poder por parte do outro que visa conduzir nossas ações. De outro lado, e é o que mais nos interessa apontar no momento, devemos evitar exercer sobre o outro o poder indevido, forma de poder que conduza a estados de dominação. Em ambos os casos, trata-se de escapar dos estados de dominação e, para tanto, é preciso realizar um trabalho sobre nós mesmos que ao mesmo tempo nos transforme, opere deslocamentos de forças nos jogos de poder e, consequentemente, nos impeça de subjugar os outros. (TEDESCO & RODRIGUES, 2009, p.91-92).
É nesse sentido que a arte funciona como cuidado de si, como pressuposto para escape do estado de dominação, operando naquele sentido, de deslocamento de forças nos jogos de poder. O cuidado consigo mesmo visa administrar bem as relações de poder no sentido da não-dominação, como bem conceituara Foucault (1984): “aquele que cuida adequadamente de si mesmo é, por isso mesmo, capaz de se conduzir adequadamente na relação aos outros e para os outros” (p.271).
Cuidado de si e cuidado dos outros precisam estar entrecruzados no manejo das práticas que alimentam a circulação das assimetrias de poder, para, dessa forma, melhor acolherem os movimentos éticos de invenção de si mesmo. A “relação consigo” torna-se a estratégia ética principal uma vez que “não se deve fazer passar o cuidado dos outros na frente do cuidado de si; o cuidado de si vem eticamente em primeiro lugar, na medida em que a relação consigo mesmo é ontologicamente primária” (Foucault, 1984, p.271) .
Para governar os outros é preciso antes governar a si mesmo. O cuidado de si, conceituado por Foucault remete ao conceito grego de askésis. Um aspecto importante nesse último conceito (que de certa maneira nos remete ao “chegar-a-ser-o-que-se-é” nietzschiano) é a possibilidade de invenção de si mesmo através das práticas de si, e, segundo Laponte (2003), “não a descoberta da verdade de um sujeito que estaria oculta, eclipsada pela falta de consciência de si mesmo. As diferentes formas de práticas de si não são, dessa forma, ‘tomadas de consciência’” (p.77).
O cuidado de si, para Foucault, reverbera em uma “estética da existência”, que implica todo um conjunto de trabalhos sobre si mesmo no sentido de estetizar-se, produzir-se como uma obra de arte, bela aos olhos dos outros (e de si). Esse trabalho estético de produzir-se como obra de arte é o principal esforço ao nível das relações do sujeito consigo mesmo, destacando o princípio ‘ocupa-te de ti mesmo’ (e conhece-te a ti mesmo) e colocando-o como condição para o conhecimento de si, o que quer dizer que esse sujeito histórico se constitui eticamente nesse movimento que vai do trabalhar-se ao conhecer-se: .
Existem os cuidados com o corpo, os regimes da saúde, os exercícios físicos sem excesso, a satisfação, tão medida quanto possível, das necessidades. Existem as meditações, as leituras, as anotações que se toma sobre livros ou conversações ouvidas, e que mais tarde serão relidas, a rememoração das verdades que já se sabe mas de que convém apropriar-se ainda melhor. [...] as conversas com um confidente, com amigos, com um guia ou diretor; às quais se acrescenta a correspondência onde se expõe o estado da própria alma, solicita-se conselhos, ou eles são fornecidos a quem deles necessita. [...] em torno dos cuidados consigo toda uma atividade da palavra e de escrita se desenvolveu, na qual se ligam o trabalho de si para consigo e a comunicação com outrem. Tem-se aí um dos pontos mais importantes dessa atividade consagrada a si mesmo: ela não constitui um exercício da solidão, mas sim uma verdadeira prática social. (FOUCAULT, 1985, p.56-57).
O filósofo destaca, em um de seus últimos seminários no Collège de France, dedicado ao tema do governo de si e dos outros, que, em particular nos dois primeiros séculos de nossa era, houve um desenvolvimento de uma (certa) “cultura de si” que adquirira naquele momento tais dimensões que se podia falar de uma verdadeira era dourada da cultura de si, vinculada à verdade, a uma “coragem da verdade”, encarnada no sentido de um “falar francamente”.
E nessa cultura de si, nessa relação consigo, viu-se desenvolver toda uma técnica e toda uma arte que se aprendem e se exercem. Viu-se que essa arte de si necessita de uma relação com o outro. Em outras palavras: não se pode cuidar de si mesmo, se preocupar consigo mesmo sem ter relação com o outro. E o papel desse outro é precisamente dizer a verdade, dizer toda a verdade, ou em todo caso dizer toda a verdade necessária, e dizê-la de uma certa forma que é precisamente a parresía, que mais uma vez é traduzida pela fala franca. (FOUCAULT, 2010, p.43)
Assim, há uma dupla temática do cuidado de si e do conhecimento de si: a obrigação de todo indivíduo de se preocupar consigo mesmo, imediatamente ligada, como sua condição, ao conhecimento de si. Ninguém pode cuidar de si sem se conhecer. A arte, nesse sentido, é um conhecimento de si, a partir de um saber (ainda que suposto) do artista, ou uma experiência estética, propiciada ou alicerçada por este, também fundamentado numa prática de conhecimento de si próprio. O que está em questão é como tal conhecimento reverbera no cuidado de si, como uma ação mais ampla, existencial, como construção de uma “estética da existência”, tornando-se si mesmo, tornando-se obra de arte, e autor dessa obra, logo artista. E, ainda, como esse cuidado de si é condição sine qua non para a constituição de um cuidado dos outros, fundamento do cuidado de si destes outros, e a criação de uma estilística, dando vasão às singularidades e à diferença, como resistência à fragilização das subjetividades contemporâneas e suas sintomáticas: o desamparo, o desespero, o sofrimento psíquico, além de suas consequências psicopatológicas e comportamentais.
Heidegger chama de Befindlichkeit (sentimento de situação) um existencial que acompanha toda a compreensão do Dasein (do ser-no-mundo, a existência em si) e, em especial, as relações deste com seu conceito-chave de cuidado (Sorge). Segundo Stein (2000):
O cuidado se constitui como ser do ser-aí, porque nele se estabelece uma relação circular entre afecção e compreensão, na medida em que é eliminada a ideia de representação e substituída por um modo de ser-em, de ser-no-mundo e de relação do ser-aí consigo mesmo como ter-que-ser e ser-para-a-morte (facticidade e existência). O cuidado é o ser do ser-aí porque o ser-aí tem nele o horizonte de seu sentido: a temporalidade. Então o cuidado, com o caminho pelo qual o ser-aí, numa relação ontológica consigo mesmo, consegue, pela afecção e pela compreensão, ser, de algum modo, todas as coisas. (STEIN, 2000, p.157)
Quando a arte se restringe à esfera digital, como durante a pandemia, uma vez que também quarentenada, seu próprio conceito também é questionado, assim como o de virtualidade e ficção. “Não há instauração da verdade sem uma posição essencial da alteridade” complementa Foucault, no seminário de 1984. Por isso, talvez, cada vez mais enclausurados em nossas individualidades, nos prendemos às ficções e às virtualidades, às mascaras das redes sociais, com o totalitarismo das versões. Valorizamos Pokemon Go, ignoramos os malefícios do lítio e do silício na saúde, não consideramos problemático sermos localizados e vigiados via GPS e em conexões com o Facebook. Somos conhecidos por números, cadastros e cartões de crédito. Nos afastamos do Rosto e do Olhar, simbólicos do Outro, como destacara Levinas: “O encontro com Outrem é imediatamente minha responsabilidade por ele [...] é sempre a partir do Rosto, a partir da responsabilidade por outrem que aparece a justiça, que comporta julgamento e comparação, comparação daquilo que, em princípio, é incomparável, pois cada ser é único, todo outrem é único”.
As ciências humanas que, em sua origem, eram chamadas de ciências do espírito, em contraposição às ciências da natureza, físicas e biológicas, sempre tiveram em seu cerne preocupações éticas relativas ao homem e suas relações. Contudo, com os avanços científicos e tecnológicos, evidenciados durante a pandemia de COVID-19, passaram a ciências cada vez mais técnicas, com procedimentos e métodos apropriados de outras ciências, visando uma afirmação e, principalmente, um reconhecimento daqueles cientistas. É estranho, muitos temos ojeriza ao tecnicismo, mas permanecemos neste caminho. E, com isso, nos afastamos cada vez das humanidades, essa grande área que abarcaria todos nossos estudos. As humanidades sempre se caracterizaram por um equilíbrio entre a técnica e a arte. Pendemos, no entanto, cada vez mais, para o tecnicismo.
Heidegger nos alertara sobre isso na primeira metade do século XX: para os perigos da articulação entre tecné e logos, convertida em tecnologia. E, consequentemente, nos afastamos da verdade. Disse o pensador que mais filosófica que a ciência e mais rigorosa, ou seja, mais próxima da essência da coisa, é a arte. Afirmou ele: §204 – A arte não é tomada nem como um campo de realização cultural nem como uma manifestação do Espírito. Ela pertence ao acontecer-poético-apropriante (Ereignis), a partir do qual se determina o “sentido do Ser”. (HEIDEGGER, 2010).
A obra de arte dá a conhecer o que o utensílio é em verdade: a exposição sobre os sapatos pintados por Van Gogh leva Heidegger a definir a essência da arte como o pôr-se em obra da verdade do sendo (§55 e §65, 2010). Pode-se, inclusive fazer uma identificação do conceito de Grau Zero do Ser ao de Verdade do hermeneuta alemão. Para ele (§130), a verdade é não-verdade na medida em que lhe pertence o âmbito da proveniência do ainda-não revelado, no sentido de velamento (cuidado, guarda, conservação, proteção: resguardar o deixar acontecer).
Paul Valery, também no início do século XX, observando o papel que a ciência desempenhava na Primeira Guerra Mundial, afirmou: “Temo que o espírito esteja se transformando numa coisa supérflua”. Que a pandemia de COVID-19, além de destacar o papel da ciência na sociedade, também provoque um retorno às humanidades por meio da arte. Para, também com ética e sem fragmentações, não sufocar o que de humano permanece em cada um de nós! E que arte, no “novo normal”, também retorne renovada, hospitalidade!
REFERÊNCIAS
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[1]
“Através da liberação de formas, linhas, cores e concepções estéticas, através da mixagem de todas as culturas e de todos os estilos, nossa cultura produziu uma estetização geral” (BAUDRILLARD, 1990, p.23).
[2]
“A vida é êxtase, como a escalada do Everest, sim, mas também é toda indefinição, necessita de pequenas traduções e algumas mitificações” (ALBUQUERQUE, 2009, p.74).
[3]
“O que se conserva, a coisa ou a obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos. Os perceptos não mais são percepções, são independentes daqueles que os experimentam. [...] O artista cria blocos de perceptos e afectos, mas a única lei da criação é que o composto deve ficar de pé sozinho. O mais difícil.” (DELEUZE, 1992, p.213-214); “Composição, eis a única definição da arte. A composição é estética, e o que não é composto não é uma obra de arte” (p.247).
[4]
Aqui não me refiro, ainda, à Presença, tal como conceituada por Gumbrecht (2010).
[5]
“A interação do universal e do particular, que se produz inconscientemente nas obras de arte e que a estética tem de elevar à consciência, é a verdadeira necessidade de uma concepção dialética de arte” (ADORNO, 1993, p.205).
[6]
As teorias da arte contemporânea introduzem a Interpretação como elemento constituinte, fundamental da obra de arte. A obra, entretanto, independe da Interpretação: ela é o que apresenta. Kant, no parágrafo 9 da Crítica da faculdade do juízo, afirma: “É belo o que agrada universalmente sem conceito”. Denegar a Interpretação, no entanto, não compactua com o sem-sentido. O sentido é condição para a coisa, o artefato, elevar-se à obra de arte. Baudrillard destaca: “A arte é obrigada a significar; nem sequer se pode suicidar no cotidiano” (s/d, p.118).
[7]
“A união dos dois tipos de força – a da inteligência ou da espiritualidade e a da forma ou da perfeição técnica – é coisa rara, o que a história da arte igualmente prova” (KANDINSKY, 1991, p.168).
[8]
“O que se mostra no limiar entre ser e não-ser, entre sensível e inteligível, entre palavra e coisa, não é o abismo incolor do nada, mas a espiral luminosa do possível. Poder significa: nem atribuir, nem negar” (AGAMBEN, apud Bartleby, ou da contingência)
[9]
“[...] enquanto o particular e o universal divergirem, não há liberdade” (ADORNO, 1993, p.56)
[10]
“A partir dos Tempos Modernos, a filosofia teve de dar adeus à metafísica, à verdade, ao Ser, à ciência, às grandes ideologias, às utopias da modernidade; ao homem também, que ela entregou ao cuidado das ciências humanas. Mas ela nunca pôde, de fato, cortar os laços com a arte. Ferramenta pedagógica, argumento teológico, instrumento de propaganda, cópia da natureza, aparência inofensiva, reflexo da realidade, projeção de fantasmas, paixão narcisista, objeto de prazer, meio de conhecimento, a arte sempre foi o brinquedo da filosofia. A filosofia, todavia, leva a sério tal brinquedo, talvez com secreta inveja do artista, capaz de apreender com um gesto, com uma cor, com um simples acorde o que os discursos e os conceitos nunca conseguem realmente expressar. A arte revela-se assim como a questão essencial da filosofia. [...] E é por essa razão que o filósofo da arte não pode, sob pena de ele mesmo desaparecer, acreditar seriamente em uma morte da arte” (JIMENEZ, 1999, p.390-391).
[11]
“A lógica das imagens [...] é uma lógica da mostração: as imagens nos dão a ver alguma coisa, nos colocam alguma coisa “sob os olhos” e sua demonstração procede, portanto, de uma mostração” (BOEHM, 2015, p.23).
30 de novembro de 2020
TEMPO: Saúde, Trabalho e o Cuidado de Si
Vera Marta Reolon
“Os bons escritores escrevem a partir do amor, por amor, e com frequência, seja diretamente ou não, pela libertação de todos os seres.” Rebecca Solnit – in: De quem é esta história?
“Os discursos NÃO se apagam E SE fazem presentes em CADA ação.
Cem linhas, COM linhas e sem linhas [...]”
O SEGREDO: “fazer existir, não julgar” (Deleuze)
OUTRO SEGREDO: “Não invadir a VIDA dos outros” (Vera Marta Reolon)
Então... devemos discorrer sobre a pandemia de forma multidisciplinar (inter/trans). Falar da pandemia estando nela... vivenciando-a em nosso dia a dia, em nossas vidas, em nosso cotidiano. E não só vivenciando-a, mas sem muitas informações sobre suas causas, seus efeitos múltiplos, suas sequelas, enfim sobre tudo que abarca este estado de coisas. Isso manifesta muita tensão, muita dor, não somente gerando processos depressivos, mas estresse, físico, mental, emocional e, por que não dizer, social. Já tínhamos passado por outros processos de abalos na saúde, dengue, H1N1, zika, chikunguia... sempre as lembranças que nos vêm das grandes epidemias que dizimaram populações inteiras. Podemos dizer: essa é mais uma delas?
Não é tão simples, já que gostamos de pensar que temos atingido novos patamares científicos, nosso conhecimento da vida, dos efeitos de processos virais, bacteriológicos, doenças relacionadas nos trouxeram mais saber, progresso científico, segurança. Mas eis que nos chocamos ao nos darmos conta que nossos saberes não são tantos assim e um vírus microscópico nos pega de surpresa e abala nossa vida, nossa economia, nossa saúde, nossas relações sociais e muito nossa vida pessoal.
Vivemos um momento em que o individualismo impera, as relações pessoais acontecem mais em contatos mediados por celulares, com poucos contatos pessoais, abraços, apertos de mão, beijos..., afeto. Há, em nossos dias, o que chamamos, em psicologia, “isolamento do afeto”. Vejamos, esta é uma característica citada em livros de psicologia como sintoma de processos de isolamento social, psicoses, dores emocionais mais agravadas. Eis que os excessos de tecnologias nos têm levado a esse isolamento dos afetos. Nos afastamos do outro, quer seja para não nos comprometermos social, emocionalmente, mas também para nos escondermos em um universo ensimesmado, para dentro de nós mesmos. Alguns podem dizer: mas isso é bom, estamos em busca de nós mesmos, de nos conhecermos, do tal “conhece-te a ti mesmo”. Doce ilusão!
O dentro de nós mesmos é só um jogo retórico para dizer dentro do computador, dentro do celular. Ou seja, para dentro do nada. As máquinas são universos fabricados por mãos humanas que as projetaram, inseriram-nas determinados códigos de programação, de tal forma que funcionem como ferramentas o mais competentemente possível, com o fim de nos auxiliar em nossas tarefas cotidianas. Ficamos tão a mercê dessas ferramentas que as consideramos seres pensantes por si mesmos. Isso é de um absurdo tão grande, mas reflete o mais da realidade de nossos dias. Pensamos nas máquinas como autônomas, sem programas, sem linguagens de máquina, sem inserção de dados por alguém anterior a nós, sem um programador que as preparou para que nos propiciassem uma vida mais simples. Qual o quê!... Nossas vidas ficaram mais complicadas.
Inicialmente, o universo tecnológico nos causava temor. Temor que não os entendêssemos, temor que perdêssemos dados, temor que os desconfigurássemos, que a máquina queimasse... Temor até que precisássemos chamar um técnico para reconfigurar tudo, formatar a máquina e iniciar tudo... além dos custos que tudo isso acarretaria. Com o tempo, formos aprendendo a formatar, a iniciar as máquinas, fomos aprendendo as linguagens, os programas, fomos aprendendo a salvar dados importantes em outros pequenos instrumentos, cada vez mais versáteis, cada vez mais complexos, mais potentes. Mas a individualidade que isso nos acarretou, o tempo gasto em frente a elas (as máquinas), sem ao menos nos darmos conta de sua quantidade, nos tiraram muito da vivência social, familiar, amorosa, filial. Fomos nos afastando do mundo, acreditando nas premissas de que, estando em um computador, em um celular, estamos globalizados, informados do todo, dos acontecimentos do mundo. Mais uma doce ilusão!
Quanto mais tecnologia temos, menos informação temos. Porque mesmo com dados à disposição em diferentes plataformas, menos acesso a elas temos. É um paradoxo, mas paradoxalmente, para sermos redundantes, lá onde precisamos sê-lo, quanto mais dados inserimos na tecnologia, mais precisaremos saber os caminhos para chegar aos dados. Logo, menos acesso a informações temos. Não temos os “links” necessários para acessar as notícias. Não sabemos acessar as notícias verdadeiras e diferenciá-las das “fake news”. E, quem nos dirá o que é verdadeiro e o que é “fake”?
Podemos pensar em saudosismo, mas não é só disso que se trata. Há o saudosismo do buscar uma informação, por exemplo, em uma prefeitura, para obter determinado recurso, que hoje não temos, porque devemos saber que um edital foi publicado e onde podemos acessá-lo. Mas nos falta também o contato com as pessoas, com o funcionário, a conversa para obter o recurso e a informação. Nos falta o necessário afeto da busca, do contato, da gentileza. Tudo ficou impessoal, distante, quase “esquizofrênico”, para usar outro termo da psicologia. Vivemos um tempo de quebra da personalização, somos o ser da máquina, do software, do aplicativo e, nem sempre aquele que se apresenta via máquina é o ser real. Sim, porque o ser da máquina é o que nos acostumamos a chamar (sem pensar muito sobre o termo) virtual. E já não sabemos distinguir a diferença entre o real e o virtual.
O real, o de “carne e osso”, é muito diferente do virtual. Claro que alguns preferem mesmo que assim o seja, já que montam grandes fantasias de si mesmos, criam perfis que não condizem com a realidade, fotos de outros, montagens, inteligências que não possuem, critérios que pertencem a outros, criam o que nos acostumamos a chamar mentiras. Só que, por mais absurdo que seja, não julgamos, nem pensamos nisso, que sejam mentiras. É como se a vida que criamos nas tecnologias, fosse outra, um outro, uma outra vivência, um ideal. Claro que este mundo de idealidades nada tem a ver com o universo ideal de Platão. Naquele, o mundo ideal é uma busca constante de melhorias em si mesmo, de um “tornar-se si mesmo”.
O que temos nisso que convencionamos chamar de perfil é um universo quase esquizoide, particionado, dividido, algo que queríamos ser, mas jamais o seremos, porque não há busca, não há melhorar-se, não há tornar-se si mesmo. O que há é o buscar ser o que invejo de outro,..., de todos os outros. Há a constante mentira. Daí, há a necessidade de afastarmo-nos de todos, pois no encontro, dar-se-ia a percepção que tudo aquilo que está no perfil é falso, a máscara cai. Então, quanto mais longe melhor, quanto mais distante, mais a “verdade-falsa” do perfil será a “verdade” “virtual-real”. Tudo isso soa absurdo, uma linguagem do absurdo. E realmente o é, mas essa é nossa realidade do hoje, do nosso tempo.
Neste momento necessário, se faz evocar uma frase de Savvas Karydakis, inserida na apresentação do livro A Peste, de Camus: “nada melhor do que uma crise coletiva para revelar ao indivíduo acuado os valores não individuais- políticos, éticos, metafísicos – que constituem sua precisa individualidade”.
Nada melhor que uma crise, como a que estamos enfrentando, para nos dar uma real dimensão de nossa vida, social, coletiva, amorosa, familiar. Entramos nesta crise há, mais ou menos, um ano, e como ela nos modificou e nos deu novas dimensões de mundo. Claro que não a todos, mas alguns conseguiram acordar. A crise nos afetou, de início parecia ser um mundo que não nos abalaria, começou na Ásia, tudo muito distante, outro povo, outra cultura, outros hábitos. Pensamos, inicialmente, que se tratava de um vírus que veio a eles através de suas alimentações exóticas, e até hoje não se sabe muito bem se realmente não foi por ali! Enfim, estávamos distantes deles, eles enfrentavam um problema localizado e buscavam soluções.
Logo, o que antes estava distante, começou a se aproximar, a Europa cita casos de infecção. Os casos passam a ser epidemia, inicialmente localizada, aos poucos se alastrando, viram pandemia, chegam às Américas e, aqui, a crise se espalha de tal forma que viramos o que se convencionou chamar de epicentro da doença. Que isso quer dizer? Quer dizer que passamos a ser uma região, do mundo, em que temos mais casos de infecção e, pior, mais casos de mortes.
Novamente, voltamos a números e, dia a dia, só ouvimos números, estatísticas. As informações, depois de um ano, praticamente inteiro, não mudaram tanto. Sabemos que o vírus, o CoronaVírus, é altamente contagioso. A doença que causa, a COVID-19, é mortal, em corpos mais suscetíveis, em corpos mais fragilizados. Porém, além disso, as informações são parcas, pequenas. Sabemos que, como o ataque do vírus em corpos mais fragilizados é maior, logo os idosos, com doenças pré-existentes, são mais, não só suscetíveis, mas a população que mais precisa de cuidados e afastamento, recolhimento, o que convencionamos chamar de quarentena, que já não é quarenta dias, mas ano e, quem sabe...
Interessante observarmos que pessoas que tenham um organismo mais forte, com mais defesas, não são afetadas pelo vírus, ou, quando o são, a doença passa quase despercebida. OK! Essa é uma informação divulgada corriqueiramente pelos órgãos de saúde, pelos pesquisadores. Mas, em sendo verdadeira, e deve ser, por qual razão as crianças, que certamente têm um organismo ainda não totalmente forte, ainda não totalmente constituído por defesas sólidas de um organismo mais adulto, mais bem alimentado, mais exercitado, não sofrem tantos revezes com a doença, com o vírus? Perguntas que sempre são recorrentes quando nos questionamos um pouco mais. E, em “quarentena”, pensamos mais com certeza.
Sabemos que idosos, pessoas enfraquecidas por doenças pré-existentes, sofrem mais, e são mais rapidamente, e corriqueiramente, levadas a óbito. Sabemos também, depois de um ano de internações e isolamentos, e infecções, que a doença, COVID-19, deixa sequelas. Sequelas sérias: perda de olfato, perda de paladar, dificuldades na locomoção, na fala, ..., e sabe-se lá quantas mais. Porque, óbvio, nem todas as informações são divulgadas, já que só fariam por assustar mais a população.
Nestas alturas, todos nós já convivemos com alguém que passou pela doença, pela infecção com sintomas leves, moderados, graves. Com cura, se é que assim podemos chamar, com mortes, enfim... Tudo isso nos leva a momentos de grande angústia, de dor, cada um a seu modo. Porém todos buscando ultrapassar estes momentos e acreditar em esperança.
Camus, em seu livro A Peste, nos diz que “uma forma cômoda de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como nela se morre”. Nesta obra, Camus nos traz a vivência existencial de uma população local a viver um surto de doença. Doença essa que se inicia lá por uma morte generalizada de ratos, a queda da mortalidade de ratos e o avanço sobre a população humana. As agruras do sofrimento das personagens nos mostram, nos fazem sentir (e a mim, em particular, nos idos da leitura do livro) a dor do existir em um ambiente febril de dor, desespero, doença. Qual o que, que passamos nós a vivê-lo em nossos dias. Quase um século depois, da escrita do livro.
Isolamento das pessoas, do convívio com familiares, de saída às ruas, de fechamento de comércios, de indústrias, de serviços, de toda a cadeia produtiva, problemas econômicos agravados, ruas desertas, estoques de alimentos, aumentos de preços, falta de alguns itens de consumo. Impossibilidade de adquiri-los, pois houve demissões (com fechamento de empresas, queda de empregos). Aliado a tudo isso, como se a dor já não fosse tão grande e séria, governos nem sempre coerentes, nem sempre éticos, corrupção em diversos campos, na aquisição de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), afastamento de responsáveis corruptos. Além das dores de sempre: as “fake news”, notícias falsas, de débeis, metidos a “sabidos”, ou a “engraçadinhos” que pensam tirar vantagens em momentos de crise. Sempre os há! A população brasileira ainda sofrendo pela queda de detritos em Mariana e Brumadinho (por quê nunca conseguem antecipar graves problemas, que certamente se darão em futuros não tão distantes e que todos sofrerão as consequências de atos que podem ser previsíveis?) e recebe notícias de ministro do Supremo Tribunal Federal a liberar chefe de tráfico de drogas em habeas corpus fora de propósito (o comprovadamente marginal sendo buscado na cadeia , na liberação, por motorista particular em carro importado). E o juiz “ingênuo” escreve, em sua concessão do habeas corpus, que o réu deve informar à justiça seu paradeiro. Ingenuidade de um juiz crer que o ex-fugitivo da justiça não o fará novamente!
A política já não é política dos gregos, dos que saem das sombras e conseguem ver a verdade e usá-la, mas sim os que praticam o “jeitinho” da manipulação de dados, de verdades, de mentiras, de palavras, de atos, em “técnicas” que traduzem o que virou a política hoje: da enganação, da ludibriação. Em meio a tudo isso, o povo parece anestesiado. Sem saber o que fazer, vai “vivendo”. Em quê se tornou esse ir vivendo? Um deixar-se levar pelos acontecimentos. Um “se não posso fazer nada, não quero nem saber, apenas sigo”. Isso é terrível, pois é a estagnação de um povo, de vidas. É um não viver, é como um estar permanentemente drogado pela vida, pelo não viver, pela morte.
Como diz Camus, trabalhar, amar, seriam formas de vida. Morrer, da morte, naturalmente.
Como vivemos? Certamente anestesiados pela dor é que não podemos chamar de viver! Os acontecimentos que, já antes da pandemia, nos levavam a um aniquilamento das forças e a uma busca desenfreada do individualismo, com a pandemia se agravam.
Em uma série no “streaming”, procuraram retratar a vivência de amigos durante a pandemia (inicial, diga-se!) do COVID-19. Há os que se afastam dos outros, isolando-se em suas casas, sem deixar nem mesmo o ar entrar, por temor de contrair o vírus, enchendo-se de álcool gel (até mesmo ingerindo-o) numa tentativa de esterilizar-se e esterilizar o ambiente em que vive. Há os que se alienam, isolados em suas casas, mas a fazer o que jamais fariam em uma “normalidade”: postam-se em sacadas, nus a mostrar-se a vizinhos e buscar contrair improváveis relacionamentos. Há os que se afastam, crendo que o vírus, a doença, é uma reação da natureza a nossos constantes ataques a tudo o que é natural. Logo, buscam um retorno, em defesa dessa natureza tão devastada e sofrida (no Brasil, sabemos bem o que é isso, com as queimadas, com a poluição). Outros, fazendo parte dos grupos de profissionais da saúde, sofrem com a necessidade da escolha, do ter de escolher em quem será atendido pelos instrumentos médico-hospitalares disponíveis e quem será relegado e deixado à morte. Outros buscam fazer sua parte, buscando atender às necessidades de quem precisa trabalhar, doando alimentos, preparando-os, transportando-os. Outros, ainda, buscam as redes para, de alguma forma, minimizar o isolamento e buscar uma aproximação social e, até mesmo, um ganho pessoal.
“Deixar que um vírus que não conhecemos bem circule livremente é anti-ético. Não é uma opção”, afirmou Tedros Adhanom, Diretor Geral da Organização Mundial da Saúde. OK, precisamos controlar o vírus, precisamos nos proteger, precisamos proteger nossas famílias, precisamos proteger nossos bens, precisamos proteger nossa saúde, nossa vida. Tudo isso é complicado, mas se complica mais se temos a informação de que não temos todas as informações necessárias para fazê-lo. E, pior, não sabemos sequer como fazê-lo, já que estamos a tatear atos, ações, acontecimentos. Claro, recebemos informações todos os dias, os meios de comunicação, jornais, rádio, televisão, buscam nos ensinar diariamente como seguir em frente. Mas, se pensamos um pouco, sabemos que as coisas estão meio confusas. Sabemos que as doenças infecciosas tendem a se agravar em ambientes sujos. Então, por quê quando estamos a praticar exercícios, ao término deles, não podemos tomar um banho para, ao menos, tirar o suor do corpo? Claro, devemos evitar aglomerações. Mas, os chuveiros são isolados, os banhos favorecem a limpeza, então...? Isso para falarmos em um ponto minúsculo no universo de bobagens (ou não) que enfrentamos durante essa pandemia.
Os profissionais de saúde também enfrentam uma gama de problemas, já que, além de enfrentar as doenças dos pacientes que lhes chegam e que, muitas vezes, eles mesmos não têm respostas a lhes dar, ainda devem enfrentar a possibilidade de serem contaminados também. E, sabemos, muitos têm sofrido e morrido vítimas que são também do vírus. Culpa, dor e angústia fazem parte de seus dias, assim como a todos. Mas, eles sempre foram preparados para atender as dores do mundo e, com parcas informações, se veem à mercê da falta delas e do não saber o que fazer, mesmo em suas profissões.
Compreende-se o senhor Diretor Geral da OMS, mas como não ser anti-éticos sob todas essas variáveis? Espera-se a vacina, mas como e quando ela virá? Quem a ela será submetido? Quais as reações adversas que podemos esperar? Por quanto tempo estaremos imunizados? Mesmo, em sabendo todas essas respostas, e vivendo além delas, que tipo de população e vivências teremos?
A economia, os processos econômicos estarão devastados, em grandes crises, o desemprego, que já abalava o mundo, estará agravado. Como vamos seguir, que empregos gerar, num universo governado por tecnologias que ainda estamos longe de administrar com eficiência e eficácia. Óbvio que precisamos gerar empregos, mas a busca por empreendimentos é uma variável que ainda não conseguimos antecipar com clareza. As universidades não estão preparadas a preparar (redundante mesmo!) pessoas para um novo universo de desemprego galopante e falta de perspectivas.
A ação é o que torna o homem diferente, humano. A ação humana por natureza é o trabalho; como viver, ser humano, sem trabalho? O homem, constituído pela marca desejante, está condenado à liberdade de escolha e, com ela, deve representar todos os homens e o que de humano há neles, se é que possuímos humanidade.
Partindo-se do pressuposto de que a ação humana é o trabalho, que este é a condição humana por excelência; partindo-se dos dados que nos são fornecidos praticamente todos os dias de queda de postos de trabalho; partindo-se do dado de que muitos destes postos de trabalho são perdidos em função da introdução das tecnologias em todos os meios; partindo-se de tudo o que se têm escrito sobre as ideias de homem, suas necessidades, suas angústias e ideias do bem viver, do compartilhar, do viver em sociedade, de “compaixão”. E, utilizando-se alguns autores, e o que dizem sobre que HOMEM temos hoje, ele é diferente, ele VIVE, ou ele apenas sobrevive e o mundo está num “salve-se quem puder” (ou seja, queda de toda e qualquer possibilidade social!)?
O homem e a escolha. A ação humana. A Condição Humana. O trabalho, o labor, a vita activa. A escolha de um estilo de vida, conforme proposto por Kierkegaard, o estilo de vida ético, o estilo de vida estético e o estilo de vida ético-estético (?). As tecnologias. A falta de recursos advindos da falta de postos de trabalho. O cuidado de si. A volta ao questionamento sobre o homem e quê homem temos, como e para onde vamos (se vamos!). A educação e a filosofia, em particular, como busca por respostas (se as há!).
Num tempo em que vivenciamos grandes demandas por novas respostas a tudo o que nos ocorre no social, nem sempre com vontade e desejo de pensar sobre elas, de muitas transições, imigrações, emigrações, transferências de pessoas de cá para lá (nem sempre bem vindas!), de uma violência galopantemente invasiva e sem possibilidades de soluções no mundo e na sociedade (não há interesse, a não ser que os interesses sejam os de livrar-se do “problema”, enjaulando, marginalizando, segregando, “matando”?), de um “parecer” ser, de um ter mais do que qualquer possibilidade de busca de ser, de viver, de um mascarar-se para fingir ser algo e/ou alguém (aqui “copiar” o outro deixa de ser o horror Frankenstein para “parecer” ser o outro, sem qualquer possibilidade de identidade – DIFERENÇA - SINGULARIDADE - própria, sequer do outro - já que jamais haverá qualquer possibilidade de ser O outro!).
Num mundo em que não se sabe mais o que é o homem, o que o diferencia de uma máquina, o que é uma máquina (alguns chegam ao absurdo de pensar que as máquinas operam-se sozinhas, programam-se sozinhas, são!). Num tempo em que não se compreende o que se tem para viver, como as relações homem-homem podem se dar, como viver (já que tudo aparenta ser só “conexão”!) como escolher uma vida a viver, é possível ainda “escolher”?. O que pensadores antes de nós acreditaram ser uma escolha, uma boa escolha? Ainda é possível “viver”, na forma como estes pensadores (alguns ou todos?) pensaram, propuseram, escreveram sobre?
Sem trabalho, não se tem o poder de troca para pensar em “VIDA”, socialmente, pessoalmente, em família... Como há um homem sem trabalho, logo, sem o retorno desta condição? Quem o sustenta, o quê o sustenta, ele pensa, ele “rouba” (se ele rouba, ele tem a condição? – ele é HUMANO?)?
Se o homem, ou o ser que temos hoje (se é “ser”), não tem a condição de seu sustento, quem o mantém respirando? De onde viriam recursos para tanto, que tipo de governos podemos pensar para atender a essas demandas (é de “governo” que se precisa – de que tipo de “governo” estes “seres” precisam?).
Estas são questões que urgem ser pensadas, até mesmo para repensar sociedades, meios de sobrevivência, de subsistência, de trocas, meios de relações, possíveis ou não, de seguir com o que fazemos ou mudar os rumos. URGE, para ONTEM, que na educação, já se estivesse com alunos “formados”, pensando sobre tais questões, propondo novas pesquisas, mas com ÉTICA (não é na ACADEMIA que se deveria falar, pensar, escrever, discutir, propor desta forma? – se não o for, onde mais poderia ser, existe um outro lugar?).
O que nos diferencia como humanos? O homem, em alguns momentos, diz-se humano porque possui racionalidade, porque possui espírito, enfim diferentes conceitos, construções teóricas que, na verdade, nada dizem, são apenas palavras que não trazem respostas às nossas inquietações. Diferentemente de Platão, que concebe o amor como movimento, pulsão, vida, desejo de algo, busca por algo, Schopenhauer encontrou-o a priori manifestando-se na Vontade. Como coloca Dumoulié (2005), o nosso conhecimento se acha encerrado no mundo dos fenômenos, portanto de representação, mas nós temos a intuição imediata através do nosso corpo, da essência íntima dos seres e do mundo. Para Schopenhauer, que sofreu influências de Platão e Kant, o mundo é fenômeno, é representação. A Vontade estaria em um mundo de ideias – platônico -, num mundo idealizado, superior, inalcançável, que pode apenas ser simbolizado. A Vontade, entretanto, não é externa, para Schopenhauer, ela está em nós.
Schopenhauer estabelece uma dupla lei relativa ao desejo: os contrários se atraem e cada um procura no outro aquilo que lhe falta. Desta forma, procura-se um amado que possua aquilo de que se é carente. Aqui há uma conexão com Platão e com Lacan. Sartre vai além deste conceito, ele fala do existir humano, do processo da existência humana, como uma construção, construção essa que parte da própria liberdade de ser humano. O homem vai construindo sua existência, a partir da liberdade que possui, liberdade de escolher, conforme seu desejo: “toda verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana” (SARTRE, 1970, p.1). Kierkegaard vai propor que o homem deve/pode escolher/eleger como vai conduzir sua vida. Propõe dois estilos de vida, de escolha: o estilo de vida estético e o estilo de vida ético. Se o homem opta por seguir um estilo de vida estético (que aqui nada tem de estética – arte ou o que hoje entendemos pelo termo estética), ele é o que vive o INSTANTE (fronteira entre o antes e o depois). Em princípio ele viveria em liberdade. Mas, na crítica que Kierkegaard faz a este “escolhedor”, dirá que esta liberdade é um engodo, já que a verdadeira liberdade só se dá na opção pelo estilo de vida ético
o que vale é madurar a própria personalidade antes de formar o espírito [...] desejarias fortalecer tua alma [...] tem em cada ser uma potência capaz de desafiar o mundo inteiro [...] o principal da vida, reconquistar-te a ti mesmo, adquirir-te a ti mesmo, com a condição de que possas, o mais bem que queiras poder a energia necessária para fazê-lo. (KIERKEGAARD, 1966, p. 9-11).
O estilo de vida ético, à semelhança do que ocorria no mundo grego, incorpora, abarca o que entendemos por estético. Ao optarmos pelo estilo de vida ético, incluímos em nossa opção a vida estética, incluímos a opção por nós mesmos, o eterno. O sujeito que opta pelo estilo de vida estético vive no desespero e nada tem de fato.
Tua escolha é uma escolha estética, mas uma escolha estética não é uma escolha. Em verdade, o fato de escolher é uma expressão real e rigorosa da ética [...] o único aut-aut (ou isto, ou aquilo) absoluto que existe é a escolha entre o bem e o mal e essa escolha também é absolutamente ética. (KIERKEGAARD, 1966, p. 20).
O desespero não deve ser um inibidor de minha ação. Ao contrário, deve me engajar na ação: “não é preciso ter esperança para empreender [...] não deverei ter ilusões e que farei o melhor que puder” (SARTRE, 1970, p.08). A realidade só existe a partir da ação, o homem só existe à medida que se realiza na ação, o homem é o conjunto de seus atos. Para Hanna Arendt, o homem não é um ser de natureza, é um ser de condição. A condição humana é que o homem é um ser de ação (arte) e discurso (político). Hanna diferencia labor de trabalho, mas dirá que a condição humana, por excelência é o trabalho, ação humana que nos diz quem e o quê somos.
Com a expressão vita activa pretendo designar três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação. [...] o labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano [...] tem a ver com as necessidades vitais [...] a condição humana do labor é a própria vida. O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana. [...] a condição humana do trabalho é a mundanidade. A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade. (ARENDT, 2008, p.15).
Independentemente se tomamos cada uma das atividades humanas ou se nos dedicarmos, abarcarmos o termo proposto por Hanna, vita activa, as três atividades referem-se ao que designa, distingue o homem como homem, à durabilidade do mundo, já que o homem o habita.
o trabalho de nossas mãos, em contraposição ao labor de nosso corpo – o homo faber que “faz” e literalmente “trabalha sobre” os materiais, em oposição ao animal laborans que labora e “se mistura com eles” – fabrica a infinita variedade de coisas cuja soma total constitui o artifício humano. (ARENDT, 2008, p.149).
Outros autores também nos apresentam a importância do trabalho na vida humana, para o seguir de sua existência: “No trabalho, o homem satisfaz uma potência de criação que se multiplica por numerosas metáforas” (BACHELARD, 2001, p.24). A própria Hanna questiona, em seu texto A Condição Humana, o que faremos (ela já se perguntava nos anos 60 do século XX), sem trabalho: “O que se nos depara, portanto, é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta” (ARENDT, 2008, p.13). E ela mesma nos aponta o que pode nos ter conduzido a esta “situação”:
talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida para além do limite de cem anos. [...] O problema tem a ver com o fato de que as “verdades” da moderna visão científica do mundo, embora possam ser demonstrados em fórmulas matemáticas e comprovadas pela tecnologia, já não se prestam à expressão normal da fala e do raciocínio. [...] Se realmente for comprovado esse divórcio definitivo entre o conhecimento e o pensamento, então passaremos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso know-how, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja. (ARENDT, 2008, p.11).
Nunca, em nenhuma outra época de nossa história, esteve o homem tão só em meio à multidão. Os ideais que o sustentavam caíram, a felicidade não depende mais da harmonia de vínculos sociais, mas de objetos adquiridos e ofertados incessantemente pela mídia e os instrumentos gerais do marketing. Há uma oferta de gozo total. A foraclusão da Lei da vida é paga com dízimos. O sujeito é transformado, através do seu assassinato, em objeto submisso do gozo do Outro. Não há nada mais psicotizante do que isso. Nas doenças da modernidade, anorexia, bulimia, toxicomanias (acrescenta-se, neste momento, os sintomas da pandemia de COVID-19), e a consequente violência advinda delas, o que se tem são sombras que o mundo das luzes não ilumina. A modernidade nos oferece um mundo iluminado (de uma iluminação artificial, mascarada) pelos outdoors plenos de ofertas, mas nosso eu, quem sou, para onde vou, o que desejo (?), não há resposta. Há muita “luz” de LED e a luz interior é apagada!
Michel Foucault, em seus Seminários sobre o Governo de Si e dos Outros e sobre a Hermenêutica do Sujeito, aborda e discorre sobre o cuidado de si, como uma questão ampla de uma busca de saúde que vai de encontro com o conhecimento de si, com o saber de seu corpo, com o saber de suas necessidades, de seus desejos, com vistas a uma ampla busca de felicidade, não mais como uma busca utópica, subjetiva, inalcançável (talvez como ideal demais!), mas, através desse conhecimento de si, uma felicidade possível, palpável, vivenciável: “A filosofia está assimilada ao cuidado com a alma (o termo é precisamente médico: hugiainein), e esse cuidado é uma tarefa que deve ser seguida ao longo de toda a vida” (FOUCAULT, 1997, p.120).
Hermenêutica de si como epimeléia heautou, cura sui, princípio de ocupar-se de si. Cuidar de si mesmo, conhecer a si mesmo, obscurecido pelo brilho do Gnôthi seauton. (FOUCAULT, 1997, p.119). Neste momento pandêmico, que fazer de nossas vidas, quem somos, para onde vamos, tudo depende de nós. Sartre nos ilumina com: “o destino do homem está em suas próprias mãos” (SARTRE, 1970, p.09).
REFERÊNCIAS
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ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 3ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1985.
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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DUMOULIÉ, Camille. O desejo. Petrópolis: Vozes, 2005.
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SCHOPENHAUER, Arthur. Dores do mundo. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s.d..
_______. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.
25 de junho de 2020
Histórias da clínica - Possíveis aprendizados a partir das Toxicomanias
Vera Marta Reolon
Pesquisa apresentada no Departamento de Psicanálise e Psicopatologia, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul ,ao Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação e ao Departamento de Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade, ,do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sub-área Desenvolvimento Psicossocial, Vulnerabilidade e Intervenção Comunitária ao Departamento de Psicologia Social e Institucional ,do Instituto de Psicologia. e também no Departamento de Ciências Administrativas, da Escola de Administração da mesma Universidade.
PORTO ALEGRE – RS
2016/2017
RESUMO
Buscar um referencial teórico que responda a questionamentos culturais, sociais e antropológicos sobre o homem utilizar complementos para viver como ser-no-mundo, a partir da clínica psicanalítica. Investigar se o uso de entorpecentes é individual ou resultado de questões sociais que impulsionam o sujeito à utilização de substâncias psicoativas. Analisar as estruturas clínicas vinculadas ao uso dessas substâncias. Investigar as relações entre as fraturas com a Lei e a dependência química, e a religião/espiritualidade, estabelecendo vinculações entre as estruturas clínicas nas toxicomanias e a sociedade. Como objetivos: investigar as questões com a Lei Paterna e o uso de substâncias químicas. Relacionar os sistemas culturais e sociais vinculados às adicções; buscar pressupostos individuais e familiares, talvez sociais, que elucidem a necessária busca de um complemento/droga. Problema-chave: a dependência química é produzida por uma estrutura clínica singular?
Os possíveis aprendizados com a clínica das toxicomanias.
A partir de referencial bibliográfico da clínica psicanalítica (Calligaris, Melman, Magno, Santiago e outros) e a da prática clínica, depreendemos que vivemos um ambiente social de características toxicômanas. A manipulação de dados, a corrupção na política, as instituições que já não conseguem se manter e responder às necessidades da sociedade, a família em desestruturação (não somente sob o prisma da tradição, de sua constituição, mas uma família sem valores morais que a sustentem, que mantenha seus membros unidos), mentiras, objetivação do outro, uso dos animais, dos seres vivos, como se objetos fossem, objetivação da vida como droga. Estas são características utilizadas pelos dependentes químicos em sua relação com as drogas, que eles repetem, mesmo que “recuperados”, a partir de grupos de entre-ajuda, de amor-exigente, de AA, com suas famílias, com suas namoradas, com suas esposas, com seus maridos, com seus filhos, com os objetos que detém, com as pessoas que se relacionam, no trabalho, ..., na vida. Assim, compreender o que podemos abstrair da clínica com as toxicomanias, com o intuito de teorizar sobre e propiciar trabalhos com a violência, com políticas públicas, com redução de danos (não só pessoais, mas no nível coletivo, na saúde, na assistência social, no trabalho, nas relações, nas instituições, etc.) torna-se imprescindível para que a sociedade ainda possa pensar em viver em coletividade.
Muitas são as questões que permeiam o ambiente dos que trabalham com a dependência química, mas não só estes, como toda a sociedade busca reduzir os danos causados pelo uso indiscriminado de drogas e álcool. A violência decorrente do uso extrapola o ambiente familiar das toxicomanias, abarca toda a sociedade quando a segurança pública já não consegue dar conta da violência social, do aumento da mendicância nas ruas (os abrigos sociais não os atendem, pois para ficar naquele ambiente têm de abandonar o vício, o que não fazem, preferem permanecer nas ruas), mesmo os que estão empregados, as empresas não conseguem responder a processos que demandam atendimentos especializados e políticas mais abrangentes. Nas famílias, sabe-se que um dependente químico influencia outro (ou outros) membro da mesma para o vício.
O que fazer? As respostas só conseguem ser respondidas se tivermos um caminho seguro por onde transitar que venha de dentro do ambiente. Respostas que tenhamos obtido na observação (mas não só), na escuta das toxicomanias, do dependente, de suas famílias, de seu entorno.
Penso que a clínica psicológica, com uma escuta do ego, visando mudar comportamentos não responde suficientemente, pois o dependente químico para de usar droga, mas segue com suas atitudes “dependentes” em todas suas relações. Creio que apenas pensando em uma estrutura clínica das toxicomanias e tratamentos que propiciem uma abordagem mais profunda das problemáticas (algumas distintas e singulares, é claro, como toda subjetividade, mas outras coletivamente semelhantes) chegaremos a alguma possibilidade de realmente reduzir danos coletivos e individuais, quiçá pensarmos em possibilidade de “cura” (palavra proibida no meio, já que os tratamentos existentes “pensam” em um dia por vez e curas impossíveis).
Problema de pesquisa
Pode-se pensar em uma estrutura clínica específica nas toxicomanias? E se existe(m) tal estrutura(s), qual(is) seria(m) ela(s)?
Objetivos
1. Objetivo geral
Buscar, através da escuta na clínica das toxicomanias, observar e teorizar se há uma estrutura clínica específica que responda pela singularização da problemática da dependência química e, se existe tal estrutura, ou mais de uma, como seria sua manifestação e possibilidades de entendimento e atendimento com vistas a reduzir danos individuais e coletivos do uso abusivo de drogas.
2. Objetivos específicos
Escutar a clínica das toxicomanias, documentá-la como especificidade estrutural, com o fim de buscar respostas a indagações de toda uma coletividade que já não consegue lidar com a imensa gama de drogas existentes e de sintomáticas que forjam seres “zumbicos” nos ambientes sociais e familiares.
Delimitar a clínica das toxicomanias sob o prisma da psicanálise.
Descrever e analisar sintomáticas e procedimentos dos dependentes com vistas a obter uma direção de cura nas toxicomanias.
Referencial teórico
Vivemos um momento particular no social, quando percebe-se afrouxamentos com a lei, nas estradas está determinado um limite de velocidade que sempre é ultrapassado e só é seguido se temo pela multa que me será infligida caso seja “pega”; quando não devo usar o celular ao dirigir e uso, mesmo arriscando minha vida e a de outrem; quando marcamos determinada hora com alguém que nunca é cumprida; quando busca-se, e até ensina-se (o que é pior!) aos filhos, o “jeitinho” para sair ganhando. Se alguém “ganha” é porque outro “perde”, isso é um “jogo”. Quando vivemos a lei, vivemos o respeito ao outro, assim todos ganham, pois todos têm o limite que é imposto pela existência do outro.
Este social impregnado de tentativas de tirar vantagens pessoais a qualquer custo (e muitas vezes não são tentativas!) faz-nos pensar em uma estrutura social particular, diferenciada, algo como nomeia Contardo Calligaris de “estrutura social toxicômana”, a partir de Melman (1992).
Não basta que um grande número de indivíduos em uma comunidade seja atingido por algo para que isso se transforme em sintoma social [...] mas pode-se falar em sintoma social a partir do momento em que a toxicomania é, de certo modo, inscrita, mesmo que seja nas entrelinhas [...] no discurso que é o discurso dominante de uma sociedade em uma época dada. (MELMAN apud CALLIGARIS, 1992, p.9).
Não é por acaso que vivemos, neste nosso mundo globalizado, o flagelo das drogas de forma exacerbada. As drogas evidenciam uma forma particular de transgressão, a transgressão à lei paterna, pois a marca paterna presente no sujeito é uma marca de respeito à lei familiar, à lei social, à lei do Desejo. Não o desejo, como ele se apresenta na linguagem popular, mas o Desejo que nos constitui como sujeitos, de crescer, não só externamente, de tamanho, mas de crescer em seu ser, progredir, conhecer-se e conhecer o mundo, fazer sua diferença.
Nestes tempos, junto à transgressão às leis interna e social, observamos momentos de uma violência ímpar, que difere muito da violência das guerras primitivas. É uma violência que se faz por vezes silenciosa, coercitiva, escravagista, fingindo-se de libertadora. Vemos, então, crimes bárbaros, que nos chocam pela frieza, pela falta de afeto, pelo distanciamento do humano.
Penso que muito temos a estudar sobre estes fatos, mas urgente se faz conscientizar da necessidade de mudanças, de uma busca de passagem de inscrições significantes na geração dos filhos, de cuidados primordiais para a estruturação destas crianças, para que sejam adultos melhores.
Diz-se das drogas que elas são um flagelo social. Flagelo pela degradação que ocasionam nos usuários e suas famílias e flagelo pela violência que desencadeiam, pois para ter acesso às drogas muitos precisam praticar roubos, assaltos, destruição e morte. Estuda-se muito e quanto mais se avança nas teorias existentes, ao aliá-las a uma prática, percebe-se que muito há ainda a estudar para que possamos de fato causar algum efeito realmente eficaz e duradouro. Algo tem se evidenciado ao tratar usuários de drogas: problemas com a “lei”. Não somente a lei jurídica, a lei constitucional, mas percebe-se algo mais profundo, anterior, o que se constata é que nesta facção social os pontos de convergência têm a ver com o enfraquecimento da lei estrutural, da marca primeira que é a do “Nome do Pai” – significante básico e necessário para qualquer atendimento às normas, condutas e leis sociais. Trabalhar com a recuperação na drogadição implica necessariamente fazer valer esta inscrição, quer fortificando-a (quando existente ou enfraquecida), quer buscando “costurá-la” a uma estrutura psíquica parcializada. Nisso percebe-se grandes avanços trabalhando a espiritualidade destes “doentes”, trazendo a figura de Deus como um Pai amoroso e disciplinador (que tem leis para ser cumpridas).
Para que sejamos marcados como desejantes, tenhamos “voz plena de valor”, precisamos da marca primordial de instituição narcísica, que denominamos Amor do Outro. Outro este que faz para nós um papel materno, de mãe instituidora da marca amorosa que levaremos em nossas vidas. Sem esta marca inicial não somos considerados estruturalmente sujeitos, donos de uma identidade, estaremos sempre presos a alguém que nos deve conduzir pela vida, pois esta marca é primordial, necessária em nossa frenética luta pela libertação. Com a marca podemos nos libertar e seguir. Sem a marca estamos presos ao desejo do Outro, às suas imposições: “Freud via nos primórdios da experiência psíquica uma identificação primária que consistiria na ‘transferência direta e imediata’ do ego em formação para o “pai da pré-história individual”, o qual possuiria as características sexuais de pai e mãe e seria um conglomerado de suas funções.” (KRISTEVA, 1987, p.36). Lacan, estudioso e tradutor dos textos freudianos na França, amplia e sustenta o pensamento freudiano a partir da filosofia, da arte, da cultura, e da clínica, substituindo, inclusive, o termo pênis, utilizado por Freud e abrangendo mais, a partir da idéia de falo:
[...] se a palavra pênis fica reservada ao membro real, a palavra falo, derivada do latim, designa esse órgão mais no sentido simbólico [...] o adjetivo “fálico” ocupa um grande lugar na teoria freudiana da libido única (de essência masculina), na doutrina da sexualidade feminina e da diferença sexual e, por fim, na concepção dos diferentes estádios [...] o falo é um atributo divino [...] Lacan faz do falo o próprio significante do desejo. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.221).
Antígona (que vai contra a lei moral e segue a sua ética, o seu desejo), representada nas obras de Sófocles, é portadora de Desejo. Desejo enquanto marca instituidora de diferença, enquanto singularidade do sujeito. Desejo que provém do amor transmitido pelo Outro, que é energia vital, pulsão de vida. Platão, em O Banquete, nos fala de Eros, enquanto amor, desejo, vida. É Platão que melhor retrata e descreve, na literatura e na filosofia, o amor, enquanto instituidor de desejo, instituidor de busca, instituidor de diferença:
Por que começar com uma leitura deste texto platônico? Em primeiro lugar, porque toda a filosofia está contida, em potência, em Platão. Tanto aquela que pertence à grande história da metafísica ocidental como aquela que procurou inverter ou desconstruir o platonismo. Mas nem todo o Platão está na filosofia. Ele a excede pelo recurso aos mitos, à encenação de um carnaval literário e aos efeitos dialógicos de escrita. Em segundo lugar, por se tratar de um texto fundador para a concepção ocidental do amor, sempre de novo resgatado e comentado, de Plotino ou Marsílio Ficino a Freud ou Lacan. (DUMOULIÉ, 2005, p.15).
Como podemos entender e interpretar a ética, a partir da filosofia, desde a antiguidade até a pós-modernidade? Para a psicanálise, o que é Desejo? Pensar a teoria psicanalítica e a psicanálise, enquanto psicoterapia, a partir da ética é essencial quando nos remetemos à pós-modernidade, período caracterizado pela perversão e pela psicose. Lacan (1998), em seu Seminário 7, já esboçava a ética da psicanálise, e seu axioma. “Não ceder de seu desejo”:
O que faz com que possa haver desejo humano, que esse campo exista é a suposição de que tudo o que ocorre de real é contabilizado em algum lugar. Kant pôde reduzir a essência do campo moral à sua pureza, mas em seu ponto central resta que é preciso haver, a certa altura, lugar para a contabilização. [...] É na medida em que o sujeito se situa e se constitui em relação ao significante, que nele se produz essa ruptura, essa divisão, essa ambivalência em cujo nível se situa a tensão do desejo. (LACAN, 1991, p.380)
Este estudo busca analisar também, como apêndice, a obra O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia (1966), de Gilles Deleuze e Felix Guattari, com o objetivo de refletir sobre a questão do desejo, tendo em mente que a psicanálise centra seus estudos e sua teoria no Complexo de Édipo. Se a cultura humana é calcada, formada, na interdição do incesto originada no mito edípico, de Sófocles, como pensar a cultura, o desejo e o homem a partir do Anti-Édipo deleuziano?
Com a psicanálise, há uma desconstrução lingüística do sujeito, para que ele se “ache”, se compreenda efetivamente, enquanto estrutura psíquica. Desta forma, é necessário, importante e relevante, investigar como Derrida desconstrói a psicanálise, especialmente na e com a obra Estados-da-alma da psicanálise (2001), para que cheguemos a uma nova concepção de sociedade-sujeito desejante:
Quem sofre e se lamenta? Quem sofre do quê? Qual a queixa da psicanálise? Que livro de condolências abre ela? Quem assina? O que é que não marcha a bom passo de acordo com as marcações prevalentes de seu discurso, de sua prática, de sua hipotética ou virtual comunidade, de suas inscrições institucionais, de suas relações com o que se chamava, outrora, sociedade civil e Estado, na perturbação de sua sociologia, e se maneira diferente em cada país, na mutação que afeta a figura dos pacientes e dos praticantes, na transformação da demanda, da cena e do que ainda ontem de chamava “situação analítica” – sobre a qual eu me lembro de ter falado, há decênios, de sua precariedade e artificialidade histórica? (DERRIDA, 2001, p.15)
A psicanálise, como teoria interpretativa da realidade, como “hermenêutica”, serve para analisar os fenômenos, no campo individual, através das manifestações do inconsciente, presentes na linguagem dos diversos sujeitos, nos chistes, na interpretação dos sonhos, etc. Pode, entretanto, interpretar os fenômenos sociais, através da análise das manifestações da sociedade, das organizações e instituições, dos grupos sociais. O desejo que nos constitui é o nosso diferencial ético perante o mundo. Buscando-o nos diferenciamos dos demais, nos tornamos únicos: “[...] o desejo seria o único ‘universal ético’ de que dispomos; e a novidade da prática revolucionária de Freud consistiu em colocar essa questão trágica no centro de nosso pensamento ético, prometendo-nos algo novo nas possibilidades de nossos almores”.(RAJCHMAN, 1993, p.98).
O desejo, que nos estrutura como seres humanos e nos induz à busca da vida no decorrer de nossa existência, nos é “transmitido” no desejo do Outro, desejo daquele que um dia nos desejou (antes de nossa geração, por nossos pais) e que, mais tarde, nos “olhou” com um Olhar de possibilidades para viver e ser feliz. Esse desejo inicial, estrutural, lançado pelo Outro, é o que denominamos, em psicanálise, amor, amor de estrutura. Juranville (1987) faz uma diferenciação das estruturas neurose, psicose e perversão, no que concerne ao desejo e ao amor de estrutura:
O psicótico não dá, não quer a relação com o Outro, que suporia que ele entrasse na castração. “A psicose”, diz Lacan, “é uma espécie de falência no que concerne à realização do que é chamado ‘amor’”. Nela, o sujeito quer o gozo absoluto, o que ele efetivamente conhece ao nível de seu corpo. Daí seu narcisismo. [...] [Na perversão] dá-se apenas ao Outro simbólico, essencialmente ausente do mundo. Todos os “outros” humanos, inclusive o próprio sujeito, são para esse Outro instrumentos de gozo. [...] O neurótico precisa, pois, de um simbólico suplementar, ou seja, do sintoma, onde o desejo se mantém como recalcado. (JURANVILLE, 1987, p.363-365).
Em termos topológicos, a partir do nó borromeano proposto por Lacan, Juranville elabora as três estruturas dessa forma:
Amar é ver no outro o desejo por mim que me constitui. Mas é um engodo, porque o que efetivamente vejo é, na verdade, reflexo do meu desejo pelo outro. Sócrates, na voz de Platão, em O Banquete, usando Diotima como interlocutora, diz que amar é desejar o que ainda não se tem, o de que se é carente, o que se quer conservar consigo. Amor é amor de algo. Amar é o desejo do que é bom e de ser feliz, é o desejo da imortalidade.
Diferentemente de Platão, que concebe o amor como movimento, pulsão, vida, desejo de algo, busca por algo, Schopenhauer encontrou o a priori manifestando-se na Vontade. Como coloca Dumoulié (2005), o nosso conhecimento se acha encerrado no mundo dos fenômenos, portanto de representação, mas nós temos a intuição imediata através do nosso corpo, da essência íntima do seres e do mundo. Para Schopenhauer, que sofreu influências de Platão e Kant, o mundo é fenômeno, é representação. A Vontade estaria em um mundo de idéias – platônico -, num mundo idealizado, superior, inalcançável, que pode apenas ser simbolizado. A Vontade, entretanto, não é externa, para Schopenhauer, ela está em nós:
A coisa em si, que não podemos conhecer do lado de fora, nós a alcançamos diretamente por dentro, pois ela está em nós. Esta Vontade, da qual a vontade humana é apenas uma manifestação, é um princípio metafísico, sustentáculo de tudo aquilo que é. [...] A expressão “coisa em si” deve ser entendida da maneira mais concreta, como uma Coisa toda-poderosa que habita em cada um de nós, que nos faz viver e nos vai devorando ao mesmo tempo. Por essência é um desejo bruto, cego e insaciável. (DUMOULIÉ, 2005,p.101).
Schopenhauer coloca que, se o desejo nasce da carência, sua origem é um sofrimento. Tanto na origem como no fim, segundo Schopenhauer, o desejo é sempre sofrimento; e como ele é a própria essência da existência, “o sofrimento é o fundo de toda a vida”.
Schopenhauer se apresenta como o primeiro filósofo que abordou o tema do amor até então abandonado pelos poetas. Somente Platão, antes dele, teria abordado essa questão. A base da “metafísica do amor”, de Schopenhauer é “física”. Como precursor da psicanálise, ele coloca que toda paixão tem sua raiz no instinto sexual ou é um instinto sexual individualizado: “Aquilo que acreditamos ser o nosso desejo é somente a manifestação da Coisa em si, infinita, cega, e que não visa outra coisa a não ser a perpetuação da Vontade pela procriação das espécies” (DUMOULIÉ, 2005, p.103).
Para Lacan, o desejo é o desejo do Outro. Não sei nada de meu desejo, a não ser o que o Outro me revela. Assim, o objeto do desejo é o objeto do desejo do Outro. Através do Olhar do Outro é que o meu desejo se constitui. É através deste Olhar que me constituo, enquanto sujeito. J.-D. Nasio coloca que “uma definição correlata do desejo nos é dada: o desejo é, acima de tudo, uma seqüela dessa constituição do eu no Outro”(1995, p.267), realizada no Estádio do Espelho.
Lacan nos opôs uma filosofia do desejo a uma biologia das paixões, mas utilizou um discurso filosófico para conceituar a visão freudiana, que julgou insuficiente. Assim, estabeleceu um elo entre o desejo baseado no reconhecimento (ou desejo do desejo do outro) e o desejo inconsciente [...] Através da idéia hegeliana de reconhecimento, Lacan introduziu, entre 1953 e 1957, um terceiro termo, ao qual deu o nome de demanda. Esta é endereçada a outrem e, aparentemente, incide sobre um objeto. Mas esse objeto é inessencial, porquanto a demanda é demanda de amor. [...] A necessidade, de natureza biológica, satisfaz-se com um objeto real (o alimento), ao passo que o desejo [...] nasce da distância entre a demanda e a necessidade. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.147).
Assim, parece-me que ética e desejo entram em conflito quando pensamos em pós-modernidade e em tempos das estruturas: perversão e psicose. Jacques Derrida (2001), da mesma forma, em Estados-da-alma da psicanálise, aponta para a existência de uma dupla resistência em curso: uma, do mundo à psicanálise e outra, da psicanálise a ela mesma bem como ao mundo, ou seja, da psicanálise para a psicanálise como ser-no-mundo. Derrida detecta, na psicanálise, uma crise. Uma crise em relação ao papel, ao lugar do analista.
Derrida afirma que o caráter da sessão analítica seria revolucionário. O que critica, entretanto, é que a psicanálise se coloca numa posição superior ao analisando, adotando uma postura intelectualizada, que pretende “normatizar” o sujeito, ao invés de transformar suas pulsões, no sentido do desejo.
O pensador nos coloca acerca da psicanálise:
A psicanálise, acho eu, ainda não empreendeu e, portanto, ainda menos conseguiu pensar, penetrar e mudar os axiomas da ética, do jurídico e da política, notadamente nos lugares sísmicos onde tremula o fantasma teológico da soberania e onde se produzem os mais traumáticos acontecimentos geopolíticos, digamos ainda, confusamente, os mais cruéis destes tempos. [...] É sobretudo aí que o conceito de crueldade [...] na psicanálise e fora dela, pede análises indispensáveis para as quais deveríamos nos voltar. [...] A psicanálise é indelével, sua revolução é irreversível – e, no entanto, como civilização, ela é mortal. (DERRIDA, 2001)
Derrida, então, questiona se há relação entre psicanálise e ética, direito e política. E responde que a psicanálise, em si, não produz, nem causa, nenhuma ética, direito ou política, mas trata-se de responsabilidade, nesses três domínios, de levar em conta o saber psicanalítico. Se a psicanálise não produz, nem causa nenhuma ética, que relação há entre analista-analisando? Como se estrutura o encontro entre o psicanalista e o paciente? A transferência não se configura a partir de uma ética pré-estabelecida entre ambos?
Se a psicanálise não leva em conta essa mutação, se não se engaja nisso, se não se transforma nesse ritmo, ela será – e já o é, em larga medida – deportada, ultrapassada, deixada à beira da estrada, exposta a todas as derivas, a todas as apropriações, a todas as amputações; ou, então, inversamente, ela continuará enraizada nas condições de uma época que foi aquela do seu nascimento, ainda afásica em seu berço centro-europeu. (DERRIDA, 2001, p.20).
Tais questionamentos, juntamente com outros, que virão durante o percurso da pesquisa, serão respondidos, ou ao menos elucidados, desmembrados em outros. Ao final deste trabalho, que provavelmente permanecerá inacabado, sempre em construção, pretendo contribuir para uma possível reformulação de idéias e teorias, que permaneceram estanques durante o percurso da psicanálise, desde sua origem no final do século XIX até a pós-modernidade.
Metodologia
a) Revisão bibliográfica da literatura comparada entre as principais correntes contemporâneas de ética aplicada, das toxicomanias, da clínica psicanalítica, especialmente da clínica freudo-lacaniana.
b) Sistematização das análises clínicas realizadas no campo das dependências químicas a partir da escuta clínica dos toxicômanos e de suas famílias, em trabalho realizado com estes, em Comunidades Terapêuticas e Instituições de atendimento a dependentes químicos.
c) Confronto qualitativo dos itens a e b.
d) Elaboração teórico-conceitual dos resultados e possível aplicação destes conceitos na prática psicanalítica e nas políticas públicas, vinculadas à ética aplicada e à clínica das toxicomanias.
Referências
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Sobre a ética do jornalista: entre o profissional indispensável à sociedade e o "fofoqueiro virtual" - Uma análise do livro-reportagem "Eichmann em Jerusalém", de Hannah Arendt
Pesquisa apresentada ao Departamento de Comunicação, da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Vera Marta Reolon
PORTO ALEGRE – RS
2016
RESUMO
A reportagem é uma narração da atualidade. Distingue-se da literatura por seu compromisso com a objetividade informativa. Contemporaneamente, o ciberjornalismo, apresentando novas possibilidades do “contar histórias”, acaba também por transformar a prática do jornalismo impresso e seus gêneros. Diante deste cenário, esta pesquisa investiga a ética da imprensa, o fazer jornalístico e a função do jornalista, a partir de uma análise do livro-reportagem Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, da filósofa Hanna Arendt, correspondente da revista The New Yorker. Investiga-se, implicitamente, em que sentido o ciberjornalista é ainda um jornalista, indispensável à sociedade, ou se transformou em “fofoqueiro virtual”.
A reportagem e a ética jornalística
O jornalismo sempre viveu em constante transformação. Ora de forma, ora de conteúdo, a narrativa jornalística fundou estilos, influenciou a literatura, divulgou fatos, informou, formou a opinião pública, provocou polêmicas, acirrou disputas, transformou o mundo se transformando. É a reportagem – onde se conta, se narra a atualidade – um gênero jornalístico privilegiado. É uma narrativa – com personagens, ação dramática e descrição de ambiente – separada da literatura por um compromisso com a objetividade informativa. Este laço obrigatório com a informação objetiva lembra que, qualquer que seja o tipo de reportagem, impõem-se ao redator o “estilo direto puro”, isto é, a narração sem comentários, sem subjetivações. A isenção da subjetividade, ou a suposta neutralidade, mostra-se cada vez mais utópica, inalcançável, quase impossível.
O ciberjornalismo, com plataformas exponencialmente expandidas, espaços ilimitados e as possibilidades do hipertexto, transformou o jornalismo e, conseqüentemente, a narrativa jornalística. Afinal, o ciberjornalismo não se configura apenas como uma transposição de textos e imagens impressos descolados para o ambiente da Internet. O fazer jornalístico acaba diferente, com singularidades e particularidades a esse novo “contar histórias”. O ciberjornalismo, numa “competição” pelo leitor, assim, modifica também o jornalismo impresso e os seus gêneros, especialmente a notícia e a reportagem. Nesse sentido, refletir sobre a ética jornalística, a ética da imprensa, mostra-se tarefa indispensável a todo aquele que se inscreve neste campo de trabalho, tarefa essa que se reflete no próprio fazer da profissão. A análise do papel do jornalista, da formação deste profissional, diante deste cenário, mostra-se relevante.
Problema de pesquisa
A partir das transformações do fazer jornalístico, fato que se apresenta mais nítido diante das modificações das mídias, uma vez que uma acaba impondo modos de operar às outras – especialmente após o surgimento do ciberjornalismo – qual o papel do jornalista na atualidade, e portanto sua ética: ele continua indispensável à sociedade, ou transformou-se apenas em “fofoqueiro virtual”, em que a realidade acaba submergindo em uma “sobrerealidade” de “fatos”, na qual o real é apenas o veiculado pela mídia, distorcido ou mesmo inventado?
Objetivos
1. Objetivo geral
Investigar, qualitativamente, a partir de livro-reportagem “Eichmann em Jerusalém”, de Hanna Arendt, o fazer jornalístico e a ética jornalística implicada neste, especialmente no que tange à narrativa jornalística, especificamente a reportagem.
2. Objetivos específicos
Analisar, num âmbito teórico-prático, a narrativa jornalística, especificamente a reportagem.
Analisar, teoricamente, a ética jornalística ou a ética da imprensa, a sua manutenção ou transformação, a partir do surgimento de novas mídias.
Analisar, de forma aplicada, o fazer jornalístico implicado no livro-reportagem citado acima, comparativamente às teorias fundamentais de ética teórica e aplicada e ao Código de Ética do Jornalista.
Referencial teórico
Se os séculos XVII e XVIII foram os do jornalismo publicista e o século XIX o do jornalismo educador e sensacionalista, o século XX foi o do jornalismo-testemunho (LAGE, 2003). Não quer dizer que todos (cidadãos, jornalistas, empresários da imprensa) os entendessem assim. Representações sociais perduram além das condições que as fizeram nascer: tanto quanto a visão publicística do jornalismo, sobreviveram às visões sensacionalista e educativa, bem como práticas jornalísticas que se enquadram em cada uma dessas categorias.
O fato, segundo Lage (2003), porém, é que a informação deixou de ser apenas ou principalmente fator de acréscimo cultural ou recreação para tornar-se essencial à vida das pessoas.
Para o planejamento de qualquer atividade prática – da escolha de carreira profissional a uma compra a prazo, investimento financeiro ou ida a uma casa de espetáculos – as pessoas necessitam de informações que estão nos veículos de comunicação ou podem ser inferidas a partir do que eles noticiam. (LAGE, 2003, p.21)
A informação, assim, torna-se, matéria-prima fundamental e o jornalista um tradutor de discursos. O repórter, em suma, além de traduzir, deve confrontar as diferentes perspectivas e selecionar fatos e versões que permitam ao leitor orientar-se diante da realidade.
O direito do público à informação é regra fundamental para os jornalistas, não para muitos de seus interlocutores, ainda que liberais. É também (cf. Lage, 2003) a base de qualquer ética aceitável pelos jornalistas: “no entanto, o que se informa ao público é o que é de seu interesse real, nem sempre o de sua curiosidade” (p.94-95).
No que concerne, eticamente, às fontes, seu direito é o de ter mantido o conteúdo (não a forma) do que revela. Isso significa não apenas o respeito ao valor semântico do que é informado, mas também às inferências que resultam da comparação entre o que foi informado e o contexto da informação.
Ao jornalista cabe perseguir a verdade dos fatos para bem informar o público. Nesse sentido, a atividade jornalística cumpre uma função social antes de ser um negócio. Eugênio Bucci (2000) acrescenta, ainda, que a objetividade e o equilíbrio são valores que alicerçam a boa reportagem. A discussão do fazer jornalístico, a partir de uma ética aplicada, ética da imprensa ou ética do jornalista, assim, é essencial à prática da notícia e da reportagem:
O problema ético é um problema estrutural e sistêmico. [...] O único interessado na discussão ética – não os proprietários dos órgãos de imprensa, não os jornalistas, não os governantes (que também são cidadãos mas se encontram investidos de condições que os diferenciam dos demais) – é o cidadão como outro qualquer, aquela pessoa comum que consome as notícias e que, no fim, é o beneficiário final do jornalismo de qualidade – ou a vítima do jornalismo vil. É por isso que essa discussão vale a pena, faz sentido e, mais que isso, é urgente. (BUCCI, 2000, p.35-36).
Na discussão sobre ética e imprensa, Bucci (2000) cita Paul Johnson, um pensador influente no pensamento liberal contemporâneo. Historiador, ensaísta e jornalista, Johnson é autor de artigos na revista britânica Spectator, que têm servido de referência ao debate sobre ética na imprensa no mundo inteiro. Não pelo que pontificam, mas pelos problemas que apontam. Ele propõe uma grade de análise para os erros mais freqüentes do jornalismo: listou sete pecados capitais e, como antídotos, dez mandamentos.
O primeiro dos sete pecados capitais, apontados por ele, é “Distorção, deliberada ou inadvertida”, talvez o mais crasso, seguido do culto das falsas imagens: “Quando o jornalismo emociona mais do que informa, tem-se aí um problema ético, que é a negação de sua função de promover o debate das idéias no espaço público”. (BUCCI, 2000, p.144-145). Umas das principais funções éticas da imprensa – cuja obrigação é reportar criticamente os acontecimentos – passou a ser criticar o culto das falsas imagens, função da qual ela raramente dá conta. (p.147). Ainda, na lista dos pecados capitais, Johnson relaciona a invasão de privacidade, o assassinato de reputação, a superexploração do sexo, o envenenamento das mentes das crianças e o abuso de poder.
Contra as mazelas e as falhas, o jornalista lista dez mandamentos: 1. desejo dominante de descobrir a verdade; 2. pensar nas conseqüências do que se publica; 3. contar a verdade não é o bastante – pode ser perigoso sem julgamento informado; 4. possuir impulso de educar; 5. distinguir opinião pública de opinião popular; 6. disposição para liderar; 7. mostrar coragem; 8. disposição de admitir o proprio erro; 9. equidade geral; 10. respeitar e honrar as palavras. Listas como essa, de Paul Johnson, estão presentes em estudos de ética e imprensa, alicerçadas de outras formas, a partir de outros referenciais, ou mesmo reformuladas. Marcelo Leite, ex-ombudsman da Folha de São Paulo, e Ciro Marcondes Filho, em A saga dos cães perdidos, por exemplo, criaram outras listas, visando orientar o jornalista em seu fazer.
Bucci (2000) destaca que é o direito de acesso à informação (e à cultura) que justifica democraticamente a existência de toda forma de comunicação social.
Quando a confiança na informação jornalística é prejudicada pelo barateamento do jornalismo, a pretexto de encobrir sob o timbre de “reportagem” atrações puramente apelativas, todos saem perdendo; uma instituição social esta se enfraquecendo. Por isso, faz sentido que se considere a ética dos meios de comunicação pelo ângulo da ética da imprensa. Vista desse ângulo, a comunicação social como um todo é beneficiária do princípio da liberdade de imprensa e deve portar-se à altura dessa sua condição (BUCCI, 2000, p.187)
A ética está presente em toda decisão que busque qualidade de informação. Debater abertamente as questões éticas, à luz de episódios reais, é um serviço de utilidade pública: educa o espírito crítico dos cidadãos e ajuda a melhorar a imprensa. Bucci (2000) lembra da importância de diferenciar o que é interesse público do que é curiosidade perversa do público (que pede o escândalo, doa a quem doer). Sem dúvida, ninguém consegue traçar a fronteira universal entre um e outra: “não existe uma receita abstrata que seja válida para todas as situações, mas a simples lembrança dessa cautela já traz mais elementos para uma boa decisão sobre os casos concretos que se apresentam” (p.155).
Essas questões podem ser melhor analisadas, interpretadas e explicitadas com exemplos práticos, buscando-se identificar, a partir desses referenciais e de outros (filosóficos, sociológicos, psicanalíticos), como a ética aplicada à imprensa está implicada. Bons exemplos podem ser encontrados no que se convencionou chamar “livros-reportagem”, reportagens mais extensas, contextualizadas, e que permitem ao leitor, por vezes, analisar não só o conteúdo explicitado, como a própria prática jornalística, a exemplo de Truman Capote, em “A sangue frio”.
No Brasil, Os sertões, de Euclides da Cunha, talvez seja nosso primeiro livro-reportagem; as crônicas de João do Rio fornecem ao leitor de hoje, não só a visão do Rio Antigo, como também o estilo jornalístico da época. Isso sem falar em Machado de Assis. [...] O livro-reportagem pode ser a simples compilação de textos já publicados em jornal (que mantenham uma organicidade temática ou narrativa) ou o trabalho feito para o livro, mas concebido e realizado em termos jornalísticos. (SODRÉ; FERRARI, 1986, p.94).
Lage (2003) afirma que “o que acontece com celebridades e personagens-tipo chama a atenção não apenas dos jornalistas, mas de qualquer pessoa” (p.97). Assim, “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”, livro-reportagem de Hanna Arendt, apresenta-se como caso sui generis para o intuito desta pesquisa, no que tange aos pilares: prática jornalística, ética aplicada e função do jornalista. Principalmente pelo fato de ser quase desconhecido, ou pouco estudado, como reportagem, por estudantes e estudiosos de comunicação social.
Adolf Eichmann, um dos arquitetos da “solução final” nazista é raptado num subúrbio de Buenos Aires, por um comando israelense em maio de 1960. Na Casa da Justiça de Jerusalém, o palco estava montado para um espetáculo de magnitude histórica: as vítimas de ontem alçadas à condição de juízes do antigo carrasco. Mais que um julgamento, uma lição e uma advertência: nada frearia a determinação do Estado judeu em capturar gente como Adolf Eichmann.
Tudo seria seguido como planejado, se ao menos o curso do processo não tivesse produzido a mais bizarra desproporção: quanto mais inflada a retórica da acusação, quanto maior o horror dos testemunhos, tanto mais se apagava e apequenava a figura do “monstro” na cabine de vidro. O fato não escapou aos olhos da filósofa Hanna Arendt, que assistiu ao julgamento como correspondente da revista The New Yorker. Esquivando-se à paixão reinante, ela pôde ver Eichmann em toda a sua mediocridade: um arrivista de pouca inteligência, uma nulidade pronta a obedecer a qualquer voz imperativa, um funcionário incapaz de discriminação moral – em suma, um homem sem consistência própria, em quem os clichês e eufemismos burocráticos faziam as vezes de caráter.
Uma vítima, portanto? Arendt mostra que, longe disso: não há sofisma capaz de apagar seu papel na deportação de milhões de judeus para os campos de extermínio nazistas. O problema é que Eichmann descobre na própria mediocridade seu último trunfo: como condenar um funcionário honesto e obediente, cumpridor de metas, que não fizera mais do que agir conforme a ordem legal vigente na Alemanha de então?
Arendt, a partir daí, fundindo o jornalismo político à reflexão histórica e filosófica, explora as implicações do caso Eichmann: o que fazer das noções de culpa e responsabilidade do Estado burocrático moderno? Em que medida a tragédia do Holocausto deve servir para reformar o conceito usual de soberania e as relações entre os Estados? Como se vê, questões que não perderam a cadência e que, magistralmente, seguindo os preceitos jornalísticos comuns, não só às teorias ético-filosóficas, como também aos códigos de ética, cânones da classe e cartas de princípios, Hanna Arendt narrou.
O relato de um julgamento só pode discutir as questões que foram tratadas no curso do julgamento ou que, no interesse da justiça, deveriam ser tratadas. Se a situação geral de um país em que o julgamento ocorre é importante para a condução do julgamento, ela também deve ser levada em conta. Este livro, portanto, não trata da história do maior desastre que se abateu sobre o povo judeu, nem é um relato sobre o totalitarismo, nem uma história do povo alemão à época do Terceiro Reich, nem é, por fim e sobretudo, um tratado teórico sobre a natureza do mal. O foco de todo julgamento recai sobre a pessoa do acusado. [...] Tudo o que vai além disso, [...] só afeta o julgamento na medida em que forma o pano de fundo e as condições em que o acusado cometeu seus atos. Todas as coisas com que o acusado não entrou em contato, ou que não o influenciaram, devem ser omitidas dos trabalhos de um tribunal e conseqüentemente da reportagem sobre ele. (ARENDT, 1999, p.308-309).
No Pós-escrito ao livro-reportagem, Arendt, respondendo aos questionamentos de judeus que interpretaram sua obra quase como uma “defesa” a Eichmann, analisa exatamente a prática jornalística implicada no relato, no qual ela não agiu nem em defesa, nem em acusação, mas na condição de correspondente, e mesmo pensadora: jornalista e não militante.
Posso também imaginar muito bem que uma controvérsia autêntica poderia ter surgido do subtítulo do livro; pois quando falo da banalidade do mal, falo num nível estritamente factual, apontando um fenômeno que nos encarou de frente no julgamento. [...] Para falarmos em termos coloquiais, ele [Eichmann] simplesmente nunca percebeu o que estava fazendo. [...] Ele não era burro. Foi pura irreflexão – algo de nenhuma maneira idêntico a burrice – que o predispôs a se tornar um dos grandes criminosos desta época. (ARENDT, 1999, p.310).
Questões como essa e questões fundamentais à prática, logo à ética jornalística, apresentam-se urgentes na atualidade, essenciais para a manutenção da credibilidade da imprensa.
Metodologia
a) Revisão bibliográfica de literatura comparada entre as principais correntes contemporâneas de ética aplicada, destacando-se as tendências neoaristotélicas, a ética da alteridade (Levinas), a ética da finitude (Heidegger), o utilitarismo, a teoria ético-política da justiça (Rawls), a ética do discurso (Habermas) e a ética da responsabilidade (Hans Jonas), e a ética jornalística, destacando-se, nacionalmente, os princípios éticos recomendados pela Associação Nacional de Editores de Revistas (publicado em dezembro de 1997), os preceitos da Associação Nacional de Jornais, o Código de Ética do Jornalista (aprovado em 29 de setembro de 1985 pela Federação Nacional dos Jornalistas), e, internacionalmente, os cânones do jornalismo adotado pelo Comitê de Ética da American Society of Newspapper Editors (ASNE, em 1922), o Código de Ética dos Editores-chefes da Associated Press (revisto e adotado em 1995);
b) Revisão bibliográfica de elementos-chave da teoria e técnica da reportagem e da pesquisa jornalística, tais como anunciar/enunciar, pronunciar/denunciar, reportagem e verdade, fontes, personagem-indivíduo, personagem-tipo, perfil;
c) Análise dos elementos constitutivos do livro-reportagem “Eichmann em Jerusalém”, de Hanna Arendt, especialmente no que concerne às fontes, conforme explicitado pela autora, e outros, a partir da estrutura narrativa: o ambiente do acontecimento, o personagem-indivíduo ou personagem-tipo, o fato, seguidos de epílogo e pós-escrito;
d) Confronto qualitativo dos itens a, b, c;.
Seguido de e) elaboração teórico-conceitual dos resultados e possível aplicação destes conceitos na prática jornalística, no fazer-reportagem e na ética implicada nestes.
Referências
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25 de junho de 2020
Aula apresentada: Assessoria de Imprensa
25 de junho de 2020
A docência e a psicopedagogia frente às demandas contemporâneas
Pesquisa apresentada ao Deparetamento de Ensino e Currículo,Psicopedagogia e Educação Infantil da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul..
Vera Marta Reolon
PORTO ALEGRE – RS
Junho/2016
APRESENTAÇÃO
Os resultados da tese de doutorado “O PROFESSOR NO LUGAR DO OUTRO”, defendidos por esta autora, no PPG em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, apontaram que as estruturas psíquicas contemporâneas se configuram, psicanaliticamente, em psicose e perversão – não mais em neurose, tal como na época do nascimento da psicanálise, com Sigmund Freud – e que a educação, nesse sentido, tem papel fundamental frente às demandas contemporâneas: o professor atuando como Outro, Lugar Materno por excelência, campo de inscrição de significantes no Sujeito. Este projeto visa aprofundar tal temática, visualizando as possíveis contribuições para a prática psicopedagógica no panorama antes estudado.
OBJETIVO
1.Objetivos Gerais
Investigar como a educação como Política Pública pode (e se pode) atender às demandas estruturais dos sujeitos educandos frente às estruturas psíquicas que vigem no mundo contemporâneo.
2.Objetivos específicos
Identificar o lugar do professor frente às demandas psíquicas contemporâneas a partir da teoria psicanalítica de Jacques Lacan. Analisar como a psicopedagogia e sua atuação contribuem e auxiliam para atingir objetivos educacionais neste caso.Contrapor os dados coletados à teoria lacaniana do desejo e, por conseguinte, da ética da psicanálise.
Identificar as confluências educação e psicanálise, analisando os pressupostos das duas áreas do conhecimento visando reflexões e práticas psicopedagógicas e soluções frente aos impasses da pós-modernidade, visando atender às necessidades contemporâneas, especificamente à realidade brasileira..
Analisar, como apêndice, a obra O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Felix Guattari, com o objetivo de refletir sobre a questão do desejo, tendo em mente que a psicanálise centra seus estudos e sua teoria no Complexo de Édipo. Se a cultura humana é calcada, formada, na interdição do incesto originada no mito edípico, de Sófocles, como pensar a cultura, o desejo e o homem a partir do Anti-Édipo deleuziano?
Partindo do pressuposto de que a ética da psicanálise é a ética do desejo, constituído a partir do amor, e acreditando na tese de que a ética da psicanálise necessita de uma reversão em “desejo de ética”. Acreditando, ainda, que este desejo de ética seria possível através da educação, investigar como se daria este processo no meio educativo: se ele é possível de ser conquistado, se é possível a educação sem esta constituição primeira( família – socialização primária; escola – socialização secundária : para Peter Berger) nos sujeitos e como a educação pode (se deve) fazer esta passagem.
Formulação do Problema
Seria o educador como Outro uma forma de fazer frente às grandes questões que nos afligem, a violência, a crueldade, as toxicomanias e, enfim, o que resulta e resta de e com os sujeitos contemporâneos nas psicoses e perversões?
O que vem antes, um mundo que facilita as toxicomanias, ou elas originam o mundo?
São estas “doenças modernas”, anorexia, bulimia, toxicomanias, resultados destas desestruturas psíquicas? . => estruturação saudável como PP de Saúde.
Como a psicopedagogia pode atuar ,neste sentido, visando uma escola mais saudável?
Pode a educação fazer frente a essas questões? Pode ela isentar-se disso? Como educar sem fazer essa passagem? É possível fazer a educação sem essa constituição primeira?
Em tempos pós-modernos, com suas tão singulares características, é de extrema importância que se proponha uma pesquisa, com limites entre ética, desejo, psicanálise e educação, à medida que presenciamos uma crise de valores e uma estagnação, em alguns aspectos, da psicanálise no final do século XIX e início do século XX.
A sociedade evoluiu (?) e a psicanálise, me parece, está ainda centrada na neurose, estrutura clínica que já não se enquadra em grande parte na sociedade. Atualmente, as estruturas vigentes são a psicose e a perversão, e cabe à psicanálise, juntamente com a educação e as Ciências Sociais, propor uma reformulação de pensamento e de práticas nesse sentido.
Derrida faz uma desconstrução lingüística para chegar a um entendimento, que deseja que cheguemos com ele. Com a psicanálise, há uma desconstrução lingüística do sujeito, para que ele se “ache”, se compreenda efetivamente, enquanto estrutura psíquica. Desta forma, é necessário, importante e relevante, investigar como a educação pode (e se deve) fazer frente às desestruturas da contemporaneidade e a crueldade que advém delas.
Essa pesquisa propõe realizar uma profunda análise da psicanálise em conjunto com a educação e as ciências sociais e PP’s, no sentido de vincular uma reformulação teórica e prática em seus pressupostos e contatos com os educandos, buscando modificações nos paradigmas “estrutura psíquica, educação e ética”, para a criação de políticas sociais e governamentais.
QUADRO TEÓRICO
Segundo J. Derrida, em seu Estados-da-alma da psicanálise: o impossível para além da soberana crueldade (2001), “se há um discurso que poderia, hoje em dia, reivindicar a causa da crueldade psíquica como um assunto próprio, este é o que se chama, de mais ou menos um século para cá, psicanálise” (p.09). E, ainda, “onde a questão do mal radical ou de um mal pior que um mal radical não estaria mais abandonada à religião ou à metafísica, nenhum outro saber estaria disposto a se interessar por algo como a crueldade – salvo o que se chama psicanálise” (p.09).
Por que falar em crueldade? Porque, na pós-modernidade (ou modernidade líquida, segundo Bauman, ou ainda, tempos hipermodernos, segundo Lipovetsky) observamos um social com estruturas psíquicas singulares. Se, à época de Freud, o que vigia, no social, era a estrutura da neurose, em nossos tempos, poder-se-ia dizer (se tivéssemos um afastamento temporal maior) que o que vige é a psicose e a perversão. Logo, estruturas em que o determinante é a crueldade. Partindo-se, assim, da escrita desconstrutiva de Derrida, o discurso psicanalítico é o que pode dar conta das questões contemporâneas.
A psicanálise, como teoria interpretativa da realidade, serve para analisar os fenômenos, no campo individual, através das manifestações do inconsciente, presentes na linguagem dos diversos sujeitos, nos chistes, na interpretação dos sonhos, etc. Pode, entretanto, interpretar os fenômenos sociais, através da análise das manifestações da sociedade, das organizações e instituições, dos grupos sociais. Aliando-se a filosofia, essencial para seu desenvolvimento deste o início, a psicanálise, além de realizar interpretações, reflete sobre os fatos, utilizando-se das teorias dos grandes pensadores.
Mas a psicanálise, segundo Derrida “O mundo, o processo de globalização do mundo, tal qual vai [...]. Ele resiste de maneira desigual e difícil de analisar” (p.16), não consegue mais dar conta dessas questões ligadas à crueldade de nosso tempo, porque a ética da psicanálise centra-se na ética do desejo. Como atender às necessidades desse social emergente e cruel com a ética da psicanálise respondendo com a ética do desejo, a partir, por exemplo, da perversão?
De que forma o sujeito realiza sua identidade (sexual)? Ela ultrapassa a castração, pois implica na dimensão do terceiro. Inicialmente, o sujeito está com o Outro, numa relação de dependência, de cuidado. Este Outro é a mãe, não necessariamente a mãe biológica ou uma mulher. O Outro, aos poucos, vai introduzindo um terceiro, o pai, não necessariamente o pai biológico ou um homem. Este Outro, ao desejar o parceiro, Lugar de Desejo da Mãe, institui no filho o desejo por outro que não este filho. Assim, se determina o lugar paterno na estrutura, lugar do terceiro. Este lugar terceiro constitui uma lei interna ao sujeito, a lei da interdição (‘tu podes todas, menos esta, que é minha!’), a Lei do Nome do Pai. Conforme o sujeito se identifica com a mãe, ou com o pai, menino ou menina, esta identificação determina sua escolha de objeto, decisão do lado masculino ou feminino em sua escolha sexual.
A realização sexual depende da desvinculação com o Outro. O Outro é imortal, ele permanece na estrutura enquanto amor, instituição do desejo. Não há significante cultural que dê conta desta morte. O desejo é indestrutível, o desejo é imortal. O desejo que nos constitui é o nosso diferencial ético perante o mundo. Buscando-o nos diferenciamos dos demais, nos tornamos únicos.
Mas como conciliar o desejo do analisando (na maioria das vezes, perverso e psicótico) e o mundo exterior, a sociedade como um todo? A psicanálise estaria sendo ética perante o social, à medida que tem sua ética calcada na ética do desejo? Minha tese (fruto dela e resposta às questões lançadas à mesma), junto ao Doutorado em Filosofia (PUC-RS), é que devemos fazer uma reversão da ética da psicanálise e buscar o desejo pela ética. Como chegar-se a isso? Lanço uma hipótese de que os processos educativos é que podem propiciar uma resposta a essa grande questão contemporânea, apresentando o professor como Outro, este Outro que está em falta para com o sujeito educando. Seria o educador como Outro uma forma de fazer frente às grandes questões que nos afligem, a violência, a crueldade, as toxicomanias e, enfim, o que resulta e resta de e com os sujeitos contemporâneos nas psicoses e perversões? Pode a educação fazer frente a essas questões? Pode ela isentar-se disso? Como educar sem fazer essa passagem? É possível fazer a educação sem essa constituição primeira?. Como pensar essas questões, tendo em vista a educação e a saúde como PP’s?
Nunca, em nenhuma outra época de nossa história, esteve o homem tão só em meio à multidão. Os ideais que o sustentavam caíram, a felicidade não depende mais da harmonia de vínculos sociais, mas de objetos adquiridos e ofertados incessantemente pela mídia e os instrumentos gerais do marketing. Há uma oferta de gozo total. A foraclusão da Lei da vida é paga com dízimos. O sujeito é transformado, através do seu assassinato, em objeto submisso do gozo do Outro. Não há nada mais psicotizante do que isso. Nas doenças da modernidade, anorexia, bulimia, toxicomanias, o que se tem são sombras que o mundo das luzes não ilumina. A modernidade nos oferece um mundo iluminado pelos outdoors plenos de ofertas, mas nosso eu, quem sou, para onde vou, o que desejo (?), não há resposta. Há muita “luz” NEON e a luz interior é apagada!.
A oferta que temos é de pulsão de morte em todo tempo. O mercado demanda ofertas onde o consumidor precisa e não vive sem a mercadoria. Este é o modelo de paradigma que abarca as toxicomanias, é causa e conseqüência delas. O que vem antes, um mundo que facilita as toxicomanias, ou elas originam o mundo? Não sabemos, devemos pensar sobre isso. As doenças modernas remetem à morte do sujeito, uma segunda morte que vem antes da primeira (interrupção da vida), pois esta segunda é a morte do sujeito no Simbólico. São estas “doenças modernas”, anorexia, bulimia, toxicomanias, resultados destas desestruturas psíquicas?
Através da leitura de obras de Lacan, Derrida, Deleuze, Guattari, Rawls, Platão e Aristóteles, pretende-se responder a essas questões.Hanna Arendt e a questão do totalitarismo => as perversões.
As confusões público-privado, câmeras e os excessos de invasões sobre a vida das pessoas, ao mesmo tempo que tais invasões em nada auxiliam no cessar da violência (já que o são por si) e nada provam, quando exigidas pela justiça penal. Esta violência (invasão) produz uma violência virtual que, sob pressão, desencadeia violência física.
As FEBEM’s e a falsa educação do ECA na prática. As falas dos meninos da FEBEM: “eu quero ficar com os grandões no presídio, depois dos 18, quando zera minha ficha policial” (sic).
Leis iguais para todos, mas como fica, por exemplo, o Complexo do Alemão, lei igual?
Hanna e o caso Eichmann e a forma “judaica” de conduzi-lo.
Conceito de aurtonomia => Bidung, a partir da Paidéia grega e de Rousseau e Hobbes.
Nietzsche : “nunca se precisou tanto de educadores morais” (sic)
METODOLOGIA
Através da leitura das obras dos autores indicados, analisar como a ética, a psicanálise, a educação, a psicopedagogia confluem e podem interligar-se no sentido de buscar respostas às demandas sintomático-estruturais contemporâneas, para a criação de práticas psicopedagógicas eficientes.
Procedimentos metodológicos:
Estudo do conteúdo das obras indicadas, delimitando seus enfoques na Ética, no Desejo e na Educação.
Após a delimitação dos enfoques, interpreta-se quais as confluências entre a psicanálise, a educação, e a psicopedagogia sob o prisma ético.
Estuda-se a contextualização da psicanálise desde o seu surgimento até a pós-modernidade, identificando suas mudanças em relação a sua ética e em relação ao seu enfoque perante o desejo do sujeito.
Introduz-se ao estudo, conhecimentos provenientes de outros pensadores, a cerca de suas teorias sobre ética e constituição amorosa-desejo.
Interpreta-se, sob as perspectivas da educação como prática psicopedagógica e da psicanálise os resultados das análises.
Texto Final Proposto:
1. Introdução
2. Capítulo I – Estruturas Psíquicas Contemporâneas
3. Capítulo II – Ética da Psicanálise versus Desejo de Ética: filosofia, ética e psicanálise na pós-modernidade
4. Capítulo III – Psicanálise , Educação e Práticas Psicopedagógicas: reflexões para práticas educativas contemporâneas
5. Conclusão
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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Que homem temos e para onde vamos (se vamos!)?
Pesquisa apresentada à Área: Ensino de Filosofia – Ética e Filosofia Política - Departamento de Filosofia e também à Área: Filosofia – Departamento de Filosofia vinculadas ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da UFRGS.
Vera Marta Reolon
PORTO ALEGRE – RS
2016/2017
Resumo
O homem constituído pela marca desejante está condenado à liberdade de escolha e, com ela, deve representar todos os homens e o que de humano há neles, se é que possuímos humanidade. O Desejo como diferença. A racionalidade como disfarce de humano. O amor e o Outro como funções estruturantes do sujeito. O Desejo como marca de liberdade. O Desejo e a escolha. O homem e a liberdade. O homem e o Desejo. O homem e a escolha. A ação humana. A Condição Humana. O trabalho, o labor, a vita activa. A escolha de um estilo de vida, conforme proposto por Kierkegaard, o estilo de vida ético, o estilo de vida estético e o estilo de vida ético-estético (?). As tecnologias. A falta de recursos advindos da falta de postos de trabalho. O cuidado de si. A volta ao questionamento sobre o homem e quê homem temos, como e para onde vamos (se vamos!). A educação, e a filosofia em particular, como passíveis e possíveis na busca por respostas (se é que as há!).
OBJETIVO
Objetivo Geral
Investigar como a filosofia como quadro norteador do pensamento humano, em seus processos educativos, mas não só, pode (se pode) responder ao grande questionamento da atualidade: Como gerar postos de trabalho em uma sociedade gradativamente mais inserida em um mercado de uso de tecnologias, seguindo-se com Hanna Arendt a grande idéia de que a condição humana por excelência é o TRABALHO, enquanto AÇÃO, vita activa. Objetivos específicos
Identificar o que é o homem, quem é o homem, como ele se constitui – teoria psicanalítica – Freud, Lacan ,o que é humano, que tipo de homem temos hoje no social, tendo como base as teorias existenciais de Kierkegaard, Sartre, passando por Camus e Heidegger, como uma ontologia, uma antropologia filosófica .
Investigar, a partir da obra A Condição Humana de Hanna Arendt, o que ela propõe como sendo esta condição humana por excelência e como isto se daria. Quais as propostas que ela apresenta para tanto.
Observar, e investigar, a partir da obra de Kierkegaard, o que ele propõe como escolha de vida para o melhor viver, atingir o eterno (ou não).
Desvendar, junto a Kierkegaard o que seriam os estilos de vida ético, estético. Como seria escolher um (se é que se deve fazê-lo), qual o melhor (se é que há um). Como seria optar por um estilo e que homem resultaria daí. Que tipo de homem (se é que há um) escolhe um ou outro tipo. E, o que seria o estilo de vida ético-estético que EU proponho como sendo o necessário.
Analisar, partindo de dados que já nos são fornecidos, estatisticamente ou na bibliografia existente, quais as condições vigentes no mundo atual, quanto a situação atual de trabalho, oferta de postos, se as tecnologias propiciaram melhorias nestas condições e/ou fizeram com que o homem se torne obsoleto (aqui já é uma hipótese!).
Propor, se for o caso, respostas, proposições, possíveis (ou impossíveis) para quiçá um “novo” homem. De que tipo seria ele, é o mesmo da investigação primeira, as soluções seriam pensadas nas academias, nas instituições governamentais, pela sociedade, aleatoriamente?. A Escola nisso. Que tipo de alunos temos, que tipo de alunos precisamos ter, que tipo de professores são necessários para o homem. Que tipo de professores de Filosofia necessitamos? Como implementar tal ensino? E o “cuidado de si” (Platão/Foucault), como praticá-lo nestas novas propostas (se é que é possível!)?. Ou seria o “flaneur” (há diferença?) de Walter Benjamin uma outra resposta possível?, já que a proposta, desde Nietzsche, pensou-se em um retorno ao ethos grego com a Bildung alemã?
De que Filosofia precisamos para o ensino de uma Filosofia que possa propor-se transformadora?.
PROBLEMA
Partindo-se do pressuposto de que a ação humana é o trabalho, que este é a condição humana por excelência. Partindo-se dos dados que nos são fornecidos praticamente todos os dias de queda de postos de trabalho. Partindo-se do dado de que muitos destes postos de trabalho são perdidos em função da introdução das tecnologias em todos os meios. Partindo-se de tudo o que se têm escrito sobre as idéias de homem, suas necessidades, suas angústias e idéias do bem viver, do compartilhar, do viver em sociedade, de “compaixão”. Utilizando-se alguns autores e o que dizem sobre, que HOMEM temos hoje, ele é diferente, ele VIVE, ou ele apenas sobrevive e o mundo está num “salve-se quem puder” (ou seja, queda de toda e qualquer possibilidade social!)?.
Num tempo em que vivenciamos grandes demandas por novas respostas a tudo o que nos ocorre no social, nem sempre com vontade e desejo de pensar sobre elas, de muitas transições, imigrações, emigrações, transferências de pessoas de cá para lá (nem sempre bem vindas!), de uma violência galopantemente invasiva e sem possibilidades de soluções no mundo e na sociedade (não há interesse, a não ser que os interesses sejam os de livrar-se do “problema”, enjaulando, marginalizando, segregando, “matando”?), de um “parecer” ser, de um ter mais do que qualquer possibilidade de busca de ser, de viver, de um mascarar-se para fingir ser algo e/ou alguém (aqui “copiar” o outro deixa de ser o horror Frankenstein para “parecer” ser o outro, sem qualquer possibilidade de identidade – DIFERENÇA - SINGULARIDADE - própria, sequer do outro - já que jamais haverá qualquer possibilidade de ser O outro!).
Num mundo em que não se sabe mais o que é o homem, o que o diferencia de uma máquina, o que é uma máquina (alguns chegam ao absurdo de pensar que as máquinas operam-se sozinhas, programam-se sozinhas,.., são!).
Num tempo em que não se compreende o que se tem para viver, como as relações homem –homem podem se dar, como viver (já que tudo aparenta ser só “conexão”!) como escolher uma vida a viver, é possível ainda “escolher “?. O que pensadores antes de nós acreditaram ser uma escolha, uma boa escolha? Ainda é possível “viver”, na forma como estes pensadores (alguns- ou todos?) pensaram, propuseram, escreveram sobre?
Sem trabalho, não se tem o poder de troca para pensar em “VIDA”, socialmente, pessoalmente, em família,.... Como, há um homem sem trabalho, logo, sem o retorno desta condição?. Quem o sustenta, o quê o sustenta, ele pensa, ele “rouba” (se ele rouba, ele tem a condição???? – ele é HUMANO??)?.
Se o homem, ou o ser que temos hoje (se é “ser”), não tem a condição de seu sustento, quem o mantém respirando?? De onde viriam recursos para tanto, que tipo de governos podemos pensar para atender a essas demandas (é de “governo” que se precisa – de que tipo de “governo” estes “seres” precisam?).
Estas são questões que urgem ser pensadas, até mesmo para repensar sociedades, meios de sobrevivência, de subsistência, de trocas, meios de relações, possíveis ou não, de seguir com o que fazemos ou mudar os rumos. Logo, se há um lugar onde tais questões, indagações JÁ DEVERIAM TER SIDO PENSADAS E OBTER ALGUMAS PROPOSTAS deveria ser na FILOSOFIA.
URGE, para ONTEM, que a educação, principalmente na FILOSOFIA, já estivesse com alunos “formados”, pensando sobre tais questões, propondo novas pesquisas, mas com ÉTICA (não é na ACADEMIA que se deveria falar, pensar, escrever, discutir, propor desta forma??? – se não for – onde mais poderia ser – existe um outro lugar?????).
Derrida faz uma desconstrução lingüística para chegar a um entendimento, que deseja que cheguemos com ele. Com a psicanálise, há uma desconstrução lingüística do sujeito, para que ele se “ache”, se compreenda efetivamente, enquanto estrutura psíquica. Desta forma, é necessário, importante e relevante, investigar como a educação pode (e se deve) fazer frente às desestruturas da contemporaneidade e a crueldade que advém delas.
Essa pesquisa propõe realizar uma profunda análise da psicanálise em conjunto com a educação e a filosofia, no sentido de vincular uma reformulação teórica e prática em seus pressupostos e contatos com os educandos, buscando modificações nos paradigmas “estrutura psíquica, educação e ética”, para a criação de políticas sociais e governamentais, inclusive (se for o caso!).
TEORIA OU QUADRO TEÓRICO
“Os discursos NÃO se apagam E SE fazem presentes em CADA ação.
Cem linhas, COM linhas e sem linhas [...]”
O SEGREDO: “fazer existir, não julgar” (Deleuze)
OUTRO SEGREDO: “Não invadir a VIDA dos outros” (Vera Marta Reolon)
Através do estudo de diferentes autores propostos buscamos um referencial: que faz com que nos tornemos humanos, o que nos diferencia como humanos?. O homem, em alguns momentos, diz-se humano porque possui racionalidade, porque possui espírito, enfim diferentes conceitos, construções teóricas que, na verdade, nada dizem, são apenas palavras que não trazem respostas às nossas inquietações.
A psicanálise, como teoria interpretativa da realidade, serve para analisar os fenômenos, no campo individual, através das manifestações do inconsciente, presentes na linguagem dos diversos sujeitos, nos chistes, na interpretação dos sonhos, etc. Pode, entretanto, interpretar os fenômenos sociais, através da análise das manifestações da sociedade, das organizações e instituições, dos grupos sociais. Aliando-se a filosofia, essencial para seu desenvolvimento desde o início, a psicanálise, além de realizar interpretações, reflete sobre os fatos, utilizando-se das teorias dos grandes pensadores.
Partindo-se, assim, da escrita desconstrutiva de Derrida, o discurso psicanalítico é o que pode dar conta das questões contemporâneas: “Se há um discurso que poderia, hoje em dia, reinvindicar a causa da crueldade psíquica como assunto próprio, este é o que se chama, de mais ou menos um século para cá, psicanálise” (DERRIDA, 2001, p.8-9).
Basta que eduquemos, que adestremos os animais, mesmo que selvagens, para observarmos neles amorosidade, carinho, dedicação. Se os tratarmos com amor, recebemos amor e dedicação para sempre. O ser humano também precisa desta “amarragem” amorosa, sem esta estruturação, sem esta dedicação ele fica perdido, como um objeto do Outro, este que o gerou. É preciso que o ser humano, ao nascer, ou antes disso, seja desejado, seja marcado com a insígnia do desejo por alguém, que ele tenha sido esperado, querido por alguém, mas não desejado para completar este alguém, e sim que ele seja desejado para viver, ser feliz, progredir, fazer-se. É um processo, e um projeto de humanização constante, que se inicia com este Outro.
Para que sejamos marcados como desejantes, tenhamos “voz plena de valor”, precisamos da marca primordial de instituição narcísica, que denominamos Amor do Outro. Outro este que faz para nós um papel materno, de mãe instituidora da marca amorosa que levaremos em nossas vidas. Sem esta marca inicial não somos considerados estruturalmente sujeitos, donos de uma identidade, estaremos sempre presos a alguém que nos deve conduzir pela vida, pois esta marca é primordial, necessária em nossa frenética luta pela libertação. Com a marca podemos nos libertar e seguir. Sem a marca estamos presos ao desejo do Outro, às suas imposições.
Freud via nos primórdios da experiência psíquica uma identificação primária que consistiria na “transferência direta e imediata” do ego em formação para o “pai da pré-história individual”, o qual possuiria as características sexuais de pai e mãe e seria um conglomerado de suas funções. (KRISTEVA, 1987, p.36).
Diferentemente de Platão, que concebe o amor como movimento, pulsão, vida, desejo de algo, busca por algo, Schopenhauer encontrou o a priori manifestando-se na Vontade. Como coloca Dumoulié (2005), o nosso conhecimento se acha encerrado no mundo dos fenômenos, portanto de representação, mas nós temos a intuição imediata através do nosso corpo, da essência íntima dos seres e do mundo. Para Schopenhauer, que sofreu influências de Platão e Kant, o mundo é fenômeno, é representação. A Vontade estaria em um mundo de idéias – platônico -, num mundo idealizado, superior, inalcançável, que pode apenas ser simbolizado. A Vontade, entretanto, não é externa, para Schopenhauer, ela está em nós:
A coisa em si, que não podemos conhecer do lado de fora, nós a alcançamos diretamente por dentro, pois ela está em nós. Esta Vontade, da qual a vontade humana é apenas uma manifestação, é um princípio metafísico, sustentáculo de tudo aquilo que é. [...] A expressão “coisa em si” deve ser entendida da maneira mais concreta, como uma Coisa toda-poderosa que habita em cada um de nós, que nos faz viver e nos vai devorando ao mesmo tempo. Por essência é um desejo bruto, cego e insaciável. (DUMOULIÉ, 2005,p.101).
Schopenhauer estabelece uma dupla lei relativa ao desejo: os contrários se atraem e cada um procura no outro aquilo que lhe falta. Desta forma, procura-se um amado que possua aquilo de que se é carente. Aqui há uma conexão com Platão e com Lacan.
Embora Lacan tenha aparentado uma grande distância em relação a Schopenhauer, que ele quase não cita, seu pensamento apresenta inúmeros pontos de contato com o filósofo. A noção de Coisa, tão essencial à teoria lacaniana, cujas nobres origens kantianas e heideggerianas são abertamente reconhecidas, tem ocultas e profundas ligações com a Coisa em si de Schopenhauer, a Vontade de gozo cega e mortal.
Alain Juranville (1987) faz uma diferenciação das estruturas neurose, psicose e perversão, no que concerne ao desejo e ao amor de estrutura:
O psicótico não dá, não quer a relação com o Outro, que suporia que ele entrasse na castração. “A psicose”, diz Lacan, “é uma espécie de falência no que concerne à realização do que é chamado ‘amor’”. Nela, o sujeito quer o gozo absoluto, o que ele efetivamente conhece ao nível de seu corpo. Daí seu narcisismo. [...] [Na perversão] dá-se apenas ao Outro simbólico, essencialmente ausente do mundo. Todos os “outros” humanos, inclusive o próprio sujeito, são para esse Outro instrumentos de gozo. [...] O neurótico precisa, pois, de um simbólico suplementar, ou seja, do sintoma, onde o desejo se mantém como recalcado. (JURANVILLE, 1987, p.363-365).
O que nos torna humanos então, para a psicanálise, não nos deixando objetivar, ou sermos objetivados, é este amor de estrutura, que nos diferencia perante os demais, que nos torna desejantes, desejantes de vida, de felicidade, de busca.
Sartre vai além deste conceito, ele fala do existir humano, do processo da existência humana, como uma construção, construção essa que parte da própria liberdade de ser humano. O homem vai construindo sua existência, a partir da liberdade que possui, liberdade de escolher, conforme seu desejo: “toda verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana” (SARTRE, 1970, p.01).
O humano é constituído pelo Outro. A partir desta marcação estrutural, amorosa, ele pode nomear-se, determinar-se, decidir por si. Inicialmente ele não é nada, é o resultado do desejo deste Outro. Mas é somente através deste desejo que ele poderá desejar, para si, para o mundo.
No texto sartriano, há uma noção de humanidade que extrapola toda a individualidade, todo egoísmo ou todo egocentrismo narcisista que o homem possa carregar, pois ele expõe a liberdade existencial humana como uma responsabilidade que inclui a humanidade inteira: “a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, pois ela engaja a humanidade inteira” (SARTRE, 1970, p.03).
Logo, em Sartre, toda nossa ação é livre, a partir de nossas escolhas, toda nossa ação é uma construção livre de nossa individualidade, uma marca individual de nossa existência, mas ela também é uma responsabilidade sobre a marca que transmitimos como retrato da humanidade toda e “sobre” toda essa humanidade. Essa responsabilidade carrega muita angústia, e daí a afirmação de Sartre de que o “homem é angústia” (SARTRE, 1970, p.04). Não há disfarces para a angústia, pois ela faz parte deste existir humano, de escolhas e de responsabilidade.
Kierkegaard vai propor que o homem deve/pode escolher/eleger como vai conduzir sua vida. Propõe dois estilos de vida, de escolha: o estilo de vida estético e o estilo de vida ético. Se o homem opta por seguir um estilo de vida estético (que aqui nada tem de estética – arte ou o que hoje entendemos pelo termo estética), ele é o que vive o INSTANTE (fronteira entre o antes e o depois). Em princípio ele viveria em liberdade. Mas na crítica que Kierkegaard faz a este “escolhedor”, dirá que esta liberdade é um engodo, já que a verdadeira liberdade só se dá na opção pelo estilo de vida ético
o que vale é madurar a própria personalidade antes de formar o espírito. [..] desejarias fortalecer tua alma [..] tem em cada ser uma potência capaz de desafiar o mundo inteiro. [..] o principal da vida , reconquistar-te a ti mesmo , adquirir-te a ti mesmo, com a condição de que possas, o mais bem que queiras poder a energia necessária para fazê-lo. (KIERKEGAARD, 1966, p.9-11)..
O estilo de vida ético, à semelhança do que ocorria no mundo grego incorpora, abarca o que entendemos por estético. Ao optarmos pelo estilo de vida ético, incluímos em nossa opção a vida estética, incluímos a opção por nós mesmos, o eterno. O sujeito que opta pelo estilo de vida estético vive no desespero e nada tem de fato.
Tua escolha é uma escolha estética, mas uma escolha estética não é uma escolha. Em verdade, o fato de escolher é uma expressão real e rigorosa da ética [..] o único aut-aut (ou isto, ou aquilo) absoluto que existe é a escolha entre o bem e o mal e essa escolha também é absolutamente ética. (KIERKEGAARD, 1966, p. 20).
O desespero não deve ser um inibidor de minha ação. Ao contrário, deve me engajar na ação: “não é preciso ter esperança para empreender [...] não deverei ter ilusões e que farei o melhor que puder” (SARTRE, 1970, p.08).
A realidade só existe a partir da ação, o homem só existe à medida que se realiza na ação, o homem é o conjunto de seus atos.
Para Hanna Arendt o homem não é um ser de natureza, é um ser de condição. A condição humana é que o homem é um ser de ação (arte) e discurso (político). Hanna diferencia labor de trabalho, mas dirá que a condição humana, por excelência é o trabalho, ação humana que nos diz quem e o quê somos.
Com a expressão vita activa pretendo designar três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação. [..] o labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano [...] tem a ver com as necessidades vitais [..] a condição humana do labor é a própria vida. O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana. [..] a condição humana do trabalho é a mundanidade. A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade. (ARENDT, 2008, p.15).
Independentemente se tomamos cada uma das atividades humanas ou se nos dedicarmos, abarcarmos o termo proposto por Hanna, vita activa, as três atividades referem-se ao que designa, distingue o homem como homem, à durabilidade do mundo, já que o homem o habita.
o trabalho de nossas mãos, em contraposição ao labor de nosso corpo – o homo faber que “faz” e literalmente “trabalha sobre” os materiais, em oposição ao animal laborans que labora e “se mistura com eles” – fabrica a infinita variedade de coisas cuja soma total constitui o artifício humano. (ARENDT, 2008, p.149).
Outros autores também nos apresentam a importância do trabalho na vida humana, para o seguir de sua existência: “No trabalho, o homem satisfaz uma potência de criação que se multiplica por numerosas metáforas” (BACHELARD, 2001, p.24). A própria Hanna vai nos conduzir, em seu texto A Condição Humana, o que faremos (ela já se questionava nos anos 60 do século XX), sem trabalho: “O que se nos depara, portanto, é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta” (ARENDT, 2008, p.13).
E ela mesma nos aponta o que pode nos ter conduzido a esta “situação”:
[..] talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida para além do limite de cem anos. [..] O problema tem a ver com o fato de que as “verdades” da moderna visão científica do mundo, embora possam ser demonstrados em fórmulas matemáticas e comprovadas pela tecnologia, já não se prestam à expressão normal da fala e do raciocínio. [..]Se realmente for comprovado esse divórcio definitivo entre o conhecimento e o pensamento, então passaremos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso know-how, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja. (ARENDT, 2008, p.11)
. Nunca, em nenhuma outra época de nossa história, esteve o homem tão só em meio à multidão. Os ideais que o sustentavam caíram, a felicidade não depende mais da harmonia de vínculos sociais, mas de objetos adquiridos e ofertados incessantemente pela mídia e os instrumentos gerais do marketing. Há uma oferta de gozo total. A foraclusão da Lei da vida é paga com dízimos. O sujeito é transformado, através do seu assassinato, em objeto submisso do gozo do Outro. Não há nada mais psicotizante do que isso. Nas doenças da modernidade, anorexia, bulimia, toxicomanias, e a conseqüente violência advinda delas, o que se tem são sombras que o mundo das luzes não ilumina. A modernidade nos oferece um mundo iluminado (de uma iluminação artificial, mascarada) pelos outdoors plenos de ofertas, mas nosso eu, quem sou, para onde vou, o que desejo (?), não há resposta. Há muita “luz” de LED e a luz interior é apagada!.
A oferta que temos é de pulsão de morte em todo tempo. O mercado demanda ofertas onde o consumidor precisa e não vive sem a mercadoria. Este é o modelo de paradigma que abarca as toxicomanias, é causa e conseqüência delas. O que vem antes, um mundo que facilita as toxicomanias, ou elas originam o mundo? Não sabemos, devemos pensar sobre isso. As doenças modernas remetem à morte do sujeito, uma segunda morte que vem antes da primeira (interrupção da vida), pois esta segunda é a morte do sujeito no Simbólico. São estas “doenças modernas”, anorexia, bulimia, toxicomanias, resultados destas desestruturas psíquicas?
Hanna Arendt e a questão do totalitarismo => as perversões.
As confusões público-privado, câmeras e os excessos de invasões sobre a vida das pessoas, ao mesmo tempo que tais invasões em nada auxiliam no cessar da violência (já que o são por si) e nada provam, quando exigidas pela justiça penal. Esta violência (invasão) produz uma violência virtual que, sob pressão, desencadeia violência física.
As FEBEM’s e a falsa educação do ECA na prática. As falas dos meninos da FEBEM: “eu quero ficar com os grandões no presídio, depois dos 18, quando zera minha ficha policial” (sic).
Leis iguais para todos, mas como fica, por exemplo, o Complexo do Alemão, lei igual?
Hanna e o caso Eichmann e a forma “judaica” de conduzi-lo.
Conceito de autonomia => Bildung, a partir da Paidéia grega e de Rousseau e Hobbes.
Nietzsche: “nunca se precisou tanto de educadores morais” (sic)
Michel Foucault em seus Seminários sobre o Governo de Si e dos Outros e sobre a Hermenêutica do Sujeito aborda e discorre sobre o cuidado de si, como uma questão ampla de uma busca de saúde que vai de encontro com o conhecimento de si, com o saber de seu corpo, com o saber de suas necessidades, de seus desejos, com vistas a uma ampla busca de felicidade, não mais como uma busca utópica, subjetiva, inalcançável (talvez como ideal demais!) mas, através desse conhecimento de si, uma felicidade possível, palpável, vivenciável: “A filosofia está assimilada ao cuidado com a alma (o termo é precisamente médico: hugiainein), e esse cuidado é uma tarefa que deve ser seguida ao longo de toda a vida”. (FOUCAULT, 1997, p.120).
Hermenêutica de si => epimeléia heautou (grego) – cura sui (latim) – princípio de ocupar-se de si => cuidar de si mesmo => conhecer a si mesmo => obscurecido pelo brilho do Gnôthi seauton. (FOUCAULT, 1997,p.119).
.Que fazer de nossas vidas, quem somos, para onde vamos, tudo depende de nós: “o destino do homem está em suas próprias mãos” (SARTRE, 1970, p.09).
METODOLOGIA
Através da leitura das obras dos autores indicados, analisar como a ética, a psicanálise, a estética, a educação, a filosofia confluem e podem interligar-se no sentido de buscar respostas às demandas contemporâneas, ampliar e conceituar ontologicamente o homem, suas buscas, suas necessidades para a vida em sociedade e sua própria existência. Estabelecer como um professor de Filosofia no ensino médio pode trabalhar com os alunos as questões filosóficas que propomos.
Procedimentos e hipótese de trabalho
1. Realizar um estudo do conteúdo das obras indicadas, delimitando seus enfoques na Ética, Filosofia, Educação.
2. Após a delimitação dos enfoques, interpretar quais as confluências entre a filosofia, educação, ética, estética nos temas propostos da busca do que é o homem, da ação humana, das escolhas humanas, do “novo” homem (se o há!).
3. Estudar a contextualização do trabalho nas relações humanas. O ingresso das tecnologias, seus usos e abusos. O homem sem o trabalho, o que resulta daí.
4. Introduzir ao estudo, conhecimentos provenientes de outros pensadores,e outros campos acerca de suas teorias sobre o tema.
5. Interpretar, sob as perspectivas da filosofia, da antropologia filosófica, educação, da ética, da educação e das diferentes transdisciplinas os resultados das análises, dos estudos.
Resultados pretendidos
Preparação de bolsistas, pesquisadores, professores, formação de professores para o ensino médio, material de pesquisa (publicações de artigos e livro).
Alunos vinculados, material bibliográfico a ser adquirido/utilizado, custos operacionais diversos: dependentes da dotação orçamentária destinada pela CAPES, CNPq e/ou outros órgãos de fomento, UFRGS e curso de Filosofia, especificamente.
REFERÊNCIAS
Bibliografia principal
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ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 3ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1985.
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ZILLES, Urbano; FELTES, Heloisa. Filosofia: diálogo de horizontes. Porto Alegre: Edipucrs; Caxias do Sul: Educs, 2001.
25 de junho de 2020
Aula apresentada: O Homem e a Ação
25 de junho de 2020
Aula apresentada: Cultura e Poder nas Organizações
25 de junho de 2020
Aula apresentada: Hannah Arendt - A Condição Humana
25 de junho de 2020
Aula apresentada em outra universidade: Psicopatologia
Bacharelado em Psicologia
Disciplina: Psicopatologia
Professor: Dra. Vera Marta Reolon
PROGRAMA DA DISCIPLINA
EMENTA: Fundamentos epistemológicos e históricos do saber psicológico em relação à psicopatologia e avaliação crítica dos conceitos de saúde e doença. Descrição, análise e interpretação de relações entre cultura e processos psicopatológicos; análise do campo de atuação do profissional na área de psicopatologia e seus desafios contemporâneos. Fundamentação teórico-metodológica do diagnóstico em Psicopatologia através da descrição, análise e interpretação dos processos de formação das estruturas clínicas.
OBJETIVOS PRINCIPAIS: Propiciar ao aluno subsídios para a fundamentação teórico-metodológica do diagnóstico através da descrição, análise e interpretação dos processos semiológicos e das defesas psíquicas. Estudar os procedimentos para a investigação dos processos psicopatológicos. Analisar os procedimentos para a investigação dos processos psicopatológicos nas neuroses, psicoses, perversões, adições e estados limites. Ler e interpretar casos clínicos (Freud e outros). Caracterizar a dimensão ética presente no âmbito da psicopatologia.
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METODOLOGIA: Aulas presenciais; aulas à distância (trabalhos práticos – individuais ou grupais); discussões; trabalhos individuais, em dupla e em grupo; prova; projeção e análise de filmes; estudos de casos; análise de reportagens veiculadas na mídia; atividades práticas.
CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO: Freqüência mínima às aulas; participação nas discussões; realização de trabalhos individuais, em dupla e em grupo; realização de prova; debates em aula a respeito dos temas abordados; avaliação parcial ao término de cada aula com trabalho escrito; apresentação oral/ escrita de trabalho; criatividade; iniciativa; senso crítico.
BIBLIOGRÁFICA BÁSICA
AJURIAGUERRA, J. Manual de Psiquiatria Infantil. São Paulo: Masson, 1987.
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EY, Henry; BERNARD, P. Manual de Psiquiatria. São Paulo: Masson, 1989.
FERREIRA, Nadiá (org.). Tóxicos e manias: o mal-estar na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Uerj, 1995.
FLEIG, Mario (org.). Psicanálise e sintoma social. 2 ed. Novo Hamburgo: Unisinos, 1997.
FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
GROUP OF THE ADVANCEMENT OF PSYCHIATRY. Distúrbios psicopatológicos na infância: teoria e classificação. Porto Alegre: Artmed, 1990.
HARTMANN, Fernando (org.). Violências e contemporaneidade. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2005.
KUSNETZOFF, Juan. Introdução à psicopatologia psicanalítica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
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BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
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VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
Deontologia e Justificação Epistêmica: Ética e Epistemologia
A noção deontológica de justificação epistêmica surge de um paralelo traçado entre ética e epistemologia mediante a utilização de um vocabulário deontológico para a avaliação de um status epistêmico de nossas crenças. John Locke surge como um de seus representantes mais ilustres. Relação entre justificação e normatividade.
Deontologia vem de deontos = dever, logos= tratado, daí deontologia seria tratado do dever. Estudo da ética que orienta cada profissão. Na epistemologia, duas teorias de justificação: as deontológicas e as não deontológicas.
Justificação epistêmica
Teorias da justificação, dois grupos: deontológicas, que usam termos deônticos, semelhantes àqueles utilizados na Ética, para mostrar o caráter normativo dos conceitos epistêmicos; e as não-deontológicas.
Numa linha de pensamento, ‘deveres epistêmicos’ para explicar o conceito de ‘justificação epistêmica’. Conceitos epistêmicos não são redutíveis a conceitos éticos. Após esse debate, a conexão estabelecida entre Ética e Epistemologia tem sido meramente analógica.
Normatividade epistêmica
Ter conhecimento é uma questão de se o mundo coopera a ponto de retribuir crença justificada com verdade. Se Smith pode estar justificado em crer em uma preposição falsa, e não houve algo errado no modo como Smith adquiriu sua crença Ψ, parece plausível supor que o sentido de justificação epistêmica que Gettier estava pensando, ao apresentar seus contra-exemplos, era o de ser epistemicamente irrepreesível ao crer.
Justificação epistêmica possui um componente deontológico inerradicável. A explicação usual do conceito de justificação epistêmica está associada a algum elemento deontológico.
Alvin Goldman afirmou que: “[d]eontologistas epistêmicos comumente mantêm que estar justificado em crer em uma preposição p consiste em estar (intelectualmente) obrigado ou autorizado em crer que p; e estar injustificado em crer que p consiste em não estar permitido, ou estar proibido, em crer que p” (2001, p.116).
A noção de justificação epistêmica invocada por Gettier vai ao encontro da noção deontológica.
A origem da justificação epistêmica baseada em dever
Chisholm e Ayer utilizam termos normativos importados da Ética para explicar o conceito de justificação epistêmica. Jonh Yolton comenta que “distinguir as boas das más bases para a crença constitui o que foi chamada a ‘ética da crença’ de Locke” (1996, p.67). Essa visão recorre à noção de deveres epistêmicos para explicar o conceito de “justificação epistêmica”. O rótulo dado, muito recentemente, a essa visão é o de Deontologismo Epistêmico. Para Locke, a noção de dever tem um papel central no empreendimento epistêmico. Ele está garantindo a normatividade do seu discurso sobre as bases da crença.
Violar um dever significa negligenciar uma importante qualidade epistêmica. Não violar um dever epistêmico significa não estar sujeito à culpa ou reprovação epistêmica.
Crer que p, quando p não lhe parece provável => epistemicamente culpável.
Alvin Plantinga argumenta nos seguintes termos:
Agir de acordo com estes deveres ou obrigações é estar dentro daquilo que é correto; é fazer somente aquilo que é permitido; é não estar sujeito a alguma culpa ou desaprovação; é não ter desprezado qualquer dever; é ser aprovável deontologicamente; é, em uma palavra, estar justificado. [...] justificação epistêmica é justificação deontológica; justificação deontológica com respeito à norma da crença. (1993a, p.13-14)
Não basta alcançar a verdade acidentalmente. Adquirir crença verdadeira não é suficiente para tornar alguém epistemicamente irrepreensível. Alguém pode estar justificado em crer, mesmo que a maioria de suas crenças seja falsa.
Justificação epistêmica, nessa perspectiva, não depende de nenhum fator externo ou agente doxástico. Tudo o que o sujeito necessita para estar justificado pertence a sua vida mental.
O que alcança o mérito ao agente doxástico e, portanto, o torna irrepreensível não é o crer verdadeiramente, mas crer ou deixar de crer segundo o comando da sua razão. O destino epistêmico de um sujeito deveria sempre encontrar-se em suas mãos. Estaria dentro do poder do sujeito sempre fazer o seu melhor e estar longe da censura.
Locke está pensado claramente em dever ou obrigação subjetiva, visto que ele está pensando em inocência e culpa, responsabilidade e irrepreensibilidade. Estar justificado depende daquilo que é acessível ao agente. Mas além do subjetivo, ele também está falando de um dever objetivo. Para Locke, alguém deve crer naquilo que é epistemicamente provável em relação a sua evidência total. Alguém deve crer somente em preposições para as quais tem boas razões.
Dever objetivo para Locke seria regular suas crenças. Alguém que não faz assim, ele diz: “vai contra sua própria luz e usa de maneira errada aquelas faculdades que lhe foram dadas”.
Como seres intelectuais, nós temos, o que podemos chamar, um fim epistêmico, a verdade. A perseguição deste fim nos impõe certos deveres: deveres epistêmicos objetivos e subjetivos.
O uso de termos normativos
Na Epistemologia, as pessoas fazem julgamentos comparáveis entre opiniões e outros atos cognitivos, usando, às vezes, a mesma linguagem normativa. Roderick Firth e Roderick Chisholm alegaram que existem componentes de natureza deontológica na base dos conceitos epistemológicos. Pode-se pensar exigência, proibição e permissão como os termos deontológicos básicos, em obrigação e dever como espécies de requerimento, e em responsabilidade, culpabilidade e outros termos semelhantes como derivados. Conceitos epistêmicos não são redutíveis a conceitos éticos. A utilização do vocabulário deontológico, para fazer juízos epistêmicos, é apenas analógica. A conexão entre justificação epistêmica e justificação ética é, também, analógica.
O conceito de ‘justificação’ pode estar analisado utilizando termos deontológicos em um sentido especificamente relevante para a perseguição do conhecimento.
Se justificação está em função de cumprir deveres, então ela possui um caráter normativo. Ter um dever é estar sujeito a uma exigência normativa. Deveres fornecem alguma razão justificada para a ação. De forma semelhante, ter um dever epistêmico significa estar sujeito a uma exigência normativa. Se S é capaz de explicar por que tomou A, alegando que era seu dever, então oferece uma justificação para sua ação doxástica. Chisholm afirma que nós temos um dever epistêmico formal como seres intelectuais de tentar fazer o melhor possível para alcançar o fim epistêmico de crer em verdades e não crer em falsidades, a fim de crer em proposições se e somente se elas forem verdadeiras.
Normatividade teleológica
Paralelos entre o discurso ético e o discurso epistemológico em relação ao caráter avaliativo dos conceitos de justificação, racionalidade e garantia. O conceito de justificação epistêmica é, em algum sentido, um conceito normativo. A preocupação é descrever normas que não podem ser violadas por um agente. Há dois pontos de vista quanto à normatividade dos juízos morais: o teleológico e o deontológico. Juízos epistêmicos são mais naturalmente entendidos em linhas teleológicas.
Para um teleologista, o valor epistêmico das atitudes doxásticas depende de um valor não epistêmico que faz surgir ou que busca fazer surgir. As teorias teleológicas colocam o obrigatório e o epistemicamente bom na dependência do não epistemicamente bom. Para saber qual a atitude doxástica correta, deve-se primeiro averiguar o que é bom, no sentido não epistêmico, e depois indagar se a atitude doxástica em questão promove ou se destina a promover o bom naquele sentido.
De acordo com Richard Feldman, parece razoável interpretarmos o termo “lei” não como “dever”, mas como “objetivo” ou “fim”, uma vez que ele apenas nos diz o que devemos obter, mas não os meios e os modos como obter tais fins ou objetivos.
Frente a duas posições extremas, crer em tudo, a fim de crer em muitas ou todas as verdades; e crer em pouca coisa, a fim de crer em menos falsidades possíveis, faz-se necessário achar uma mescla adequada, a fim de atingir a excelência epistêmica.
Deontologismo epistêmico
Richard Feldman argumentou que nem sempre o mérito prudencial, moral e epistêmico coincidem. Por outro lado, é possível imaginar uma situação em que alguém, ao fazer x, cumpre ao mesmo tempo com seu dever ou obrigação prudencial, epistêmica e moral. Se cumprir seu dever epistêmico é, em um dado momento, incompatível com cumprir naquele mesmo momento seu dever moral, então qual deles deve ser cumprido? Deveres morais sempre superam deveres epistêmicos? Para Feldman, não há qualquer problema com a idéia de que deveres do mesmo tipo podem ter igual importância. O ponto relevante é que pode existir alguma escala de valores. Cumprir com um dever contribui mais que cumprir com o outro para alcançar o que possui valor intrínseco. O problema, segundo Feldman, é que não há clareza em como conduzir uma avaliação com uma escala valorativa de deveres de vários tipos.
Os fatores epistêmicos podem conduzir em alguns casos a resultados diferentes daqueles atingidos pelos deveres morais ou prudenciais. A visão de que o conceito de justificação é definido em termos de deveres doxásticos epistêmicos é denominada deontologismo epistêmico. A diferença entre dever epistêmico e moral é que alguém deve crer, descrer, ou suspender o juízo frente a uma proposição, em quanto alguém pode licitamente realizar ou não realizar uma ação.
O Deontologismo Epistêmico trata propriamente dos deveres epistêmicos em relação a crenças. Ele explica a justificação epistêmica por meio de deveres epistêmicos doxásticos. Portanto, os deveres não exigem do sujeito buscar ou considerar mais evidências, apenas tomar atitudes doxásticas de acordo com alguma regra epistêmica.
O resultado da fenomenologia da crença colocou em dúvida que pessoas tenham habilidade para controlar suas crenças como a têm para controlar suas ações. Raramente, pessoas têm controle voluntário sobre suas crenças.
Há dessemelhança com a Ética. Há distinção entre justificação objetiva e subjetiva. Ter justificação epistêmico subjetiva parece não ser suficiente para alcançar a desejada excelência epistêmica. Alguns tentam identifica a noção deontológica com justificação epistêmica objetiva, mas isso parece colocar de lado a característica fundamental dessa noção, a saber, a irrepreensibilidade epistêmica.
REFERÊNCIAS
CHISHOLM, R. Theory of Knowledge. Englewood Cliffs: Prestice-Hall, 2. ed., 1966.
FELDMAN, R. Epistemic Obligation. Philosophical Perspectives 2, 1988, p.235-256.
_______. Epistemology and Ethics. In: CRAIG, E., 1998.
_______. The Ethics of Belief. Philosophy and Phenomenological Research 3, 2000, p.667-695.
GOLDMAN, A. Epistemology and Cognition. Cambridge: Harvard University Press, 1986.
_______. Internalism Exposed. Reprinted. In: STEUP, M. 2001, p.115-133.
LOCKE, J. An Essay concerning Human Understanding. New York: DOVER, 1959.
PLANTINGA, A. Warrant: The Current Debate. Oxford: Oxford University Press, 1993a.
YOLTON, J.W. Dicionário Locke. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
VERA MARTA REOLON
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terça-feira, 28 de abril de 2020
Sobre Linguística
1) Disserte sobre as (possíveis) relações existentes entre os conceitos de “campo” (Bourdieu) e de “região”, levando em consideração as noções de espaço social e espaço político-geográfico.
A sociologia de P.Bourdieu está centrada no conceito de “habitus” construído sobre a história individual e coletiva para fundamentar as práticas individuais e coletivas. Ele atrela os conceitos de campo e de capital ao de “habitus”, os quais constituem o núcleo de sua sociologia. Para Bourdieu o campo social, diferente do que apregoa Marx, não se restringe ao campo econômico. Formação social para ele é um “sistema de relações de forças e de sentido entre grupos ou classes”.[1] “Objeto social encerra um conjunto de relações internas, um sistema de relações cujo funcionamento a análise permitirá explicar”[2] E, campo social como “espaços estruturados de posições (ou postos), cujas propriedades dependem de sua posição nestes espaços e que podem ser analisados independentemente das características de seus ocupantes (em parte determinados por elos).”[3] “O “espaço social” assinala uma ruptura com as representações tradicionais da hierarquia social fundadas sobre uma visão piramidal da sociedade. Esta atribui a cada classe uma posição na escala social em função de suas condições materiais de existência.”[4]
Bourdieu diz então do mundo social:
“Assim, pode-se representar o mundo social sob a forma de um espaço (com várias dimensões) construído sobre a base de princípios de diferenciação ou de distribuição constituídos pelo conjunto das propriedades que agem no universo social considerado. [...] Os agentes e os grupos de agentes são assim definidos por suas posições relativas neste espaço. Cada um deles está situado numa posição ou numa classe precisa de posições vizinhas (isto é, numa região determinada do espaço) e não se pode ocupar realmente, mesmo que seja possível fazê-lo em pensamento, duas regiões opostas do espaço. [...] Pode-se descrever o espaço social como um espaço multidimensional de posições tal que toda posição atual pode ser definida em função de um sistema multidimensional de coordenadas, cujos valores correspondem aos valores de diferentes variáveis pertinentes. Assim, os agentes se distribuem nele, na primeira dimensão, segundo o volume global do capital que possuem e, na segunda, segundo a composição do seu capital- isto é, segundo o peso relativo das diferentes espécies no conjunto de suas possessões.”[5]
Assim, sociedade, para Bourdieu é um conjunto de campos sociais, atravessados por lutas de classes, diferenciados progressivamente. Na evolução das sociedades surgem campos sociais produzidos pela divisão de trabalho nesta sociedade. Estes espaços socialmente construídos, que constituem um campo social determinam rede de relações objetivas entre as posições, estas posições são diferenciadas por relações de poder definidas conforme a capacidade dos agentes ou instituições de domínio sobre os objetos de interesse que dão forma ao campo, bem como sobre o capital envolvido nestas relações.
Campos sociais são espaços sociais constituídos de agentes, capital e status. A sociedade é constituída de diferentes campos interseccionados. Os campos têm leis de funcionamento e tem suas especificidades. O interesse sobre o campo define sua especificidade. Os campos não são espaços com fronteiras rígidas nem são independentes. Articulam-se entre si, cada um se interliga conforme determinados elementos para conhecimento um do outro e da estrutura do espaço social. Um campo articula-se com o outro e com o “geral” social numa relação de conhecimento inter e intra subjetivo.
A sociologia bourdieusiana constitui as idéias de campo social, sociedade, espaço social com a idéia de “habitus”. A análise do indivíduo e da sociedade passa pelo conceito central de Bourdieu: o “habitus”. O “habitus” é composto por “ethus” (designa os princípios ou valores em estado prático) e “hexis” (corresponde às posturas interiorizadas inconscientemente pelo indivíduo ao longo de sua história). Nesse sentido, o “habitus” é a forma pela qual a realidade é percebida como produto da posição e da trajetória social do indivíduo e está em constante reestruturação. O “habitus” estrutura a sociedade segundo o perfil individual e sua relação com o grupo e o campo social. A relação entre o “habitus” e o campo é antes de tudo uma relação de condicionamento, mas é também uma relação de conhecimento ou construção cognitiva, o “habitus” contribui para constituir o campo como mundo significante, dotado de sentido e de valor, no qual vale a pena investir energia.
Bourdieu estuda o sujeito enquanto sujeito socializado, seu papel nesta convivência socializada. O “habitus” seria um conjunto de elementos comportamentais incorporados pelo sujeito para viver determinadas situações sociais e para manter-se socialmente inserido a este mundo social. Os indivíduos que constituem um campo social determinado compartilham interesses comuns que garantem a existência deste campo. Os diferentes campos assumem uma identidade própria que permite o funcionamento do campo com suas regras e intercâmbio simbólico e material.Aqui entra a idéia de capital, que diz de um valor que mantém o campo articulado, definido. O possuidor do capital, de acordo com as regras estruturais de funcionamento do campo social, estabelece sua posição no campo, conforme a quantidade e a qualidade do capital que possui. Campo, “habitus” e capital representam expressões específicas de uma cultura, que constitui conjunto de indivíduos, grupos ou instituições que assumem uma posição em um espaço social e que compartilham interesses comuns.
O conceito de região, desenvolvido no Programa de Mestrado em Letras e Cultura Regional constitui que a idéia de região é uma construção. “Uma região é constituída de acordo com o tipo, o número e extensão das relações adotadas para defini-la, de onde ser possível que as fronteiras se desloquem conforme seja utilizado, com maior ou menor ênfase, um ou outro critério para a sua delimitação.”[6]
Região, neste programa de Mestrado, portanto, não é vista apenas como divisão político-geográfica, mas como uma construção simbólica, constituindo uma rede de relações, como um espaço político-geográfico socialmente construído, é um espaço periférico em relação ao centro.
Pierre Bourdieu anuncia sobre a idéia de região:
“A “régio” e suas fronteiras não passam do vestígio apagado do ato de autoridade que consiste em circunscrever a região, o território, em impor a definição legítima, conhecida e reconhecida, das fronteiras e do território, em suma, o princípio de divisão legítima do mundo social. Este ato de direito que consiste em afirmar com autoridade uma verdade que tem força de lei é um ato de conhecimento, o qual, por estar firmado, como todo poder simbólico, no reconhecimento, produz a existência daquilo que enuncia..”[7]
As idéias de região, tanto de Pozenato, quanto de Bourdieu, desenvolvidas neste programa de Mestrado, não constituem idéias acabadas de uma realidade concreta, são realidades em construção, influenciadas pelos valores simbólicos desenvolvidos em seus contextos.
Assim, penso que as idéias de região, propostas no programa de Mestrado e as idéias de campo social, conforme desenvolvidas por Bourdieu em sua sociologia se interligam. Ambos, campo e região são construções sociais determinadas a partir das relações que se desenvolvem em seu interior e produzem maior ou menor peso, em relação ao centro, conforme o capital, “valor” que possuem em suas características próprias, determinadas pelos outros campos ou regiões, por um outro que a observa ou determina. Região é hoje um feixe de relações em uma rede sem fronteiras.
2) Disserte sobre as relações existentes entre Língua e Identidade Social e (ou) Cultural.
Diversos são os aparatos ideológicos que tornam um sujeito pertencente a determinado grupo pelos processos de socialização: família, escola, religião, partidos políticos, exército, etc. Estes aparatos ideológicos estão relacionados às formações ideológicas vinculadas a diferentes formações discursivas, estas reportam-se a um discurso específico, que está inserido em uma linguagem vinculada a uma ideologia.
A partir do enunciado se depreendem as noções do discurso. O sujeito da enunciação é um sujeito instituído na Análise do Discurso, a partir da linguagem, como ele, através do signo, se apresenta, o modo como o discurso marca o sujeito. O sujeito da Análise de Discurso está constituído na linguagem. No livro Cinq Leçons sur la Théorie[8] de Jacques Lacan, de Nasio, Saussure é uma vítima, quando ele reconhece “a ordem lingüística do significante” (p.24). Mas logo acrescenta que este só é determinado por “três critérios não lingüísticos” (ibid). Atribui a Lacan, post mortem, afirmações surpreendentes sobre Saussure (p.93), e diz que “Lacan respeita a diferença estabelecida por Saussure entre língua e linguagem: a língua é a linguagem falada” (p.73). Saussure nunca fez esta afirmação.
Em psicanálise, o “inconsciente está estruturado como linguagem”, segundo Lacan e “significante é o que representa o sujeito para outro significante”. Logo, as formações discursivas, os contactos de uns com os outros, se dão através de significantes lingüísticos, representantes da “coisa” no inconsciente. Kant diz que “a coisa é incognosível em si mesma”. Lacan, leitor de Freud coloca que a coisa é representada, simbolizada. O inconsciente é da ordem do Real, registro que não diz de si mesmo, só é representado no registro do Simbólico. O inconsciente está no registro do Real, a língua, segundo meu entendimento seria uma das formas que o Simbólico utiliza para fazer as representações inconscientes, transformadas na linguagem.
A língua falada seria o conjunto dos signos utilizados por determinado grupo para que possam se compreender, interagir. Mas a língua, neste contexto, não seria só uma forma de comunicação. Além de transformação do inconsciente em símbolos, ela passa a ser uma marca distintiva de um povo, de um grupo, uma marca identitária, que identifica este grupo para outro, que o diferencia dos demais. Quando passagem de representação simbólica do inconsciente, para marca identificadora de um grupo, a língua a meu ver, muda de registro, ela passa do registro Simbólico (representação significante), para registro Real (marca primordial de um sujeito, no caso, o grupo ao qual pertence). Torna-se então uma marca primordial de identidade social, cultural.
Pensando desta forma, e provando-se desta teoria, seria extremamente complicado para um imigrante, portanto, deixar seu país, um grupo, com suas marcas, Reais e Simbólicas, e inserir-se em outro grupo, formando novas marcas, seria em psicanálise, nascer de novo, ser um outro sujeito, com outras marcações. Daí as formações dialéticas, talvez, as transposições de letras, a tentativa de juntar duas representações lingüísticas e criar uma nova, sua, à semelhança do bebê que aprende a caminhar, a viver, experimentando novas situações, conforme vai aprendendo-as (pensando na teoria da assimilação, acomodação, equilibração de Piaget) vai sabendo de si, vai se constituindo.
Daí talvez, as muitas dificuldades em “traduzir” uma palavra para outra língua, pois carrega muitas outras representações, Simbólicas, mas também constitui marcas Reais, não passíveis de serem ditas, só representadas.
Falar outra língua, ter uma língua é constituir uma identidade social e (ou) cultural, é ter um sentido de pertencimento a determinado grupo, é uma marca identificatória pessoal e grupal.
3) Disserte sobre o conceito de língua funcional em Coseriu, conforme a obra “Noções de Lingüística Geral”.
A obra Noções de Lingüística Geral[9], de Eugenio Coseriu, procura relacionar signo com fatores exteriores, ou melhor, extralingüísticos, afirmando que o sistema lingüístico não é fechado. Isso ocorre quando o sujeito não utiliza apenas a língua, em si, mas também outros artifícios expressivos da linguagem, como os gestos, as diferentes entonações, o uso de sinais ou mímicas.
Coseriu afirma, com convicção, que para entender ou determinar o funcionamento de uma determinada língua, o pesquisador deve levar em conta esses contextos e fatores extralingüísticos, tanto na fala, como na escrita. O autor também coloca que é necessário analisar o uso de fatores culturais e sociais extralingüísticos.
Além disso, Coseriu, em sua obra, estabelece relações entre o estruturalismo – doutrina defendida por Sausurre que considera qualquer sistema como um conjunto de elementos solitários entre si de modo a formar uma estrutura – e a sociolingüística. Para Eugenio, entretanto, a língua histórica é mais que um sistema lingüístico, ela é um “diassistema”, ou seja, um sistema constituído de outros subsistemas (das variedades lingüísticas) – um conjunto complexo de dialetos, níveis e estilos de língua. Coseriu conclui, a partir dessas observações, que a língua histórica não é homogênea e apresenta sempre variedade interna.
Estas variedades lingüísticas não são geradas pelo sistema, são geradas pela relação com os fatores extralingüísticos. Segundo o autor, elas, as variedades, são chamadas de línguas funcionais. As diferenças que compõem a língua histórica pertencem a três tipos de fatores extralingüísticos: “diatópicas”, diferenças geradas por fatores geográficos; “diastráticas”, diferenças entre os estratos sócio-culturais da comunidade lingüística, tais como idade, sexo, profissão, escolaridade, classe; e “diafásicas”, diferenças entre as situações do dia-a-dia, as quais o indivíduo se força a adequar a linguagem. O sistema, conforme Eugenio, é afetado pelo exterior.
Portanto, para Coseriu, não é possível, e viável, descrever uma língua histórica, estruturalmente, como um sistema lingüístico, homogêneo, pois ela contém subsistemas lingüísticos, extremamente, diferenciados.
O autor estabelece, com isso, uma distinção entre língua funcional e língua histórica. A língua histórica é uma língua constituída como unidade ideal e identificada como tal por seus “falantes” e pelos “falantes” de outras línguas,nunca é homogênea. É um conjunto complexo de tradições lingüísticas, historicamente conexas, mas diferentes entre si e, somente em partes, concordantes. A língua funcional, por sua vez, é uma técnica lingüística inteiramente determinada, unitária e homogênea, em três aspectos: um só dialeto em um só nível e em um estilo único de língua, ou seja, uma língua sintópica, sinstrática e sinfásica.
A língua histórica é, portanto, de acordo com Coseriu, um sistema de línguas funcionais. Cada língua funcional tem uma norma, constituída a partir de regularidades. Entretanto, essa norma não se relaciona com a norma culta.
Para Coseriu, a norma é normal. A norma é procurada pela abstração, num conjunto de regularidades. A norma é regular, não é imposta.
Cada língua falada é um idioleto, por cada sujeito; o dialeto é uma abstração. A língua funcional é uma abstração, ela não vê a particularidade dos idioletos. Para descrever uma língua histórica, por outro lado, seria necessário descrever todas as línguas funcionais integrantes dela.
A língua funcional, na perspectiva de Coseriu, é vantajosa por ser homogênea e por ser realizada nos discursos ou textos. Entretanto, apresenta um inconveniente: não pode ser facilmente deduzida dos textos, nem do falar de um só indivíduo, pois todo falante conhece e utiliza mais de uma língua funcional.
Tendo em vista as conclusões do autor, ao fazer-se o estudo de uma determinada língua, devemos realizar um corte sincrônico que atravesse os diferentes subsistemas gerados por fatores geográficos, por diferenças entre os estratos sociais e pela adequação da linguagem às diferentes situações do cotidiano. (Vide esquema abaixo). Portanto, a descrição estrutural da língua, que é uma variedade de fatores, não pode ser apenas sincrônica, mas deve ser também sintópica, sinstrática e sinfásica.
**** ver imagem abaixo ****
[1] BONNEWITZ, Patrice. Primeiras Lições sobre a Sociologia de Pierre Bourdieu. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 22.
[2] Idem. p.38.
[3] idem. p.38.
[4] idem. p.52.
[5] BOURDIEU, Pierre. Espace Social et Genèse des “Classes”.Op.cit.,p.3.
[6] POZENATO, José Clemente. Universidade e Região: A regionalização como... Dissertação de Mestrado.S.Paulo: Universidade Federal de São Carlos, 1995. p.19.
[7] BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. São Paulo: Ditel, 1989. p.114.
[8] NASIO, Juan-David. Cinq Leçons sur la théorie de Jacques Lacan. Rivages-Psychanalyse,1992.
[9] COSERIU, Eugenio. Noções de lingüística geral. Rio de Janeiro: Ao livro técnico, 1980.
VERA MARTA REOLON
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FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA – SÉCULO XX
FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA – SÉCULO XX
1ª Grande Ruptura – Teoria Heliocêntrica
- Revolução Copernicana (1543) – “Alívio” – de Montaigne a Descartes – Tentativa de recuperar a estabilidade perdida
- Abalo quanto ao lugar central do homem nessa ordem universal
- Subjetivismo, concepção de “eu” (razão)
+
2ª Grande Ruptura – Revolução Darwiniana
- Teoria da Evolução (1859) – “o homem não é o ‘rei’ da criação”
+
3ª Grande Ruptura – Revolução Freudiana – Sigmund Freud (1856-1939)
- Interpretação dos Sonhos (1900)
- “Cogito” cartesiano não é mais lugar de acesso privilegiado
SÉCULO XX
Revolução da Informática e Inteligência Artificial: Pensamento – lugar privilegiado do homem?
+
Revolução Biológica – Manipulação Genética – Bioética
SÉCULO XIX
Projeto Moderno – Análise da Subjetividade – Indivíduo como sujeito pensante
- CRISE:
Hegel: necessidade de levar em conta o processo histórico e cultural de formação da consciência
Marx: o que questiona os pressupostos idealistas – enfatiza o trabalho e as relações de produção
+
- CRÍTICA:
Leibniz: valorização da linguagem e da lógica
Kant
Algumas teorias da linguagem do século XIX
Mach (1838-1916): físico, filósofo e teórico – “Não há salvação para o sujeito”
Necessidade de explicar como a mente pode ter acesso ao real – Quanto às Idéias e Representações
|
Linguagem – 2 Direções:
- Processos mentais dependessem da linguagem, de um sistema simbólico (significados)
- Ponto de vista lógico, enquanto estruturas formais independentes da subjetividade , da consciência individual
|
- Alemanha, depois na Inglaterra
Lógica – matemática – Leibniz
Filosofia Analítica da Linguagem – Frege
Russell e Wittgenstein
- A semiótica de Peirce - no EUA
- O Positivismo Lógico – Círculo de Viena
Carnap e Schlick
- A Filosofia das formas simbólicas – neokantiano
Cassirer
- A Hermenêutica na Alemanha
Schleiermacher – Gadamer
- O Estruturalismo Lingüístico – Saussure (1916)
Antropologia de Levi-Strauss (1958)
Contexto cultural francês – Pós-estruturalismo com Louis Althusser, Jacques Lacan, Michel Foucault e Roland Barthes
- A Antropologia Lingüística na Inglaterra
Malinowski
EUA – Sapir e Benjamin Lee Whorf
- A teoria lingüística de Noam Chomsky
Período Contemporâneo:
Herdeiros diretos da Modernidade
Críticos da Modernidade – Nova forma de Filosofar
Herdeiros da Modernidade
a) Fenomenologia – Husserl (França e Alemanha)
Século XVIII – Lambert (“ciência das aparências)
Hegel (“ciência da experiência da consciência”)
- Husserl (1859-1938) inspira-se na idéia de Hegel
- Moravia-Império Austro-Húngaro – Professor Freiburg (Alemanha) – Influenciou Heidegger
Lema: “de volta às coisas mesmas”
Teoria do Conhecimento
Seguidores: Schutz (1899-1959) e Scheler (1874-1928)
- França: Merleau-Ponty (1908-1961) – Fenomenologia da Percepção
b) Existencialismo – França – influenciou pensamento francês do pós-guerra (50-60) – Filosofia, Teatro, Cinema, Literatura
Sartre (1905-1980)
- “mâitre à penser” – anos 60)0
- professor de Liceus – França – anos 40; fundou a revista “Les Temps Modernes”
- discípulo Fenomenologia – A Imaginação (1936) – Esboço Teoria das Emoções (1939)
- Literatura: A Náusea (1938) – Caminhos da Liberdade (1944-49)
- Teatro: As Moscas (1943) – Entre Quatro Paredes (1945)
- Filosofia (Filosofia Existencial): O Ser e o Nada (1943) – O existencialismo é um humanismo (1946)
Primeiros lemas do pensamento de Sartre: “Nós somos o que fazemos do que fazem de nós”
Crítica da Razão Dialética (1960) – afasta-se do existencialismo e das raízes fenomenológicas – adota perspectiva marxista
Marxismo: “Filosofia é inevitável de nosso tempo”
1970 – novo “mâitre à penser” francês: Foucault (1926-1984)
Existencialismo também em:
- Camus (1913-1960): A peste, O estrangeiro. – Mito de Sísifo: “símbolo da inutilidade da ação humana”
- Jaspers, Marcell, Chestov, Buber
c) Filosofia Analítica e Positivismo Lógico: Inglaterra, EUA e Austrália; vertentes na Alemanha, Áustria e Polônia
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Leibniz
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a solução de pensamentos filosóficos: análise lógica da linguagem
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Frege, Rusell e Wittgenstein e o Círculo de Viena: Schlick, Neurath e Carnap
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em 1935: EUA – Universidade Chicago – Quine e Goodman = Skinner
d) Escola de Frankfurt
Adorno, Horkheimer e Benjamin
Teoria Crítica da Cultura e da Sociedade – Retomando a Filosofia de Marx.
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Luta contra o controle e a dominação nos processos naturais e sociais
- 2ª geração da Escola: Habermas – Análise Crítica da Ideologia
Críticos da Modernidade (Ruptura)
a) Filosofia de Heidegger (1889-1976)
Retomada da ontologia – superação do “esquecimento do Ser”
b) Filosofia de Wittgenstein:
- 1º Wittgenstein: Fundamentar o conhecimento da realidade na lógica, na epistemologia
- 2º Wittgenstein: linguagem – jogos de linguagem – “O significado de uma palavra é seu uso na linguagem”.
c) O pensamento pós-moderno
- Estruturalismo de Saussure (1857-1913)
Noções de Estrutura + Noções de Diferença
Toda estrutura é de certo modo lingüística e estabelece relações de significação
- Pós-estruturalistas:
* Lacan (1901-1981) – psicanalista
* Althusser (1918-1990) – teórico marxista
* R. Barthes (1915-1980) – semiólogo e teórico da literatura
* M. Foucault (1926-1984) - filósofo
- Deleuze (1925-1995) – Anti-Édipo – “liberar o desejo”
- Lyotard (1924-) – noção de pós-moderno; novos rumos para o pensamento
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Polêmica com Habermas: “modernidade: um projeto inacabado”.
- Rorty (americano) (1931-) – A filosofia e o espelho da natureza (1979)
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Filosofia deve abandonar sua pretensão a fundamentar o conhecimento e a legitimar práticas éticas e políticas, transformando-se em uma espécie de narrativa, de conversação ou discussão = busca de significado e de esclarecimento, sempre em aberto, sem estabelecer teoria ou sistema.
VERA MARTA REOLON
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terça-feira, 28 de abril de 2020
John Rawls: uma teoria da justiça ONDE FICA WALDRON NISSO???
Para atender à necessidade de entrega de um texto/paper para a disciplina Seminário de Filosofia Política, procuro a seguir estabelecer reflexões sobre a Teoria da Justiça de Rawls e os textos de Waldron, além de outros múltiplos conhecimentos, a partir de um caso particular.
Episódio de Law and Order - Special Victims Unit:
O episódio inicia mostrando um casal saindo de sua casa, brigando, discutindo verbal e fisicamente. A mulher atira objetos no marido. A cena se movimenta para os investigadores sendo chamados para buscarem dados sobre o caso, quando a mulher está a fazer exame de corpo de delito, junto à equipe médica da delegacia de polícia. A mulher reclama que o marido, policial especializado, a está traindo e a machuca, sendo esta sua queixa. Os policiais investigam, então, o caso, com cuidado, pois o investigado, sendo policial, será difícil de ser indiciado. Na investigação, constatam que os dois brigam muito e sempre, sendo que ambos se batem. O marido é chamado e confirma a traição, mas diz que a mulher fica, geralmente, “desequilibrada” e ele a ama, mas não consegue lidar com a situação de outra forma. A traição é contingencial neste caso.
O caso chega à Promotoria de Justiça, que abre processo criminal contra o marido. O caso é importante, porque, para a promotoria, existem muitos casos semelhantes na Justiça Americana, que não são levados adiante, pois dificilmente consegue-se prender policiais agressores.
Durante o andamento do processo, o casal reconcilia-se, e a mulher pede para cancelar o processo. Ela retira o processo contra o marido. A promotora então a pressiona e a “força” para que siga no processo, pois, como já mencionado, o caso é de importância ímpar. Ao final, ouvindo-se as testemunhas e o casal, chega-se ao veredicto: o réu é absolvido parcialmente. A causa, para o casal, é considerada ganha, mas a promotoria se satisfaz, justificando que o “ganho parcial” lança abertura para mudanças na legislação americana para casos semelhantes.
Parto desse caso, para discutir a Teoria da Justiça de Rawls; Rawls está tratando um Estado Político de Direito → Constituição Política.
Pessoa política:
=> Senso de justiça
=> Concepção do bem
Para Rawls, existe uma concepção política de pessoa como pressuposto básico. Pessoa é alguém que pode ser cidadão. Cada pessoa possui uma inviolabilidade. Os direitos fundamentais não são negociáveis.
O 1º princípio dos direitos fundamentais têm prevalência. Eles não são negociáveis por nenhuma vantagem econômica ou política. Em uma sociedade bem ordenada, há uma concepção pública e política de justiça.
As principais instituições fundamentais devem assegurar e contemplar essa concepção pública (e política) de justiça.
Instituição Social → a mais importante é a Constituição política → Sistema Público de regras.
Não é possível um consenso sobre um princípio de justiça, devemos chegar a acordo.
Acordo em torno de princípios para Rawls: a alternativa para acordo é a concepção original.
O estado de natureza de Rousseau, Hobbes e Locke → Rawls o leva às últimas conseqüências.
Seres livres e iguais → há identidade política.
Quem não tem capacidade de perceber a justiça e quem não tem capacidade de ter capacidade do bem não é ético.
Para que se possa ter capacidade política é preciso ter certos princípios básicos: ter concepção do bem e ter capacidade de perceber a justiça.
Princípios Fundamentais → que possam ser objeto de acordo.
Justiça Formal é diferente de Justiça Substantiva
↓ ↓
justiça como regularidade princípios de justiça
↓
aplicação dos princípios
Princípios → Constituição → 1º - deve contemplar os direitos fundamentais
2º - Princípio da diferença
Justiça como equidade deve ser entendida como concepção política de justiça.
A satisfação das necessidades básicas fundamentais está implícita como anterior a qualquer princípio fundamental.
Lista de direitos fundamentais: 1ª fonte: História (em regimes democráticos mais bem sucedidos).
2ª fonte: Analítica
A 1ª fonte opõe Rawls a Kant, que dizia que não podemos olhar a história para estabelecer critérios de direitos fundamentais.
Os princípios devem atender geral, cumulativo, publicidade e universalidade. Ainda, devem estar atentos ao “véu da ignorância” (artifício de representação).
A 2ª fonte: quais são as liberdades fundamentais necessárias para desenvolver senso de justiça → liberdade de consciência e liberdade de associação.
Instituições justas geram senso de justiça e, por sua vez, mais senso de justiça reforçam instituições justas. Assim as instituições justas sustentam uma sociedade justa.
Para Rawls, chega-se a um acordo sob o “véu da ignorância”, que afeta a Posição Original:
*** ver imagem abaixo ***
As leis não podem ferir o passo anterior no organograma.
Na justiça procedimental pura, o procedimento é que determina a justiça. O problema está no critério, o critério é o da maioria(em Rawls – mas, a “singularidade” é PRIMORDIAL! – Direito Individual e Político).
A Constituição é o caso de justiça procedimental não perfeita, porque podemos ter uma Constituição justa com resultados injustos.
Uma legislação injusta pode acontecer, pois o critério é o da maioria (imagine-se em uma estado em que legisladores são “comprados” para ter “base aliada”) .
“O melhor sistema que se pode alcançar é um sistema de justiça procedimental imperfeita” (RAWLS, 1997, p.214).
Princípios se baseiam em valores. Regras sempre se baseiam em princípios. Pode-se não aplicar a regra para não ferir princípios. Apelar para princípios significa fazer escolhas. Rawls não admite apelar para valores morais ou religiosos. Os princípios não são puramente morais, embora sejam fundamentais → distância de Rawls a Kant ( que, mesmo com o imperativo categórico “age de tal maneira que tua ação valha como lei universal” – como nos lembra Hanna Arendt, in A Condição Humana, “tanto Sócrates , com seu dois em um, como Kant, no Imperativo,TINHAM A ÉTICA ANTES”).
Para Rawls, devemos chegar a um acordo, frente a questões morais.
Em Kant → valores abrangentes.
Em Rawls → valores políticos.
O Estado tem a obrigação de zelar pelos direitos fundamentais.
Indivíduos justos desejam, naturalmente, apoiar instituições justas, desejam viver em instituições justas.
Para Rawls, a história nos mostra que é melhor vivermos em sociedades justas, já temos experiência histórica de Estados democráticos justos. A experiência de viver em instituições justas vai desenvolver justiça, cidadãos justos, com senso de justiça. Expressamos nosso desejo de justiça, porque somos livres, temos autonomia racional.
Para Rawls, às vezes, leis injustas devem ser obedecidas, porque são constitucionais.
Às vezes, deve haver desobediência civil, porque ferem a Constituição.
O desobediente civil reconhece uma concepção política de justiça.
Só se fala em desobediência civil em governos democráticos, com princípios de justiça constituídos.
É em nome dos princípios de justiça que ele vai desobedecer (em nome de uma Teoria Geral da Justiça).
Desobediência Civil é um ato contrário à lei, não violento, é público, jurídico, mas ele se submete às conseqüências do ato.
À qualquer violação de um direito fundamental cabe desobediência civil.
Eis o que fica do episódio comentado: a Promotoria usa de artifícios ilegais, ou injustos, com o objetivo de atingir a legalidade, ou melhor, a justiça.
Kierkegaard, considerado por muitos o “pai do existencialismo”, renegado tal título por ele, mesmo ironizado, trazia como boa vida a escolha por um estilo de vida, ético ou estético.
Vivia Kierkegaard nos idos do século 19, em uma Dinamarca afastada da efervescência cultural da Europa, em uma cidadezinha com parcos recursos, mesmo de “diversão” mas, como bom “filósofo” que era, professor na academia, certamente tinha claro a “arché” grega, onde o ético jamais se descola do estético. Uma boa vida, para os gregos, era viver no ethos (altar com objetos dos antepassados em uma peça especial da casa, onde, em um impasse familiar, giravam até encontrar uma solução que jamais sequer envergonhasse, nem mesmo desonrasse quaisquer daqueles que aí estavam), de forma estética, com arte em cada ação. O fazer ético é/foi /será um fazer com arte. Certamente não é a arte da cópia, do roubo, do plágio, da simulação, .., mas a arte atenta aos talentos de cada um. Meus talentos me definem, assim como definem o que porto em todo meu agir, MINHA ARTE, que, atenta à honra e a todos meus antepassados, além daqueles que virão, e estão, É ÉTICA por excelência.
Assim, seguindo outro existencialista, este assumido, Sartre, em que TODA LIBERDADE SOMENTE O É SE VIVIDA COM RESPONSABILIDADE, in “O existencialismo é um Humanismo”, onde , para os que ainda não o haviam compreendido em literatura, “Os Caminhos da Liberdade”, ou “O Ser e o Nada”, ele busca, em uma palestra, inclusive a intelectuais, deixar claro seu pensamento, em uma Europa marcada pela ascensão do socialismo, pela quase que perseguição aos ideais marxistas, como ideais de uma liberdade, até mesmo social, coletiva. Independente de seu comunismo, de seu ideal socialista, nitidamente marxista, na raiz “trotskista” de pensamento, não stalinista, sequer leninista, mas trotskista, intelectual, a raiz teórica da ação socialista, Sartre conclama a LIBERDADE, mas sempre com responsabilidade em todo ato, em toda ação, mesmo na contestação (já que , mesmo esta, é uma “ação”, ato de agir, fazer, dizer, ser! – que seria SER em um mundo impregnado pelo discurso do TER?????-).
Chegamos em um Waldron, se é que chegamos, já que a mim parece, e mesmo verbalizei em alto e bom som que, como autor, o mesmo não passa de um plagiador, de um autor que foge de ser algo, preocupando-se mais em invejar e repetir o que outros já dizem, sem se “responsabilizar” sequer com a montagem de uma teoria, se é que tem propensão intelectual para tal.
Bem, este quer-se um LIBERALISTA POLÍTICO.
Em um mundo em que a política perdeu sequer o sentido, perdida que está em “comprar” votos, partidários, governos, idéias,...., tudo, base aliada para fazer passar corrupção e marginalidade em todas as instâncias, roubalheira exacerbada
Negócios escusos, aliados da “hora”, dinheiro por trás “dos panos”, “por baixo deles, em cuecas”, passando em alfândegas, invadindo divisas, e, pasme-se, nem mesmo presos em flagrante delito, manipulando partidários, poderes, instâncias, instituições, para, casuisticamente manipular até mesmo espaço de propaganda política nas mídias, estas também corrompidas, compradas, seduzidas em horrores implementados a todo instante e com todos, tornando a vida impossível de ser vivida em sua dignidade e, pasme-se mais ainda, EM LIBERDADE.
Aí passo um semestre a ler, um autor de uma liberdade vigiada, que preocupa-se mais em questionar Rawls, Dworkin, Hart e outros, por temer montar uma teoria original sua, se é que tinha condições intelectuais de fazê-lo.
Diz o texto que a questão para Waldron é o “paradoxo” e como resolvê-lo.
Ora, o que é o paradoxo para Waldron, o será para outros??. Certamente o paradoxal para mim,´difere do paradoxal para meu vizinho de classe, para outros teóricos, ou, sei lá.
A qual paradoxo refere-se Waldron?. O paradoxo da vida política, inserida em um liberalismo, em uma igualdade social, em um viver coletivo?. Talvez, mas então deveria tal senhor preocupar-se em estabelecer um discurso centrado, organizado, compreensível, sensível, crescente, inclusive na compreensão de um público que, como já dito, preocupa-se mais em roubar, em tirar o do outro, que estabelecer um discurso próprio. Deveria preocupar-se em estabelecer critérios claros de uma política que se faça ética, sem jamais deixar de lado o fazer estético, de um discurso próprio, arraigado em bases éticas, morais, daí com possibilidades de um coletivo verdadeiro, e não uma aglomeração de “comprado” e/ou de “marginais”, marginalizados sociais, querendo apenas, em atos violentos estabelecer um lugar forçado em us “status quo” inexistente. Que diferença há entre um político corrupto e um “marginalizado” querendo apenas ascender a uma posição que inveja no outro, mesmo que corrupta???.
Estabelecer critérios políticos, de convivência, de coletivo, é pensar em um coletivo verdadeiro, baseado em estruturas reais, em estruturas sólidas de não corrupção, de não roubo, de um discurso sincero, ético, logo sempre estético.. Fora disso é a morte do coletivo. Pode esta morte ser gradativa, mas sempre será a morte do coletivo.
A Filosofia do Direito estudou, estuda a linguagem jurídica, as correlações entre direitos e deveres. Tenho direitos sobre algo. NINGUÈM, COMO DEVER, deve, sequer pode, avançar sobre este direito. E O ESTADO, se ESTADO É, deve PRESERVAR ESTE MÍNIMO DIREITO, como DEVER SOCIAL. Inclusive por cada membro do coletivo, sob pena de MATAR QUALQUER COLETIVO SE NÃO O FIZER!. Ao menos aqui, Waldron acerta, já que diz que NÃO EXISTE DIREITO PAIRANDO SEM UM DEVER CORRELATO!.
Aliás se parto de Sartre, ou mesmo do Evangelho, da Bíblia, todo “talento” individual tem deveres de fazê-los multiplicarem-se. Mas, quem deve multiplicar os MEUS talentos sou eu, jamais o outro, copiando-me. Quem deve preservar, multiplicar, fazer valer meus talentos sou eu, como responsabilidade. E é DEVER do ESTADO garantir-me o direito de fazê-lo.
JUIZES, ou pretensos representantes do poder instituído e da garantia dos direitos devem defender a visão jurídica desta ordem social, para que haja ordem social, inclusive a jurídica que os abarca, a PARTIR DOS CONFLITOS INSTITUÍDOS. Jamais devem deixar que os conflitos se tornem insolúveis, ou deixá-los transitar de forma que fiquem eternamente adiáveis em sua resolução, já que assim estão a matar qualquer ordem social, qualquer possibilidade de manutenção, sequer de criação de um coletivo.Um juiz , na escolha de modelos cínicos, o faz menos por sua correspondência com a real prática legislativa, ou judiciária, do que ao suporte que dão a revisões judiciais, silenciando sobre sua “dificuldade contramajoritária”. A univocidade, se dita a alto e bom som, mire-se em Sócrates, ou mesmo, em alguém mais atual como Bakthin, é ouvida, é necessariamente ouvida. Se não o for, perde-se o coletivo, ética/estética, são necessárias a qualquer ordem coletiva, em qualquer mundo, em qualquer fase temporo/espacial. Se não entendemos isso, não entenderemos jamais nada. Sem sabedoria ética, logo modelo ético/estético, não há vida, individual, menos ainda coletiva.
“Precisamos estar alertas ao uso contínuo da retórica e do ETHOS do modelo do legislador único para descrever uma prática que é essencial e estruturalmente diferente” (WALDRON), qual seja, espero eu, uma prática coletiva, política, ética, essencialmente ÉTICA, ou queremos que o coletivo morra. Se o coletivo morre, não há INDIVIDUAL, logo não há indivíduos.
Não se pode sequer usar uma foto de uma pessoa inconsciente, ou sem direito civil ainda estabelecido, sem o seu absoluto consentimento, isto é o mínimo direito individual que preserva sequer a possibilidade da existência de um coletivo um dia.
Nem mesmo meu pai, minha mãe, jamais poderão utilizar-se de uma fotografia, minimamente, minha, em uma situação qualquer, se não tenho ainda saber sobre o que é, o que resulta, o que causa. Apenas eu, quando sabedora de toda a extensão do uso, posso decidir. E o ESTADO tem o DEVER de garantir este MEU DIREITO, absoluto, único, primordial, APENAS MEU!
“As pessoas não podem (não estão moralmente legitimadas) a concordar com arranjos cujas CONSEQUÊNCIAS elas não podem aceitar”.
Pessoas podem não compartilhar um ideal, mas DEVEM compartilhar a BUSCA DO IDEAL, jamais com roubos, avanços sobre a liberdade individual, invasão da privacidade, plágios, horror, tortura.
A distinção entre lei e costume é parte de todas as grandes teorias do direito. Se uma coletividade está habituada a usar de artifícios para obter algo, o direito tem como dever estabelecer mudanças para reverter o erro em acertos, uma visão nova de “establishment”. Não se pode excluir a análise das concepções de liberdade e SUAS IMPLICAÇÕES. O liberalismo não se pode limitar a apenas uma das diversas concepções de liberdade, mas atentar-se a base estrutural dos conceitos de liberdade, individual, diferenciação entre público e privado, o que é minimamente privativo de uma liberdade individual se quiser um dia estabelecer bases sólidas, estruturais de uma liberdade coletiva, ou mesmo de uma fazer coletivo.
Referências
RAWLS, Jonh. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
REOLON, Vera Marta. mulheres para um homem... para O Homem, A Mulher. Porto Alegre: Edipucrs, 2008.
_______. O Cavaleiro Verde (Blog).
_______. Ética, Cultura, Gênero, Educação e...Literatura (Blog).
_______. e... outros...
_______; OLIVEIRA, Guilherme Reolon. Kandish Íbis Press (Blog).
_______; _______. e... outros...
SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo (in Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1987.
_______. O Ser e o Nada. 20 ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement.
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
Rawls e Sen: JUSTIÇA!
John Rawls: Teoria da Justiça de Rawls; Rawls está tratando um Estado Político de Direito → Constituição Política.
Pessoa política:
=>Senso de justiça
=>Concepção do bem
Para Rawls, existe uma concepção política de pessoa como pressuposto básico. Pessoa é alguém que pode ser cidadão. Cada pessoa possui uma inviolabilidade. Os direitos fundamentais não são negociáveis. O 1º princípio dos direitos fundamentais têm prevalência. Eles não são negociáveis por nenhuma vantagem econômica ou política. Em uma sociedade bem ordenada, há uma concepção pública e política de justiça. As principais instituições fundamentais devem assegurar e contemplar essa concepção pública (e política) de justiça.
Instituição Social → a mais importante é a Constituição política → Sistema Público de regras.
Não é possível um consenso sobre um princípio de justiça, devemos chegar a acordo.
Acordo em torno de princípios para Rawls: a alternativa para acordo é a concepção original. O estado de natureza de Rousseau, Hobbes e Locke → Rawls o leva às últimas conseqüências. Seres livres e iguais → há identidade política.
Quem não tem capacidade de perceber a justiça e quem não tem capacidade de ter capacidade do bem não é ético. Para que se possa ter capacidade política é preciso ter certos princípios básicos: ter concepção do bem e ter capacidade de perceber a justiça.
Princípios Fundamentais → que possam ser objeto de acordo.
Justiça Formal é diferente de Justiça Substantiva
↓ ↓
justiça como regularidade princípios de justiça
↓
aplicação dos princípios
Princípios → Constituição → 1º deve contemplar os direitos fundamentais
2º Princípio da diferença
Justiça como equidade deve ser entendida como concepção política de justiça.
A satisfação das necessidades básicas fundamentais está implícita como anterior a qualquer princípio fundamental.
Instituições justas geram senso de justiça e, por sua vez, mais senso de justiça reforçam instituições justas. Assim as instituições justas sustentam uma sociedade justa.
Para Rawls, chega-se a um acordo sob o “véu da ignorância”, que afeta a Posição Original:
***ver imagem abaixo***
As leis não podem ferir o passo anterior no organograma.
Rawls não admite apelar para valores morais ou religiosos. Os princípios não são puramente morais, embora sejam fundamentais → distância de Rawls a Kant. Para Rawls, devemos chegar a um acordo, frente a questões morais. Em Kant → valores abrangentes. Em Rawls → valores políticos.
O Estado tem a obrigação de zelar pelos direitos fundamentais. Indivíduos justos desejam, naturalmente, apoiar instituições justas, desejam viver em instituições justas
Amartya Sen: Nascido em 1933, em Bangladesh, emigrado para a Índia. Doutor em Economia, por Cambridge. Leciona em Harvard. Recebeu Prêmio Nobel em Economia, em 1998. Trabalho sobre Economia e Bem-estar social. É criador do mernsurador IDH, Índice de Desenvolvimento Humano.
Desenvolveu sua A Idéia de Justiça, a posteriori de Rawls, contrapondo uma idéia de justiça como equidade de Rawls a uma idéia de justiça como potencialidade.
Não basta todos terem acesso aos bens produzidos e ou disponíveis, mas precisa-se, para ter um Estado justo, que as potencialidades, os “talentos” dos indivíduos possam, tenham a possibilidade de ser postos em prática. Seria , qualquer um pode aprender a pintar uma tela, fazendo aula de arte, mas um talento nato, potencialmente pintor, deveria e o Estado tem o DEVER de propiciar-lhe as condições necessárias para colocar seu talento em prática, protegendo-o de roubos, perseguições, etc. ESTADO JUSTO, por excelência.
De mesma forma Sen contrapõe-se a Rawls dizendo que não se deve focar apenas nos bens primários mas, para que tenhamos uma justiça distributiva, uma justiça real, sem a permanência das desigualdades, cidadãos que tem necessidades específicas também deveriam ser atendidos em suas necessidades específicas. O estado deveria garantir-lhes acesso a bens que atendam suas necessidades, independentemente dos bens primários, para atender a suas potencialidades. Ele procura ir além dos mecanismos legais, perguntando qual a qualidade dos bens que estão sendo disponibilizados.
A LIBERDADE PARA SEN SERIA PODER ESCOLHER COM BASE NO ATENDIMENTO E ACESSO A TODAS AS POTENCIALIDADES QUE O INDIVÍDUO TEM.
Referências
RAWLS, Jonh. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
Sen, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2013.
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
O QUE APRENDEMOS COM AS CRIANÇAS QUE NÃO APRENDEM?
Seminário 14 A Lógica do Fantasma – Lições VI a XII
O que aprendemos com as crianças que não aprendem? – Confrontação teórico-clínica
No seminário 14, sobre a lógica do fantasma, Lacan parte do “cogito” cartesiano; “cogito, ergo sum” – penso, logo existo – para desenvolver seu pensamento, especificamente seu seminário. Parte ele da repetição e nos diz que na repetição o que se repete nunca é a mesma coisa. Que quer dizer com isso?
A partir da premissa “o inconsciente é estruturado como linguagem”, sabe-se que o sujeito se constitui a partir do desejo do Outro, Conatus – Spinoziano?, que institui Desejo, passando assim a Sujeito desejante, S. Este Desejo que o sujeito porta, a partir do desejo do Outro, poderia ser em Spinoza o desejo, “apetite com consciência de si mesmo”. Este Outro, a partir da direção de seu olhar para um outro que não o filho, Lugar de Desejo da Mãe, barra o sujeito, instituindo a falta, “[...] o sujeito é, por um lado, barrado daquilo que o constitui propriamente, enquanto função do inconsciente” (LACAN, 2008, p.12), $. Assim, enquanto faltante, este $, buscará no mundo, completar esta falta nunca passível de completude, mas busca necessária à vida. Lacan vale-se da lógica (“[...] há sujeito a partir do momento em que fazemos lógica, i.é., em que temos de manejar significantes” (2008, p.14)), para nos inserir no contexto do entendimento deste inconsciente dos diferentes sujeitos, “um significante é o que representa um sujeito para outro significante”. Assim, não pessoalizamos, mas criamos estruturas lógicas para entendermos o que acontece nestas estruturações dos diferentes e muitos sujeitos. Na estrutura deste $, o Outro permanece, então, sob o prisma lógico, como um significante, que representa o Outro, A, de Autre, para o significante $, significante que fica como marca inconsciente, “[...] a marca é original na função da repetição” (LACAN, 2008, p. 44), que eventualmente aparece como seio, olhar, voz, “[...] é enquanto uma das letras está ausente que as outras funcionam, mas que sem dúvida é, em sua falta mesma que reside toda a fecundidade da operação” (LACAN, 2008, p. 45).
Lacan utiliza-se da lógica matemática e, junto ao cogito cartesiano, onde Lacan ironiza com o uso que fizeram desse cogito, fazendo piada com a expressão especialista, porque o entendimento moderno (aqui moderno da Modernidade) levou o cogito ao estatuto da ciência, ciência dita “americana”, dogmática, fechada, compartimentada e não ao instituído pelo próprio Descartes ao enunciá-lo, mais tarde corrigido com “dubito, ergo sum”, pensar, enquanto operação, dúvida, que me conduz à busca, busca por respostas diversas a minhas indagações, diferença primordial de tudo o que vemos sendo feito com o cogito cartesiano, mesmo, e até agora, na Pós-Modernidade. Desenvolve assim, a partir da dúvida, cogito cartesiano bem traduzido, sua BUSCA PELA VERDADE, verdade essa do $, este que é objeto de estudo da psicanálise. Desenvolve então o estatuto da estruturação deste $, em sua busca pela verdade.
Diz, Lacan, que na presença do sintoma (“eu minto”) deve-se atentar pois ele, sintoma, é uma mentira que chama atenção para a verdade, importância fundamental à práxis analítica, para nos interrogarmos sobre o que é o verdadeiro do qual se trata aí “eu, a verdade, falo” – “[...] é da característica do falso tornar tudo verdadeiro [...]” (LACAN, 2008, p. 72). Ponto de origem este entre o significante e a verdade. “[...] o substituto tem por efeito de sub-situar isso ao que ele se substitui [...]” (LACAN, 2008, p. 92), o que está recalcado no inconsciente vem se mostrar como metáfora do funcionamento do inconsciente no sintoma. No universo do discurso do sujeito não há fechamentos, a verdade se mostra, daí dizermos que a estrutura se dá como efeito de linguagem, efeito da verdade. Chega Lacan no desdobramento do cogito cartesiano no “eu não sou, eu não penso”, porque tudo o que aparece, se desloca, é da ordem do fantasma, como defesa, “[...] e por falta de saber que tudo é deslocado, marginal, na perspectiva que cada fantasma o que pode ser a realidade do inconsciente. Essa alguma coisa que nos falta e que constitui o escabroso daquilo com o qual somos confrontados, não por alguma contingência: a saber, essa nova conjunção do ser e do saber” (LACAN, 2008, p. 110). Nos deslocamentos, lá onde “eu não sou, eu não estou”, vem algo deslocado, marginal, mas que representa meu estatuto de verdade, minha busca no saber para poder ser, tornar-se. É sempre mascarada na mentira que a verdade emerge. No sintoma fazemos uma recusa em ser, escondemo-nos, mascaramo-nos. “[...] há um ser do eu fora do discurso” (LACAN, 2008, p. 123), “eu sou”, não contém nenhum elemento, é um lugar vazio, porque o eu argumentativo do “eu sou, eu penso” não está senão em argumento com o Outro, não é funcionamento mental, mas funcionamento psíquico, marca. As interrogações do ser, cujo limite é o franqueamento do cogito, o que vem em lugar é o Outro, como alienação, alienação essa que no lugar do Outro, é a vontade. “A verdade da alienação só se mostra na parte perdida, que não é outra que o eu não sou” (LACAN, 2008, p. 131). O Outro aparece assim, como lugar da palavra.
Articulando os confrontos teórico-clínicos propostos por Bergès, vemos múltiplos sofrimentos, crianças que chegam aos institutos com singulares sintomas, da escrita, da linguagem articulada, encaminhadas por escolas ainda despreparados à escuta de suas singulares verdades, ainda aprisionadas (as escolas) em discursos cartesianos (aqui dogmáticos, fechados, especializados) que só fazem mascarar ainda mais a verdade, e afastá-los da resolução das charadas propostas pelos diferentes sintomas. Sintomas esses, muitas vezes, quase sempre, trazidos nesta impossibilidade de percepção da castração do Outro, necessária para instituir qualquer estatuto desejante nestes pequenos seres.
S (Á) → se articula aí toda a dialética do desejo → enquanto ela se aprofunda com o intervalo entre o enunciado e a enunciação.
↓
tu não és, logo eu não sou → será que não é a linguagem o mais importuno do amor mesmo? → tu não és senão o que eu sou
Para que possamos encontrar a verdade é preciso que “[...] o olhar → deve ser procurado alhures → naquilo que o viajante quer ver → onde ele desconhece que se trata daquilo que o imobiliza em seu olhar de viajante” (LACAN, 2008, p. 161)
O ler e o escrever passam como sentido do aprender como castração, negação da castração do Outro. Não aprendo porque seria reconhecer a castração do Outro se eu aprender, seria reconhecer-me, lá onde eu faço “tamponamento” à castração do Outro.
Nas confrontações teórico-clínicas, confrontei-me com a clínica das toxicomanias, onde sujeitos envolvidos, perdidos em seus dizeres, trazem sua “verdade” no não assumir a nomeação paterna, não aceitação da lei?. Sujeitos esses que sempre me conduziram a pensar na dobradinha: não assumir a nomeação paterna, não (ter?) a inscrição paterna NP, não respeitar a lei social (drogas são ilícitas, socialmente e ao meu corpo!). “A função paterna vem temperar a primitiva repressão social, interdição da mãe, obrigação primordial, por seu efeito de abertura do laço social sustentado por um ideal de promessa” (BERGÈS, 2008, p.88).
Como nos diz Françoise Dolto: “A castração, quer diga respeito às pulsões orais, anais ou genitais, consiste em dar à criança os meios de estabelecer a diferença entre o imaginário e a realidade autorizada pela lei, nas diferentes etapas citadas” (DOLTO, 1985, p.43) e “Nossa atitude concerne unicamente a esse ser simbólico. Essa é nossa castração de analistas”. (DOLTO, 1985, p. 40).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERGÈS, Jean; BERGÈS-BOUNES, Marika; CALMETTES-JEAN, Sandrine (org.). O que aprendemos com as crianças que não aprendem? Porto Alegre: CMC, 2008.
DOLTO, Françoise. Seminário de psicanálise de crianças. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
_______. Seminário de psicanálise de crianças: tomo 2. Rio de Janeiro: Guanabara, 1990.
LACAN, Jacques. O seminário: livro 14: a lógica do fantasma, 1966-1967. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2008.
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
ONDE PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO PODEM SE ARTICULAR?
“meras coisas não tem direito a títulos” (Danto)
“Os discursos se apagam, mas se fazem presentes em cada ação. Cem linhas e sem linhas [...]”
O SEGREDO: “fazer existir, não julgar” (Deleuze)
Resumo: A estruturação do sujeito. As estruturas psíquicas: neurose, psicose e perversão. O Outro. O significante Nome-do-Pai. A metáfora paterna. A repetição. A alienação. O estatuto do inconsciente. O desejo. O Desejo. A verdade: o sintoma. O fantasma. A linguagem. Marca, corte, cena primária. Relações do pensamento lacaniano com a lingüística, a filosofia, a matemática e a lógica. Descartes, Lacan e o cogito. Spinoza. Jakobson, DNA, significação. A foraclusão, a denegação, o recalque. Deslocamento. A Lei como base para a consciência moral. Psicanálise e educação: aplicações práticas.
Palavras-chave: Lacan; estruturação; sujeito; desejo; fantasma; repetição; alienação.
No seminário 14, sobre a lógica do fantasma, Lacan parte do “cogito” cartesiano; “cogito, ergo sum” – penso, logo existo – para desenvolver seu pensamento, especificamente seu seminário. Parte ele da repetição e nos diz que na repetição o que se repete nunca é a mesma coisa. Que quer dizer com isso?
A partir da premissa “o inconsciente é estruturado como linguagem”, sabe-se que o sujeito se constitui a partir do desejo do Outro, Conatus – Spinoziano?, que institui Desejo, passando assim a Sujeito desejante, S. Este Desejo que o sujeito porta, a partir do desejo do Outro, poderia ser em Spinoza o desejo, “apetite com consciência de si mesmo”. Este Outro, a partir da direção de seu olhar para um outro que não o filho, Lugar de Desejo da Mãe, barra o sujeito, instituindo a falta, “[...] o sujeito é, por um lado, barrado daquilo que o constitui propriamente, enquanto função do inconsciente” (LACAN, 2008, p.12), $.
Não só o sujeito é sempre-já extático-desapropriado e assim por diante, como essa estase
é o sujeito, ou seja, o sujeito é o vazio $ que surge quando uma substância é “desapropriada” por meio da estase. Por mais que pareça procurar pêlo em ovo, essa distinção é crucial: a condição do sujeito é sempre limitada, desapropriada, exposta, ou o próprio sujeito é o nome para essa/dessa desapropriação? A partir da limitação do sujeito, devemos passar ao próprio limite como o nome do sujeito. É por isso que não basta dizer que, em Hegel, há um movimento de “autocastração”, que o sujeito castra a si mesmo – quem é esse Eu? O problema é que esse Eu só surge como conseqüência, como resultado da castração. (ZIZEK, 2008, p.69)
Assim, enquanto faltante, este $, buscará no mundo, completar esta falta nunca passível de completude, mas busca necessária à vida. Lacan vale-se da lógica (“há sujeito a partir do momento em que fazemos lógica, i.é., em que temos de manejar significantes” (2008, p.14)), para nos inserir no contexto do entendimento deste inconsciente dos diferentes sujeitos, “um significante é o que representa um sujeito para outro significante”. Assim, não pessoalizamos, mas criamos estruturas lógicas para entendermos o que acontece nestas estruturações dos diferentes e muitos sujeitos.
O humano é um ser relacional. Logo, é inscrito no discurso pela alteridade. Contudo, para constituir-se sujeito, uma vez que nunca será indivíduo, é necessário que esse alter o olhe. Antes do verbo, então, no início, era a visàge, a imagem especular. Para ser chamado de sujeito, para ser formado enquanto tal, é preciso que um Outro, o grande Outro, o veja e, mais que isso, o olhe com olhar de diferença, com olhar desejante que este, à sua frente, o seja sem-igual. Este Olhar, constitutivo, é que lança desejo, falta no sujeito. E esta falta é condição primordial para que ele seja barrado, à procura de algo, do objeto, que o complete; é essência para que o humano se desenvolva da forma mais “saudável”. É através de seu reflexo, descoberto no Olhar do Outro, que há, com identificação, a noção de eu. Sem esta falta, ele não tem a chave necessária para a entrada no simbólico, na linguagem, no discurso; será um amorfo. Sem essa falta, ele estará completo, sem algo que o impulsione à procura, à vida por excelência.
Lacan concebe o humano como uma estrutura. Essa estrutura é concebida a partir de três registros: Real, Simbólico e Imaginário. O Real é tudo aquilo que não pode ser apreendido, apenas simbolizado, só é conhecido através de suas manifestações no Simbólico. É o inconsciente, o lugar onde os significantes são inscritos, é o profundo, o não-acessível, o sem-nome, o desordenado, o não-interdito. O Simbólico é o sistema de representações, a linguagem, a realidade, baseado nos signos e nas significações, é por onde o sujeito pode ser conhecido, uma vez que só é sujeito, pois é o sujeito da fala. O Imaginário se relaciona com a imaginação, com a faculdade de representar coisas em pensamento, independentemente de sua realidade. É o lugar do eu por excelência, com seus fenômenos de ilusão, captação e engodo.
Acabada, fechada, a estrutura estará quando da chegada à idade adulta; antes, então, é uma estrutura em formação, na infância; e em processo de consolidação, acabamento, na adolescência. A teoria psicanalítica de Lacan, neste sentido, descreve três possíveis estruturas as quais o sujeito, indiscutivelmente, se configurará. São elas: neurose, psicose ou perversão. Os fatores determinantes, os papéis fundamentais na formação da personalidade, sob esta perspectiva, serão o Outro, primordial, e a metáfora paterna, instituída pelo Outro. O campo e o significante Nome-do-Pai, assim, serão os fundantes do sujeito, os alicerces. O sujeito, na verdade, é sujeito a significantes, inscritos ou não pelo grande Outro. Por isso, o Outro, mais que um lugar, mais que um papel, normalmente exercido, ocupado pela mãe, é um campo. E, como todo campo, abarca o que nele está contido. Pois bem, este campo, o Outro, é um campo de inscrição de significantes e o sujeito é o que nele está.
No início, então, o Outro e o sujeito são uma única e mesma coisa. Esta coisa é uma mescla, um todo, um completo, ainda que sem nome. De maneira geral, sujeito e Outro, sujeito e seu campo, estão em simbiose. Mas este todo, esse sem nome, não é. Não sendo, permanece na vida, sem nela nunca ter entrado, até a morte. Se assim permanecido, ausência de desejo, ausência de separação, de corte, psicose o é. Psicose é a estrutura do sujeito sem desejo, do amorfo que nem sujeito é, pois a nada está sujeitado. É a estrutura daquele que intrínseco ao Outro está, pois não foi incluído no discurso – o que só se dá pelo amor lançado pelo Outro – mas foracluído. Sem antes sujeitar-se, não foi lhe permitido viver, foi esquecido, ao mesmo tempo preso.
Mais que uma marca negativa, o psicótico, aquele que foraclui, possui uma não-marca. Essa foraclusão é do Nome-do-Pai, significante da ordem do limite, que introjeta lei interna, ética, princípio e fundamental para a lei externa, a moral social. É deste significante que o sujeito está fora, é ele que o sujeito foraclui, junto com o Outro, que não o mostrou, ao contrário, privou da metáfora. É função do campo, do grande Outro, lançar Nome-do-Pai no sujeito, para que assim ele possa ser nomeado, chamado de sujeito. Esse lançamento, essa inscrição se dá através do desejo, desejo do campo para com o sujeito. Esse desejo, lançado pelo grande Outro, constituirá Lugar de Desejo da Mãe, base para a inscrição da metáfora paterna, Nome-do-Pai.
Não nomeado, não-sujeito, o não-sujeito, o psicótico, o sem-amor, entrelaçará os três registros, uma vez que desatados estão. Não foi permitido o enlace, que só se dá pela falta. Assim, eles estarão sobrepostos, o que causará ora a alucinação, ora o delírio. Sem a chave que o permite entrar no discurso, que possibilita o recalque ou a denegação, ele permanece foracluído, ou seja, não-incluído na realidade. Ele cria uma outra, criada, na verdade, pelo Outro.
O perverso, por outro lado, é o que denega, o que conhece, porém finge não conhecer, nega a metáfora. Ela está introjetada, pois o sujeito foi desejado, mas é denegada, pois está enfraquecida, dilacerada. A lei é presente, mas é posta de lado. O grande Outro a apresenta, mas não a favorece, não a abarca, a coloca às margens: provoca uma violação. Violada à lei, antes inscrita fraca, o sujeito a substitui pelo fetiche, pelo gozo a qualquer preço, pelo voyeurismo. Não há concepção de alteridade, todos são instrumentos de manipulação e gozo do sujeito. O inconsciente do perverso está a descoberto. Há fantasia de plenitude, uma vez que o Real está desprendido da metáfora, do discurso. No lugar de uma simbolização, está imaginarizado. O sujeito é um sujeito da transgressão à norma, à natureza, à lei, que se manifesta através do masoquismo, do sadismo, do narcisismo.
O neurótico, neste sentido, é o “oposto” do perverso: no lugar do ato, o neurótico fantasia. Fantasia com os atos que o perverso faz. Fantasia, pois aqueles estão interditos em seu inconsciente, são impossibilitados. Se realizados, a descuido, são culpáveis, já que a lei está presente a todo instante, a lei é o fio-condutor de sua existência. O neurótico, manifestado na histeria – que deseja a atenção, a busca – e na obsessão, cujas regras estão ato-a-ato, é o sujeito da lei internalizada, é o sujeito que precisa de um simbólico suplementar, ou seja, do sintoma, para que o deseja se mantenha recalcado. O recalque, pois, é o mecanismo de defesa do neurótico. Para ele, o desejo é compreendido a partir da demanda. Ele cria o sintoma, para doá-lo ao Outro, como retribuição ao amor a ele depositado. Ele acredita no Outro, ao passo que o psicótico é o Outro, e o perverso se dá ao Outro, como forma de gozo, como objeto e instrumento deste.
Na estrutura deste $, o Outro permanece, então, sob o prisma lógico, como um significante, que representa o Outro, A, de Autre, para o significante $, significante que fica como marca inconsciente, “[...] a marca é original na função da repetição” (LACAN, 2008, p. 44), que eventualmente aparece como seio, olhar, voz, “[...] é enquanto uma das letras está ausente que as outras funcionam, mas que sem dúvida é, em sua falta mesma que reside toda a fecundidade da operação” (LACAN, 2008, p. 45).
Lacan utiliza-se da lógica matemática e, junto ao cogito cartesiano, onde Lacan ironiza com o uso que fizeram desse cogito, fazendo piada com a expressão especialista, porque o entendimento moderno (aqui, moderno da Modernidade) levou o cogito ao estatuto da ciência, ciência dita “americana”, dogmática, fechada, compartimentada e não ao instituído pelo próprio Descartes ao enunciá-lo, mais tarde corrigido com “dubito, ergo sum”, pensar, enquanto operação, dúvida, que me conduz à busca, busca por respostas diversas a minhas indagações, diferença primordial de tudo o que vemos sendo feito com o cogito cartesiano, mesmo, e até agora, na Pós-Modernidade. Desenvolve assim, a partir da dúvida, cogito cartesiano bem traduzido, sua BUSCA PELA VERDADE, verdade essa do $, este que é objeto de estudo da psicanálise. Desenvolve então o estatuto da estruturação deste $, em sua busca pela verdade.
Diz, Lacan, que na presença do sintoma (“eu minto”) deve-se atentar pois ele, sintoma, é uma mentira que chama atenção para a verdade, importância fundamental à práxis analítica, para nos interrogarmos sobre o que é o verdadeiro do qual se trata aí “eu, a verdade, falo”: “é da característica do falso tornar tudo verdadeiro” (LACAN, 2008, p. 72). Ponto de origem este entre o significante e a verdade.
“[...] o substituto tem por efeito de sub-situar isso ao que ele se substitui [...]” (LACAN, 2008, p. 92), o que está recalcado no inconsciente vem se mostrar como metáfora do funcionamento do inconsciente no sintoma. No universo do discurso do sujeito não há fechamentos, a verdade se mostra, daí dizermos que a estrutura se dá como efeito de linguagem, efeito da verdade. Chega Lacan no desdobramento do cogito cartesiano no “eu não sou, eu não penso”, porque tudo o que aparece, se desloca, é da ordem do fantasma, como defesa, “e por falta de saber que tudo é deslocado, marginal, na perspectiva que cada fantasma o que pode ser a realidade do inconsciente. Essa alguma coisa que nos falta e que constitui o escabroso daquilo com o qual somos confrontados, não por alguma contingência: a saber, essa nova conjunção do ser e do saber” (LACAN, 2008, p. 110).
Nos deslocamentos, lá onde “eu não sou, eu não estou”, vem algo deslocado, marginal, mas que representa meu estatuto de verdade, minha busca no saber para poder ser, tornar-se. É sempre mascarada na mentira que a verdade emerge. No sintoma fazemos uma recusa em ser, escondemo-nos, mascaramo-nos. “[...] há um ser do eu fora do discurso” (LACAN, 2008, p. 123), “eu sou”, não contém nenhum elemento, é um lugar vazio, porque o eu argumentativo do “eu sou, eu penso” não está senão em argumento com o Outro, não é funcionamento mental, mas funcionamento psíquico, marca. As interrogações do ser, cujo limite é o franqueamento do cogito, o que vem em lugar é o Outro, como alienação, alienação essa que no lugar do Outro, é a vontade. “A verdade da alienação só se mostra na parte perdida, que não é outra que o eu não sou” (LACAN, 2008, p. 131). O Outro aparece assim, como lugar da palavra.
Em seu Relatório ao Congresso de Roma, realizado no Istituto di Psicologia della Università di Roma, nos dias 26 e 27 de setembro de 1953, sobre especificamente Função de Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise, Lacan inicia:
Em particular, não se deverá esquecer que a separação em embriologia, anatomia, fisiologia, psicologia, sociologia, clínica, não existe na natureza e que existe uma só disciplina: a neurobiologia à qual a observação nos obriga a acrescentar o epíteto de humana no que nos concerne (LACAN, 1992, P.101).
Essa introdução de Lacan nos prova exatamente o que Jakobson teoriza. Nada nos distingue mais no campo humano de nossa evolução do que o DNA que carregamos, mas principalmente a linguagem. Linguagem intrínseca ao humano, marca singular e distintiva, “unidades significantes mínimas, entidades dotadas de significação”, nas palavras de Jakobson, e marca que nos distingue, já que “o inconsciente é estruturado como linguagem”.
Assim, no Relatório, Lacan diz: “O discurso que se encontra aqui merece ser introduzido por suas circunstâncias. Pois ele delas a marca [...]. Aulo Gélio, em suas Noites Áticas, dava ao lugar dito do Mons Vaticanus a etimologia de vagire, que designa os primeiros balbucios da fala” (LACAN, 1992, p.102).
No texto “O que aprendemos com as crianças que não aprendem?”, os diferentes textos apresentam múltiplos casos de crianças que chegam à clínica psicanalítica com dificuldades de aprendizagem. Especialmente no texto “Escrita e Sexuação”, Michele Dokhan destaca que as crianças que não aprendem “nos trazem um ensinamento não somente sobre sua dificuldade subjetiva, mas também sobre o que podem revelar dos efeitos do discurso social sobre a identidade subjetiva” (DOKHAN, 2008, p.129). Discurso social, ponho-me a pensar, especialmente qual?, o discurso do Outro, Outro singular, mãe que marca “a ferro e fogo” a vida deste ser gerado por ela (carrega seu DNA, mas também sua marca lingüística – boa ou má – que o conduzirá para a vida).
Lacan nos explica, o que “faz” dificuldade ao aprendizado de Giacomo, carregado pela fala da mãe “síndrome neurológica não-identificada” (DOKHAN, 2008, p.129), mãe, aqui, Outro internalizado, importante e importado na alienação da repetição, inconsciente do sujeito, dificuldade gerada na aprendizagem a ser apreendida no contexto escolar.
Inicia Lacan a lição XII, dizendo-nos que “a alienação é a eliminação, rechaça fora do limiar, eliminação ordinária do Outro, limiar de que se trata é aquele que determina o corte no qual consiste a essência da linguagem” (LACAN, 2008, p.207). De que corte se trata? Eliminação do Outro?
A linguagem é emanação do campo do Outro, verdade para o sujeito. Problemas na aprendizagem são sintomas, sintomas que remetem à verdade, qual, onde está? Remete ao campo do Outro, Outro, aqui, sempre, a mãe.
É no crédito que a mãe dá à criança, em função do qual esta lhe faz uma demanda, endereçada a ela, à mãe, que está implicado esse elemento terceiro. E o que esse crédito diz é logicamente articulado à hipótese que faz a mãe: a criança é competente para lhe fazer uma demanda. Com poucos dias de vida a mãe lhe diz: “Você tem frio? Eu vou cobrir você”. Ao mesmo tempo em que a mãe supõe que a criança sae que quer dizer “frio”, supõe também que ela pede para ser aquecida. É através desse golpe de força, assim como propusemos nomear essa operação, que a mãe demanda à criança identificar-se o que ela lhe diz. (BALBO; BERGÈS; 2003, p.37)
Lacan diz da repetição como lugar temporal, do que ficou suspenso da alienação, no inconsciente, da castração, “nesse modo privilegiado e exemplar de instauração do sujeito que é a passagem ao ato” (LACAN, 2008, p.209). Ato que remete ao ato que usamos, corriqueiramente, na linguagem, ato sexual, marca que faz gozo, no que nos diferencia homem/mulher, lugar de desejo, mas também ato que nos remete como marca primeira de nossa constituição, o ato sexual de nossos pais para nos constituir geneticamente, a cena primária.
Lacan então segue e nos conduz ao que faz sublimação ao nosso ato sexual, repetição de um significante que “lá está”, inconsciente, o corte, necessário para que haja sujeito falante. Corte enquanto função significante da castração, marca de algo que representa a falta fundamental.
Copulação exitosa se dá com “maturação genital”. Para que se dê é preciso
***ver imagem abaixo***
Castração do/no Outro, castração simbólica em/no sujeito, possibilidade e premissa básica para a linguagem.
Articulando os confrontos teórico-clínicos propostos por Bergès, vemos múltiplos sofrimentos, crianças que chegam aos institutos com singulares sintomas, da escrita, da linguagem articulada, encaminhadas por escolas ainda despreparados à escuta de suas singulares verdades, ainda aprisionadas (as escolas) em discursos cartesianos (aqui dogmáticos, fechados, especializados) que só fazem mascarar ainda mais a verdade, e afastá-los da resolução das charadas propostas pelos diferentes sintomas. Sintomas esses, muitas vezes, quase sempre, trazidos nesta impossibilidade de percepção da castração do Outro, necessária para instituir qualquer estatuto desejante nestes pequenos seres.
S (Á) → se articula aí toda a dialética do desejo → enquanto ela se aprofunda com o intervalo entre o enunciado e a enunciação.
↓
tu não és, logo eu não sou → será que não é a linguagem o mais importuno do amor mesmo? → tu não és senão o que eu sou
Para que possamos encontrar a verdade é preciso que “[...] o olhar → deve ser procurado alhures → naquilo que o viajante quer ver → onde ele desconhece que se trata daquilo que o imobiliza em seu olhar de viajante” (LACAN, 2008, p. 161)
O ler e o escrever passam como sentido do aprender como castração, negação da castração do Outro. Não aprendo porque seria reconhecer a castração do Outro se eu aprender, seria reconhecer-me, lá onde eu faço “tamponamento” à castração do Outro.
Nas confrontações teórico-clínicas, confrontei-me com a clínica das toxicomanias, onde sujeitos envolvidos, perdidos em seus dizeres, trazem sua “verdade” no não assumir a nomeação paterna, não aceitação da lei?. Sujeitos esses que sempre me conduziram a pensar na dobradinha: não assumir a nomeação paterna, não (ter?) a inscrição paterna NP, não respeitar a lei social (drogas são ilícitas, socialmente e ao meu corpo!). “A função paterna vem temperar a primitiva repressão social, interdição da mãe, obrigação primordial, por seu efeito de abertura do laço social sustentado por um ideal de promessa” (BERGÈS, 2008, p.88).
Como nos diz Françoise Dolto: “A castração, quer diga respeito às pulsões orais, anais ou genitais, consiste em dar à criança os meios de estabelecer a diferença entre o imaginário e a realidade autorizada pela lei, nas diferentes etapas citadas” (DOLTO, 1985, p.43) e “Nossa atitude concerne unicamente a esse ser simbólico. Essa é nossa castração de analistas”. (DOLTO, 1985, p. 40).
Mas é preciso que isso cante
Não posso ser apenas um grito
Escutem chorar dentro de vocês
As histórias do tempo passado.
O grão terrível que elas semeiam
Amadurece de poema em poema
As revoltas começadas
Aragon, Lê Fou d’Elsa
Lê malheur dit, Paris, Gallimard, “Poésie”, 1963.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERGÈS, Jean; BALBO, Gabriel. Há um infantil da psicose? Seminário 2. Porto Alegre: CMC, 2003.
BERGÈS, Jean; BERGÈS-BOUNES, Marika; CALMETTES-JEAN, Sandrine (org.). O que aprendemos com as crianças que não aprendem? Porto Alegre: CMC, 2008. DOKHAN, Michèle. Escrita e sexuação: Giacomo ou o que é ser homem/mulher? In: BERGÈS, Jean; BERGÈS-BOUNES, Marika; CALMETTES-JEAN, Sandrine (org.). O que aprendemos com as crianças que não aprendem? Porto Alegre: CMC, 2008. DOLTO, Françoise. Seminário de psicanálise de crianças. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
_______. Seminário de psicanálise de crianças: tomo 2. Rio de Janeiro: Guanabara, 1990.
JURANVILLE, Alain. Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
LACAN, Jacques. Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1992.
______. O seminário, livro 3: as psicoses, 1955-1956. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
_______. O seminário, livro 4: a relação de objeto, 1956-1957. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
_______. O seminário, livro 8: a transferência, 1960-1961. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
_______. O seminário, livro 14: a lógica do fantasma, 1966-1967. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2008.
______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
MENDONÇA, Antonio Sérgio de Lima. O ensino de Lacan. Rio de Janeiro: CEL, Gryphus, 1993.
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008.
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
terça-feira, 28 de abril de 2020
Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981)
1901: Nasce em Paris, no dia 13 de abril. Filho de uma próspera família católica.
1919: Matricula-se na faculdade de medicina. Paralelamente, estuda literatura e filosofia. Aproxima-se dos surrealistas. Lê Spinoza.
1928: Trabalha como interno da Enfermaria Especial para alienados da Chefatura de Polícia, dirigida por Gaëtan Gatian Clérambault, que mais tarde reconhecerá como seu único mestre na psiquiatria.
1931: Após examinar Marguerite Pantaine, que havia tentado assassinar a atriz Huguette Duflos, escreve sobre o episódio (conhecido como "Caso Aimée") uma monografia que está na gênese de sua tese de doutorado.
1932: Inicia sua análise com Rudolf Loewenstein, que dura, aproximadamente, seis anos e meio. Defende a sua tese de doutorado, Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade.
1936: Participação no seminário de Alexandre Kojève sobre a Fenomenologia do Espírito de Hegel. Início de sua clínica particular. Encontro com Georges Bataille. Sua comunicação sobre o estádio do espelho, durante congresso da Associação Internacional de Psicanálise (IPA) em Marienbad, é interrompida por Ernest Jones, discípulo e biógrafo de Freud.
1950: Início do projeto de retorno aos textos freudianos.
1951: O Seminário. Seminários de textos freudianos: o Homem dos Ratos, o Homem dos Lobos, Dora.
1953: Conferências fundamentais como "O mito individual do neurótico" (em que utiliza pela primeira vez a expressão Nome-do-Pai), "O real, o simbólico e o imaginário" (que coloca suas teorias sob o signo do "retorno a Freud") e "Função e campo da fala e da linguagem na psicanálise" (pronunciada em Roma).
1953-63: O Seminário. O eu, o desejo, os conceitos fundamentais da ação psicanalítica.
1964-69: O Seminário. O ato psicanalítico, o passe: “O psicanalista só pode se autorizar por si mesmo”.
1966: Publicação de Escritos.
1969-72: O Seminário. A sexuação, o gozo, o discurso.
1972-81: O Seminário. O nó borromeano, o Sinthome (sintoma + sant’homem, homem santo)
1974: Inauguração do ensino do Campo Freudiano no departamento de psicanálise criado por Serge Lecraire.
1975: Lançamento de Ornicar?, boletim do Campo Freudiano.
1981: Morre, em Paris, no dia 09 de setembro.
Segundo Lacan, quando alguém nasce, encontra no Outro (A) - que define como o campo da linguagem - um lugar onde inicia suas primeiras significações. Não se trata de um outro propriamente - mesmo que possa vir a ser - senão de um campo simbólico, onde o sujeito por vir recebe seus primeiros significantes: nome, traços, sexuação, etc. Desta forma, o humano constitui-se a partir de um Outro (A). O seu "Eu", enquanto uma imagem do corpo, se estabelece a partir de uma relação com a imagem e os significantes (fala e o desejo) do Outro. O Eu não é inato, ele se constitui numa relação de espelho com o que o outro espera que a criança seja. A partir dai a criança se identifica com o objeto do desejo do outro (falo).
As falas do indivíduo exprimem vários significantes, mas estes acabam por não atingir nenhum significado, na medida em que a estrutura (o eu) é inatingível. Logo, sua individualidade é determinada por uma forma vazia e, para Lacan, impossível de se conhecer. Logo o significante remete a outros significantes.
O signo é arbitrário, o conceito não é criado a partir da coisa, mas sim determina o que é a coisa, logo, nada é explicável empiricamente.
Vivemos no plano da fala, onde o conteúdo é inatingível (plano do simbólico), as imagens (falsas) que temos sobre nós e os outros são o plano do imaginário, e o plano do real é inatingível (estrutura).
Mesmo se chegássemos ao conhecimento de uma dada estrutura, só conheceríamos a forma dessa, e nunca o conteúdo.
Lacan introduziu a questão do desejo que tinha sido escamoteada por Freud como figura clínica principal. O desejo como preenchimento de um vazio estrutural. Portanto a estrutura não é inatingível, mas incontornável. O vazio, esse sim, é passível de sucessivos e intermináveis preenchimentos, sendo esta a questão fulcral da permanente crise do ser humano.
A psicanálise lacaniana visa à auto-experienciação pela vivência da travessia, no processo de análise, dos fantasmas que estruturam as existências individuais. Lacan introduziu a heterogeneidade no processo analítico contra uma uniformidade e pseudo-previsibilidade a que os post-freudianos conduziram a clínica psicanalítica. Lacan foi expulso da Sociedade Internacional de Psicanálise, acontecimento esse que cindiu irremedialvelmente a escola psicanalítica mundial.
Os próprios post-lacanianos dividem-se atualmente em várias associações internacionais, pois Lacan, ao introduzir a idéia de singularidade de cada caso, introduziu também a idéia da heterogeneidade dos vários processos analíticos. Uma das conseqüências práticas são as sessões de duração variável, que causou escândalo entre os psicanalistas ortodoxos e foi a causa que formalmente condicionou o seu afastamento da Sociedade Internacional de Psicanálise.
Mas essa divisão iniciada com o afastamento de Lacan era praticamente inevitável, pois Lacan inaugurou, de fato, uma época nova na psicanálise. Há um ante e um pós-Lacan. Filósofos contemporâneos como Zizek definem Lacan como um filósofo de importância primordial para a compreensão da condição humana. Isso se deve, em parte, à personalidade de Lacan que desde jovem se interessou por filósofos e escritores, que freqüentou artistas como Pablo Picasso e Salvador Dali e cuja corrente avança para além da clínica, constituindo-se em interlocutora de campos como a filosofia, a lingüística, a estética, a crítica literária, a lógica e a topologia. Por outro lado, deve-se observar o momento cultural vivido por um país (França dos anos 50) onde o intelecto ganha força de intervenção pública.
“A criança, interiorizando a Lei, identifica-se com o pai e faz dele seu modelo. A Lei torna-se então libertadora: pois, separada da mãe, dispõe de si mesma, toma consciência do que se deve fazer e se orienta em direção ao futuro. Insere-se no social, na Cultura e entra na linguagem".
"A lei do homem é a lei da linguagem".
"A mulher não existe".
"A verdade não é outra coisa senão o que o saber só pode aprender que sabe ao pôr em ação sua ignorância". (Escritos, Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, p.812).
"A verdade tem estrutura de ficção".
"Mais-além do que o sujeito demanda, mais-além do que o outro demanda ao sujeito, há o que o outro (a mãe) deseja. Insistimos em várias ocasiões no que a dimensão do desejo define: ser situado no desejo do Outro... Poderemos reportar-nos, entre outras coisas, à análise do sonho da "bela açougueira", que cria para si um desejo insatisfeito... e só assume seu desejo sob a forma do de sua amiga".
"Não cederás no que tange ao teu desejo".
"Não há relação sexual".
"Nossa fórmula de que o desejo do homem é o desejo do Outro aponta para essa origem, em que o desejo se constitui como desejo de um desejo".
"O inconsciente é a condição da lingüística".
"O amor é dar o que não se tem".
"O desejo é a essência da realidade".
"O desejo reproduz a relação do sujeito com o objeto perdido".
"... o desejo do homem encontra seu sentido no desejo do outro, não tanto porque o outro detenha as chaves do objeto desejado, mas porque seu primeiro objeto (do desejo do homem) é ser reconhecido pelo outro".
"O estatuto do inconsciente é ético, e não ôntico".
"O eu é o sintoma humano por excelência".
"O olhar é o avesso da consciência".
"O real é impossível".
"O sintoma é a estrutura".
"Penso onde não sou (estou), logo sou (estou) onde não penso".
"Se o desejo do sujeito deve passar pelos desfiladeiros do significante, pois a linguagem existe... Se o Outro é o lugar do desdobramento da palavra - a outra cena -, é necessário colocar que o desejo do homem é o desejo do Outro".
"Toda palavra tem sempre um mais além, sustenta muitas funções, envolve muitos sentidos. Atrás do que diz um discurso, há o que ele quer dizer e, atrás do que quer dizer, há ainda um outro querer dizer, e nada será nunca esgotado".
"Um significante é o que representa um sujeito para outro significante".
“O inconsciente é estruturado como uma linguagem”.
VERA MARTA REOLON
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terça-feira, 28 de abril de 2020
HÁ UM HUMANO NO HOMEM?
Resumo: O homem constituído pela marca desejante está condenado à liberdade de escolha e, com ela, deve representar todos os homens e o que de humano há neles, se é que possuímos humanidade. O desejo como diferença. A racionalidade como disfarce de humano. O amor e o Outro como funções estruturantes do sujeito. O desejo como marca de liberdade. O desejo e a escolha. O homem e a liberdade. O homem e o desejo. O homem e a escolha.
Palavras-chave: homem; humanidade; humano; desejo; escolha; liberdade.
Abstract: The human constituted for the desires mark are condemned to liberty of choice and, with its, need represent all the human and what the human have him, if we have humanity. The desire as difference. The racionality as mask of the human. The love and the Other as structurant functions of the subject. The desire as mark of liberty. Desire and choice. Human and liberty. Human and desire. Human and choice.
Key words: human; humanity; desire; choice; liberty.
Buscamos constantemente responder a grande questão: O que é o humano?
Através do estudo de diferentes autores propostos buscamos este referencial: que faz com que nos tornemos humanos, o que nos diferencia como humanos? Chegamos ao final de estudos diversos e as questões permanecem, porque o homem, em alguns momentos, diz-se humano por possuir racionalidade, porque possui espírito, enfim diferentes conceitos, construções teóricas que, na verdade, nada dizem, são apenas palavras que não trazem respostas às nossas inquietações.
O homem, sua humanidade, é diferente dos animais, os outros animais não racionais? O quê ou quem tem autoridade para dizer que os animais (não humanos) não têm racionalidade?
Basta que eduquemos, que adestremos os animais, mesmo que selvagens, para observarmos neles amorosidade, carinho, dedicação. Se os tratarmos com amor, recebemos amor e dedicação para sempre. O ser humano também precisa desta “amarragem” amorosa, sem esta estruturação, sem esta dedicação ele fica perdido, como um objeto do Outro, este que o gerou. É preciso que o ser humano, ao nascer, ou antes disso, seja desejado, seja marcado com a insígnia do desejo por alguém, que ele tenha sido esperado, querido por alguém, mas não desejado para completar este alguém, e sim que ele seja desejado para viver, ser feliz, progredir, fazer-se. É um processo, e um projeto, de humanização constante, que se inicia com este Outro.
Para que sejamos marcados como desejantes, tenhamos “voz plena de valor”, precisamos da marca primordial de instituição narcísica, que denominamos Amor do Outro. Outro este que faz para nós um papel materno, de mãe instituidora da marca amorosa que levaremos em nossas vidas. Sem esta marca inicial não somos considerados estruturalmente sujeitos, donos de uma identidade, estaremos sempre presos a alguém que nos deve conduzir pela vida, pois esta marca é primordial, necessária em nossa frenética luta pela libertação. Com a marca podemos nos libertar e seguir. Sem a marca estamos presos ao desejo do Outro, às suas imposições.
Freud via nos primórdios da experiência psíquica uma identificação primária que consistiria na “transferência direta e imediata” do ego em formação para o “pai da pré-história individual”, o qual possuiria as características sexuais de pai e mãe e seria um conglomerado de suas funções. (KRISTEVA, 1987, p.36).
A literatura tenta nos ajudar neste processo de entendimento da formação humana e estrutural de nossa identidade narcísica. A história de Ana Terra, retratada em O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, faz-nos pensar sobre esta questão. Ana, enquanto sujeito, libertou-se, viveu seu desejo, foi em busca de algo com força e coragem, assumiu as conseqüências de seus atos, mesmo que isso tenha implicado a dor extrema da rejeição paterna, da afiliação. Assumiu seu filho, viveu, apesar de tudo, até mesmo do sofrimento pela morte de Pedro Missioneiro.
Todo povo precisa de um mito onde se espelhar (que me diga quem sou!), de um lugar a que posso recorrer quando nada mais me resta e devo (preciso!) recriar-me. Surge, então, O Tempo e o Vento (1961) A obra começa determinando a epopéia, partindo de O Continente e nos mostrando quem são os homens e as mulheres gaúchos. O homem aqui representado pelo Capitão Rodrigo Cambará, portador do falo para a guerra, para a disputa, à luta. A mulher: Ana Terra, aquela que sabe ouvir o vento, que adquire nele sua força, força vital para a vida, para agüentar as intempéries que a vida oferece. Rodrigo Cambará, marca masculina; Ana Terra, marca feminina. O Tempo e o Vento narra a saga da família Terra-Cambará, em cem anos de história, principiando na figura de Ana Terra, sua filha Bibiana, que se casa com Rodrigo Cambará e assim sucessivamente, até o século XX e a derrocada da família.
As mulheres gaúchas estão em Ana Terra, e ela nelas. Ana é aquela que sabe ouvir o vento. Vento diferenciado, vento que traz história, dor e prazer. Vento de vida, vento de morte. Vento que também faz marca mítica, pois ouvi-lo implica ter dons premonitórios, dons superiores aos demais, implica ser sobre-humano para o bem e para a dor. A alguém que é semi-deus é exigido mais, geralmente acompanhado de mais dor e não mais prazer, pois à semelhança de Jesus Cristo, homem-Deus “porque mais te foi dado, mais te será exigido”.
O Vento Minuano é que dá força a Ana, é dele que ela extrai vida, ele funciona como falo simbólico, força vital para agüentar as intempéries e viver (“sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando” (VERÍSSIMO, 1995, p.07)).
[...] se a palavra pênis fica reservada ao membro real, a palavra falo, derivada do latim, designa esse órgão mais no sentido simbólico [...] o adjetivo “fálico” ocupa um grande lugar na teoria freudiana da libido única (de essência masculina), na doutrina da sexualidade feminina e da diferença sexual e, por fim, na concepção dos diferentes estádios [...] o falo é um atributo divino [...] Lacan faz do falo o próprio significante do desejo. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.221).
À semelhança das vozes polifônicas de Dostoievski, no olhar de Bakhtin, Érico Veríssimo, transpõe diálogos e pensamentos de Ana com o vento que dizem do não-dito, dizem e dão vida.
a multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes [...] a multiplicidade de consciências eqüipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade. (BAKHTIN, 1997, p.05).
A força de Ana, e sua relação com o vento, não se desfaz nem com as agressões e afastamentos do pai. Ana só se dobra ao amor, em sua relação com “Pedro Missioneiro”, índio/marido, morto pelo pai e irmãos de Ana, porque este a engravida sem casar (embora a pureza dos costumes e da sinceridade amorosa de Pedro para com Ana). Ana ouve além do que era dito. Ana ouve com o coração.
À semelhança de Ana, encontramos Teresa, em O Quatrilho (1996), de José Clemente Pozenato. Teresa é a mulher que busca as respostas, que deseja saber mais sobre a vida, que não se satisfaz com a vida sofrida das mulheres da localidade que aceitam a estrutura do trabalho, da dor, da condição de inferioridade e de insatisfação. Teresa não quer a vida do calar-se e aceitar o que vem. Teresa quer amar, quer conhecer o amor, vivê-lo, vivenciá-lo, quer ser feliz. Ela se casa, é alegre, brinca, resolve os problemas que surgem, é inteligente, luta por melhorias de vida, independente dos ditames sociais, das imposições da lei social hipócrita e mentirosa.
Teresa é aquela que escancara a verdade e a assume com todas as suas conseqüências. Teresa personifica a pessoa que todos desejamos ser: verdadeiros, assumidos em nossas verdades, sem nada esconder, vivendo nosso desejo e sendo aceitos por ele. Daí a obra, e Teresa em especial, serem sempre atuais porque mostram como o amor (quer seja pessoal, dual ou social) deveria ser, enquanto constituinte do próprio ser, de cada um de nós.
Teresa nos apresenta o lugar feminino da cultura de colonização italiana, forte, que sabe o que quer e vai em busca deste querer, carinhoso, sedutor:
Lacan afirma que, na dialética falocêntrica, a mulher representa o Outro absoluto. Há uma divisão do gozo feminino em uma parte que a do homem encarnando o falo para a mulher e uma parte de gozo relativa ao próprio sexo feminino como aquilo que falta no Outro como significante. A mulher é o Outro absoluto, é Deus, para ela e para o homem. Porém, para adorar a si mesma, ela se vale do homem como conector. (MAIA, 1999, p.33).
Ana e Teresa, assim como Antígona (que vai contra a lei moral e segue a sua ética, o seu desejo), representada nas obras de Sófocles, são portadoras de desejo. Desejo enquanto marca instituidora de diferença, enquanto singularidade do sujeito. Desejo que provém do amor transmitido pelo Outro, que é energia vital, pulsão de vida.
Amar é ver no outro o desejo por mim que me constitui. Mas é um engodo, porque o que efetivamente vejo é, na verdade, reflexo do meu desejo pelo outro. Sócrates, na voz de Platão, em O Banquete, usando Diotima como interlocutora, diz que amar é desejar o que ainda não se tem, o de que se é carente, o que se quer conservar consigo. Amor é amor de algo. Amar é o desejo do que é bom e de ser feliz, é o desejo da imortalidade.
Diferentemente de Platão, que concebe o amor como movimento, pulsão, vida, desejo de algo, busca por algo, Schopenhauer encontrou o a priori manifestando-se na Vontade. Como coloca Dumoulié (2005), o nosso conhecimento se acha encerrado no mundo dos fenômenos, portanto de representação, mas nós temos a intuição imediata através do nosso corpo, da essência íntima dos seres e do mundo. Para Schopenhauer, que sofreu influências de Platão e Kant, o mundo é fenômeno, é representação. A Vontade estaria em um mundo de idéias – platônico -, num mundo idealizado, superior, inalcançável, que pode apenas ser simbolizado. A Vontade, entretanto, não é externa, para Schopenhauer, ela está em nós:
A coisa em si, que não podemos conhecer do lado de fora, nós a alcançamos diretamente por dentro, pois ela está em nós. Esta Vontade, da qual a vontade humana é apenas uma manifestação, é um princípio metafísico, sustentáculo de tudo aquilo que é. [...] A expressão “coisa em si” deve ser entendida da maneira mais concreta, como uma Coisa toda-poderosa que habita em cada um de nós, que nos faz viver e nos vai devorando ao mesmo tempo. Por essência é um desejo bruto, cego e insaciável. (DUMOULIÉ, 2005,p.101).
Schopenhauer estabelece uma dupla lei relativa ao desejo: os contrários se atraem e cada um procura no outro aquilo que lhe falta. Desta forma, procura-se um amado que possua aquilo de que se é carente. Aqui há uma conexão com Platão e com Lacan.
Embora Lacan tenha aparentado uma grande distância em relação a Schopenhauer, que ele quase não cita, seu pensamento apresenta inúmeros pontos de contato com o filósofo. A noção de Coisa, tão essencial à teoria lacaniana, cujas nobres origens kantianas e heideggerianas são abertamente reconhecidas, tem ocultas e profundas ligações com a Coisa em si de Schopenhauer, a Vontade de gozo cega e mortal.
Alain Juranville (1987) faz uma diferenciação das estruturas neurose, psicose e perversão, no que concerne ao desejo e ao amor de estrutura:
O psicótico não dá, não quer a relação com o Outro, que suporia que ele entrasse na castração. “A psicose”, diz Lacan, “é uma espécie de falência no que concerne à realização do que é chamado ‘amor’”. Nela, o sujeito quer o gozo absoluto, o que ele efetivamente conhece ao nível de seu corpo. Daí seu narcisismo. [...] [Na perversão] dá-se apenas ao Outro simbólico, essencialmente ausente do mundo. Todos os “outros” humanos, inclusive o próprio sujeito, são para esse Outro instrumentos de gozo. [...] O neurótico precisa, pois, de um simbólico suplementar, ou seja, do sintoma, onde o desejo se mantém como recalcado. (JURANVILLE, 1987, p.363-365).
O que nos torna humanos então, para a psicanálise, não nos deixando objetivar, ou sermos objetivados, é este amor de estrutura, que nos diferencia perante os demais, que nos torna desejantes, desejantes de vida, de felicidade, de busca.
Sartre vai além deste conceito, ele fala do existir humano, do processo da existência humana, como uma construção, construção essa que parte da própria liberdade de ser humano. O homem vai construindo sua existência, a partir da liberdade que possui, liberdade de escolher, conforme seu desejo: “toda verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana” (SARTRE, 1970, p.01).
O humano é constituído pelo Outro. A partir desta marcação estrutural, amorosa, ele pode nomear-se, determinar-se, decidir por si. Inicialmente ele não é nada, é o resultado do desejo deste Outro. Mas é somente através deste desejo que ele poderá desejar, para si, para o mundo.
Sartre, em seu texto O existencialismo é um humanismo (1970), fala desta condição existencial do homem, deste “princípio” que o “abarca” e o constitui:
Em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente, se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. [...] O homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo.(SARTRE, 1970, p.3).
O homem escolhe, a partir de sua vontade, escolha essa original e espontânea, mas também o homem é responsável por suas escolhas. Ele escolhe livre e espontaneamente, e será responsável por seus atos livres. Responsável consigo mesmo e com os demais:
o primeiro passo do existencialismo é o de por todo homem na posse do que ele é de submetê-lo à responsabilidade total de sua existência, [...] não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens. (SARTRE, 1970, p.03).
No texto sartriano, há uma noção de humanidade que extrapola toda a individualidade, todo egoísmo ou todo egocentrismo narcisista que o homem possa carregar, pois ele expõe a liberdade existencial humana como uma responsabilidade que inclui a humanidade inteira: “a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, pois ela engaja a humanidade inteira” (SARTRE, 1970, p.03).
Logo, em Sartre, toda nossa ação é livre, a partir de nossas escolhas, toda nossa ação é uma construção livre de nossa individualidade, uma marca individual de nossa existência, mas ela também é uma responsabilidade sobre a marca que transmitimos como retrato da humanidade toda e “sobre” toda essa humanidade. Essa responsabilidade carrega muita angústia, e daí a afirmação de Sartre de que o “homem é angústia” (SARTRE, 1970, p.04). Não há disfarces para a angústia, pois ela faz parte deste existir humano, de escolhas e de responsabilidade.
O homem precisa recriar-se a cada instante, reconstruir-se, a partir de sua liberdade de escolha, sem apoio, sem ajuda, só e pleno de responsabilidades. Ele precisa inventar-se a todo instante, mas esse “invento” de si deve abarcar, conter toda a humanidade, responder por toda a história humana. Daí que esse homem sente desamparo, ele fica desamparado frente a tudo o que se lhe apresenta: “desamparo e angústia caminham juntos” (SARTRE, 1970, p.07). O desamparo e a angústia o desesperam, e a solidão o acompanha:
O desamparo implica que somos nós mesmos que escolhemos o nosso ser. [...] Quanto ao desespero, trata-se de um conceito extremamente simples. Ele significa que só podemos contar com o que depende de nossa vontade ou com o conjunto de probabilidades que torna a nossa ação possível. (SARTRE, 1970, p.07).
O desespero não deve ser um inibidor de minha ação. Ao contrário, deve me engajar na ação: “não é preciso ter esperança para empreender [...] não deverei ter ilusões e que farei o melhor que puder” (SARTRE, 1970, p.08).
A realidade só existe a partir da ação, o homem só existe à medida que se realiza na ação, o homem é o conjunto de seus atos. No texto Entre quatro paredes (2005), Sartre mostra a condição humana enjaulada, mas nunca isenta da totalidade de seus atos. Inês é o retrato desta condição, já que verbaliza que ali está não por sua condição, mas sim pelo que ocasionou, na totalidade, no decorrer de sua existência com Florence e seu primo. Seduziu, inicialmente, Florence para depois lançá-la com seu olhar perverso sobre o marido, levando o relacionamento de ambos, Florence e o marido, a um desfecho trágico. Diz Inês, entre as quatro paredes do inferno criado por Sartre: “eu sou má: isso quer dizer eu preciso do sofrimento dos outros para existir. Uma tocha. Uma fogueira nos corações. Quando estou completamente sozinha, eu me apago”. (SARTRE, 2005, p.82)
Inês é o carrasco do homem, é o resultado do que o homem faz consigo mesmo, com sua liberdade sem responsabilidade pela humanidade inteira (ou este seria o humano em nós todos?). O que fazemos de nós, de nossas vidas traduz o que somos, de onde viemos, para onde vamos, mas, principalmente, traduz o humano em nós, o “espelho do homem”. No inferno, não havia espelhos, o olhar do outro era o espelho que retratava o ser.
Que fazer de nossas vidas, quem somos, para onde vamos, o que nos diferencia dos animais, se é que algo nos diferencia verdadeiramente, tudo depende de nós: “o destino do homem está em suas próprias mãos” (SARTRE, 1970, p.09).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. São Paulo: Forense, 1997.
DUMOULIÉ, Camille. O desejo. Petrópolis: Vozes, 2005.
FREUD, Sigmund. Edição stantart brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
JURANVILLE, Alain. Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
KRISTEVA, Júlia. No princípio era o amor. São Paulo: Brasiliense, 1987.
LACAN, Jacques. Seminário 7: a ética da psicanálise. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.
_______. Écrits. Seuil, 1966.
MAIA, Ana Martha Wilson. As máscaras d’A Mulher: a feminilidade entre Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 1999.
PLATÃO. O Banquete (Coleção Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1991.
POZENATO, José Clemente. O Quatrilho. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1996.
ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
_______. O existencialismo é um humanismo. In: www.odialetico.hpg.ig.com.br/filosofia/livros/ exhuman.htm. Consulta em: 20 de agosto de 2006. Fonte: L’Existentialisme est un Humanisme, Les Éditions Nagel, Paris, 1970.
SCHOPENHAUER, Arthur. Dores do mundo. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s.d..
_______. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.
VERÍSSIMO, Érico. Ana Terra. São Paulo: Globo, 1995.
_______. O Tempo e o Vento. Porto Alegre: Globo, 1961.
VERA MARTA REOLON
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terça-feira, 28 de abril de 2020
Pensamento Pós-Metafísico: Estudos Filosóficos (Jürgen Habermas)
Metafísica após Kant
“Minhas observações têm preferentemente o caráter de um pré-entendimento sobre o empreendimento comum e os impulsos do filosofar”.
Nos últimos anos mais do que antes, Dieter Henrich se coloca como o defensor de uma metafísica capaz de adquirir consistência após Kant. Esta deve começar com uma teoria de autoconsciência de Kant e Fichte, a fim de absorver em si mesma o som triplamente reconciliador da fenomenologia do espírito, hegeliana, dos hinos de Hölderlin e das sinfonias de Beethoven.
Henrich pretende descrever o empreendimento de uma filosofia pós-kantiana, tomando como contraste a filosofia materialista do pensamento anglo-saxão contemporâneo.
Exige, assim, que se parta da auto-relação e da auto-compreensão do sujeito que conhece e age.
A metafísica, a rejeição do naturalismo e o retorno à subjetividade constituem os tópicos para um filosofar que jamais fez segredo quanto ao seu desejo precípuo.
Essa formulação ainda deixa em aberto o tipo de condições às quais “uma razão interna da própria possibilidade” deveria satisfazer.
A metafísica guarda um nexo interno com a modernidade.
Sob os títulos “auto-consciência”, “auto-determinação” e “auto-realização” desenvolveu-se um conteúdo normativo da modernidade que não pode ser identificado com a subjetividade cega da auto-conservação ou do domínio sobre si mesmo.
Henrich não participa da grande aliança (composta por Leo Strauss, Martin Heidegger e Arnold Gehlen) contra aquilo que em melhores dias se ousava chamar de “as idéias de 1789”. Ele opõe-se a isso.
“Eu concateno minhas questões servindo-me de três tópicos característicos: metafísica, antinaturalismo e teoria da subjetividade”.
Tornou-se costume aplicar à história da filosofia o conceito de “paradigma”.
Apesar de todas as diferenças entre Platão e Aristóteles, a totalidade do pensamento metafísico obedece a Parmênides e toma como ponto de partida a questão do ser do ente – o que o torna ontológico. O verdadeiro conhecimento tem a ver com aquilo que é pura e simplesmente geral, imutável e necessário. Pouco importa que esse pensamento seja interpretado à luz do modelo da matemática como contemplação e anamnese ou segundo o modelo da lógica, como discurso e reflexão – trata-se, em ambos os casos, de estruturas do próprio ente, que se configuram no conhecimento.
A auto-referência do sujeito cognoscente abre o acesso para uma esfera interior de representações, curiosamente certa, que nos pertence inteiramente, a qual precede o mundo dos objetos representados.
Kant tem uma relação ambígua com a metafísica.
Segundo Henrich, deve-se manter a expressão “metafísica” para todo o tipo de elaboração de questões metafísicas que visam a totalidade do mundo e do homem.
Aos olhos de Heidegger, o próprio Nietzsche ainda tem de ser visto como um metafísico, por ser um pensador moderno, sujeito ao princípio da subjetividade.
“Todas as competências da espécie, de sujeitos capazes de falar e de agir, são acessíveis a uma reconstrução racional, na qual se detecta aquele saber prático do qual lançamos mão intuitivamente quando produzimos qualquer realização já comprovada”.
“O que vale para os fundamentos da álgebra, vale também, e com muito mais razões, para os da ética”.
“É questionável a tarefa estritamente esclarecedora da filosofia, voltada para a totalidade da praxis vital”. A filosofia deve possibilitar uma vida “consciente”, clarificada através de um auto-entendimento reflexivo, uma vida “sob-controle” num sentido não disciplinar.
Por trás da disputa verbal – se é possível ou não uma “metafísica” após Kant – esconde-se realmente uma discussão sobre a consistência e a envergadura das velhas verdades que ainda podem ser assimiladas criticamente, mas também sobre o modo de transformação do sentido pelo qual devem passar as velhas verdades no caso de uma apropriação crítica.
“Nós europeus poderíamos entender seriamente conceitos como moralidade e eticidade, pessoa e individualidade, liberdade e emancipação, se nos apropriássemos da substância de pensamento salvífico de proveniência judeu-cristã”.
O filosofar deve ser: “Cada um deve poder reconhecer-se em tudo aquilo que traz a feição humana. Manter vivo e esclarecer esse sentido de humanidade – não através de uma intervenção direta, mas através de esforços teóricos indiretos, detidos”.
Horkheimer – crítica à metafísica. O lance contrário de Horkheimer era inteiramente plausível, porque a crítica da razão e da metafísica descobre a cada passo novas formações da antiga aliança entre a metafísica e o obscurantismo. A filosofia marxista da história, no seio da qual ele tentou levar a cabo essa transformação, não resistiu à crítica.
Essa totalidade do mundo da vida emite constantes problemas, tais como “o que é homem?”. Kant mostra que as questões filosóficas não podem ser enfrentadas pelo pensamento, a não ser por caminhos auto-referentes e, por isso mesmo, antinômicos.
Até o limiar da modernidade, os sistemas de interpretação, nos quais se concentravam respectivamente os atos de auto-entendimento de uma cultura, mantinham uma estrutura homóloga à estrutura global – estrutura de horizonte – do mundo da vida. Até então a unidade inevitavelmente suposta de um mundo da vida construído aqui e agora, de modo concêntrico, em torno de “mim” e de “nós”, estava refletida na unidade totalizante das narrativas míticas, nas doutrinas religiosas e nas explicações metafísicas.
Modernidade: síndrome de validade – de um lado, as culturas de especialistas em ciência, em moral e em direito e, de outro lado, a arte se tornou independente.
Dissociação a partir do século XVIII – Hoje em dia, a filosofia poderia estabelecer critérios de validade próprios, diferentes dos anteriores, apelando para a genealogia, a recordação, a clarificação da existência, a fé filosófica, a desconstrução, etc.
O preço seria a perda de sua credibilidade.
Sobra para a filosofia uma promoção iluminadora dos processos de auto-entendimento de um mundo da vida referido à totalidade, o qual precisa ser preservado da alienação resultante das intervenções objetivadoras, moralizantes e estetizantes das culturas de especialistas.
As três perspectivas pós-kantianas que não admitem mais a metafísica como um pensamento “conclusivo” e “integrador”: a filosofia dispõe apenas de um saber falível; ela deve permanecer teórica; ela se limita na apreensão de estruturas gerais de mundos da vida em geral.
Em Henrich detectamos a convicção, só encontrável no materialismo dialético, de que o pensamento filosófico é determinado, em última instância, por um dualismo, que culmina em duas teorias “últimas”: teorias gerais do espírito e teorias gerais da matéria.
Um sujeito cognoscente ou agente defronta-se com o mundo como se fora uma síntese de todos os objetos ou realidades, ao mesmo tempo em que tem de compreender-se a si mesmo como um objeto entre outros no mundo (ou como um complexo de realidade entre outros).
Na construção da teoria prevalece a posição intramundana ou transcendente do sujeito. Ou o sujeito tenta compreender-se naturalisticamente, a partir daquilo que ele reconhece como processos existentes no interior do mundo. Ou ele se subtrai desde o início a esta auto-objetivação, caracterizando idealisticamente a relação do ser-ao-mesmo-tempo-dentro-e-fora-do-mundo, atualizado na reflexão, como fenômeno capital da vida consciente.
Quem empreendesse o caminho da pragmática da linguagem poderia chegar a conceitos de mundo mais complexos e colocar fora de jogo as premissas, sob as quais se coloca a tradicional problemática corpo-espírito.
Em segundo lugar, a pressão dos problemas do naturalismo não teria se diluído no ar.
As teorias não teimam mais em separar, de uma vez por todas, o inteligível do fenomenal. Elas precisam encontrar uma maneira de combinar entre si Kant e Darwin.
Por sermos sujeitos capazes de linguagem e de ação, nós temos, antes de qualquer ciência, um acesso interno ao mundo da vida simbolicamente estruturado, ou seja, aos produtos e competências de indivíduos socializados.
Teoria do sistema da sociedade: toma como ponto de partida o fenômeno fundamental da auto-afirmação de sistemas auto-referentes em meio a ambientes supercomplexos e objetiva o mundo da vida a partir de uma perspectiva metabiológica – que supera qualquer ontologia.
Luhmann e Maturana trazem a idéia de um processo mundial realizando-se através de diferenças entre sistema e mundo ambiente, coloca de escanteio as premissas ontológicas comuns de um mundo do ente racionalmente ordenado, de um mundo de objetos representáveis, referido a sujeitos do conhecimento, ou de um mundo de estados de coisas existentes e representáveis por intermédio da linguagem. – Teoria de sistemas que se produzem a si mesmos de modo auto-referente.
“Eu temo que a vida consciente do sujeito, em sua dupla posição, já se assemelhe demais à auto-afirmação do sistema – auto-afirmação que mantém os limites – em sua dupla relação: consigo mesmo e com o mundo ambiente”.
“Compartilho com Henrich a opinião, segundo a qual, o fenômeno da auto-consciência não pode ser esclarecido satisfatoriamente pelo caminho de uma análise semântica do emprego de expressões lingüísticas singulares. De outro lado, porém, Henrich abandona a premissa, segundo a qual, a forma de expressões lógicas e gramaticais pode ser esclarecida através de uma teoria da consciência. Ele favorece a tese segundo a qual a capacidade de linguagem e a auto-referência são co-originárias”.
Ao construirmos a teoria da linguagem teríamos que nos decidir, por exemplo, se atribuiríamos a primazia à intenção destituída de corpo, como elemento esvoaçante da consciência, ou se essa primazia caberia ao significado incorporado no médium dos símbolos lingüísticos.
Uma teoria da linguagem pode levar em conta a auto-referência e a forma da proposição e considerá-las equivalentes, a partir do momento em que ela não se orientar mais semanticamente pela compreensão de proposições, mas pragmaticamente, pelos proferimentos através das quais os falantes se entendem mutuamente sobre algo.
As relações recíprocas e interpessoais, determinadas pelos papéis do falante, tornam possível uma auto-relação, que não precisa mais pressupor a reflexão solitária do sujeito agente ou cognoscente sobre si mesmo enquanto consciência prévia. A auto-referência surge de um contexto interativo.
Essa auto-relação, resultante da assunção de perspectivas do agir comunicativo, pode ser analisada através do sistema dos três pronomes pessoais, interligados através de nexos transformacionais, e diferenciada de acordo com o respectivo modo de comunicação.
O sujeito que se refere a si mesmo de modo cognoscente, descobre o si mesmo (Selbst), que ele apreende como sendo um objeto e, sob esta categoria, como algo já derivado, portanto não na originalidade do autor da auto-referência espontânea.
Kierkegaard: reflexão que lança aquele que reflete existencialmente sobre si mesmo na “doença que leva à morte”.
Primeiro: o Selbst só é acessível na auto-consciência; o Selbst da subjetividade é apenas a referência referida a si mesma. Segundo: tal referência deve ter sido colocada por si mesma ou colocada através de um outro.
O Selbst do homem existente constitui uma referência deduzida, colocada e, deste modo, algo que, ao referir-se a si mesmo, refere-se a um outro.
As interpretações apontam para uma dimensão religiosa e para uma linguagem que talvez seja a da velha metafísica, a qual, porém, ultrapassa a posição que a modernidade atribui à consciência.
O Selbst da auto-referência produzida performativamente, através da assunção da perspectiva do ouvinte por parte do falante, não é introduzido como objeto do conhecimento, como acontece na referência da reflexão, mas como um sujeito que se forma na participação em interações lingüísticas e que se manifesta na capacidade de falar e de agir.
Segundo Mead, nenhuma individuação é possível sem socialização e nenhuma socialização sem individuação. É por isso que uma teoria da sociedade, que reproduz essa idéia de modo pragmático-lingüístico, precisa romper também com aquilo que se costuma chamar de “rousseauísmo”.
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
Abril/2006
terça-feira, 28 de abril de 2020
PROBLEMAS DA POÉTICA DE DOSTOIEVSKI
A teoria de Bakhtin –uma teoria revolucionária: os personagens de D. revelam uma notória independência interior em relação ao autor na estrutura do romance, que permite, em certos momentos, até rebelar-se contra seu criador. A representação destes personagens é, sobretudo, uma representação de consciências, de uma interação de consciências, consciências isônomas e plenivalentes, que dialogam entre si, interagem, preenchem com suas vozes as lacunas e evasivas deixadas por seus interlocutores, mantêm-se imiscíveis, enquanto consciências individuais que não se objetivam.
Sobre a visão polifônica: Para ele a polifonia é o discurso do diálogo inacabado; não é possível dizer tudo sobre uma época por mais que dela se saiba.
Sobre a visão e concepção filosófica: “...no mundo ainda não ocorreu nada definitivo, a última palavra do mundo e sobre o mundo ainda não foi pronunciada, o mundo é aberto e livre, tudo ainda está por vir e sempre estará por vir...”
Introdução: Dostoievski criou um tipo inteiramente novo de pensamento artístico, a que chamamos convencionalmente de tipo polifônico.
O Romance polifônico de Dostoievski e seu enfoque na crítica literária:
Neste capítulo, Bakhtin parte do trabalho de diversos estudiosos de Dostoievski e busca compreendê-los e criticá-los. Para uns pesquisadores, a voz de D. se confunde com a voz desses e daqueles heróis, para outros, é uma síntese peculiar de todas essas vozes ideológicas, para terceiros, aquela é simplesmente abafada por estas.
“A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes (plenas de valor, que mantêm com as outras vozes do discurso uma relação de absoluta igualdade como participantes do grande diálogo) constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoievski.”
“a multiplicidade de consciências eqüipolentes (consciências e vozes que participam do diálogo com as outras vozes em pé de absoluta igualdade; não se objetivam, isto é, não perdem o seu SER enquanto vozes e consciências autônomas) e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade”.
A consciência do herói é dada como a outra, a consciência do outro mas ao mesmo tempo não se objetiva, não se fecha, não se torna mero objeto da consciência do autor.
A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena como a palavra comum do autor; não está subordinada à imagem objetificada do herói como uma de suas características, mas tampouco serve de intérprete da voz do autor.
O Romance polifônico por Dostoievski criado não teve precursores.
Vyatcheslav Ivánov: define o realismo dostoievskiano como o realismo que não se baseia no conhecimento (objetivado) mas na penetração. Ivánov mostra uma interpretação puramente temática e negativa...-> a afirmação (e não-afirmação) do “eu” do outro pelo herói é o tema das obras de Dostoievski.
Askóldov: “o crime nos romances dostoievskianos é uma colocação vital do problema ético-religioso. O castigo é uma forma de sua solução, daí ambos representarem o tema fundamental da obra de Dostoievski.” -> Askóldov “monologa” o mundo artístico de D., transfere o dominante desse mundo a uma pregação monológica e com isto reduz as personagens a simples ilustrações dessa pregação.
Para Grossman Dostoievski coaduna os contrários.
Bakhtin: o problema gira em torno da última dialogicidade (ciência do diálogo), como o todo da interação entre várias consciências dentre as quais nenhuma se converteu definitivamente em objeto da outra.
Kaus: D. é multifacético e imprevisível em todos os movimentos do seu pensamento artístico, suas obras são saturadas de forças e intenções que, pareceria, são separadas por abismos intransponíveis.Para Kaus o mundo de D. é a expressão mais pura e mais autêntica do espírito do capitalismo. => As explicações de Kaus são corretas em muitos sentidos. O romance polifônico só pode realizar-se na época capitalista.
Bakhtin ainda observa e critica os trabalhos de V. Komaróvitch, Engelgardt, V. Kirpótin..
“D. via e pensava seu mundo predominantemente no espaço e não no tempo” (coexistência e interação). “Seu herói é o homem... o homem no homem..” “...para Dostoievski tudo na vida é diálogo, ou seja, contraposição dialógica..”
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
Para introduzir um artigo e lançar importância sobre as questões ali expostas e não.....
Bem....escrevemos o artigo abaixo pelos idos de 2007...ou algo assim....para ser publicado em um LIVRO SOBRE ONCOLOGIA.....
não é que tanto não publicaram (ou vai-se saber!!!!) o tal livro....sem nos dar qualquer informação....mas também.....SEM QUALQUER ÉTICA.......USARAM NOSSO ARTIGO EM SALA DE AULA..............SEM NOS PEDIR QUALQUER AUTORIZAÇÃO.............SEQUER NOS INFORMAR DO QUE FAZIAM..........
na ACADEMIA (a de PLATÃO!!!!- coitado, se remexe no túmulo!!!)......
e ficamos sabendo por alunos.......disso aí!!!!
professores?????.....realmente!!!!!!!!!
Mais interessante é descobrir que tais (fofocas!!) estão em Brasília.....e nós........
Vera Marta Reolon MTb 16.069 CRP 07/7654
O artigo:
Psico-oncologia: a psicologia como prevenção e tratamento do câncer
Nada lhe posso dar que já não exista em você mesmo. Não posso abrir-lhe outro mundo de imagens, além daquele que há em sua própria alma. Nada lhe posso dar a não ser a oportunidade, o impulso, a chave. Eu o ajudarei a tornar visível o seu próprio mundo, e isso é tudo.
Hermann Hesse
Psico-oncologia é a ciência que visa utilizar o saber psicológico em questões relativas ao câncer, sejam elas de ordem teórica ou prática, preventiva ou de tratamento. Desta forma, é um aporte à Oncologia, uma vez que, parte deste estudo, contribui essencialmente à clínica do câncer.
A psico-oncologia surge como solução à separação mente-corpo, originada com René Descartes, à medida que pensa e analisa o sujeito holisticamente, ou seja, como um todo, de forma que a saúde é resultado de um equilíbrio. Assim, a psico-oncologia é derivada dos estudos da psicossomática, pois entende que fenômenos físicos possam ser conseqüências de traumas emocionais e vice-versa.
A inserção do psicólogo na equipe multidisciplinar, que trata do paciente com câncer, passa a ser oficial a partir da Portaria 2.535, do Ministério da Saúde, de 14 de outubro de 1998. Essa portaria determina a presença obrigatória de psicólogos nos serviços de suporte, como um dos critérios para cadastro de clínicas de oncologia no Serviço Único de Saúde.
O psicólogo, contudo, começou a estar presente nessas equipes na década de 70. Na época, atuava como intermediador, uma vez que tinha o objetivo de auxiliar o médico a informar pacientes e familiares quanto ao diagnóstico do câncer, uma dificuldade ainda constante na rotina dos profissionais da saúde. Entendida, algumas vezes, como uma especialidade da Oncologia, a Psico-oncologia estuda as dimensões psicológicas presentes no diagnóstico do câncer. Segundo Holland (1990), ela procura analisar
1) o impacto do câncer no funcionamento emocional do paciente, sua família e profissionais de saúde envolvidos em seu tratamento; 2) o papel das variáveis psicológicas e comportamentais na incidência e na sobrevivência ao câncer (p.11)
Gimenes (1995), levando em conta a realidade brasileira, formulou uma definição da Psico-oncologia, quando da fundação da Sociedade Brasileira de Psico-oncologia. Segundo ele, a Psico-oncologia representa a área de interface entre a Psicologia e a Oncologia e utiliza conhecimentos educacionais, profissionais e metodológicos provenientes da Psicologia da Saúde para aplicá-los:
1º) Na assistência ao paciente oncológico, sua família e profissionais de Saúde envolvidos com a prevenção, o tratamento, a reabilitação e a fase terminal da doença;
2º) Na pesquisa e no estudo de variáveis psicológicas e sociais relevantes para a compreensão da incidência, da recuperação e do tempo de sobrevida após o diagnóstico do câncer;
3º) Na organização de serviços oncológicos que visem ao atendimento integral do paciente, enfatizando de modo especial a formação e o aprimoramento dos profissionais da Saúde envolvidos nas diferentes etapas do tratamento (p.46)
Como suporte à oncologia, o psico-oncologista atua no tratamento do paciente com câncer, com vistas à melhora de sua qualidade de vida, ao prolongamento desta, ao aumento de sua auto-estima. O psicólogo atuante na equipe oncológica tem por principal finalidade ajudar o paciente em sua auto-compreensão, no entendimento de sua patologia e num prolongamento de sua vida saudável.
O psico-oncologista pretende também ser o profissional que escutará os anseios dos familiares do paciente, já que por receio ou compaixão, não expõem a este suas dúvidas, suas particularidades e seu sofrimento em toda a situação vivenciada. É nos grupos de apoio e nos atendimentos individuais que, muitas vezes, os familiares se sentem mais bem acolhidos e, com isso, propiciam ao paciente um melhor andamento do tratamento e uma melhor qualidade de vida.
Nas equipes de oncologia, o psicólogo desempenha um importante papel quando serve de apoio também aos profissionais que ali trabalham. Médicos, enfermeiros, nutricionistas e terapeutas ocupacionais que convivem com o paciente com câncer estão em constante relação com a morte – embora esta seja uma realidade que vem mudando, à medida que a área de Ciências da Saúde avança em seus estudos. A morte, não se pode negar, é um tabu e um fator desconfortável, desconhecido, na vida humana e, por ser um “buraco negro” na psiquê humana, mobiliza sentimentos múltiplos em todos: pacientes, familiares e também, naturalmente, os técnicos envolvidos no processo.
Psicologia e Câncer
Toda palavra tem sempre um mais além, sustenta muitas funções, envolve muitos sentidos. Atrás do que diz um discurso, há o que ele quer dizer e, atrás do que quer dizer, há ainda um outro querer dizer, e nada será nunca esgotado.
Jacques Lacan
Estudos recentes demonstram que o câncer e as enfermidades oncológicas, caracterizadas pela anormalidade das células e sua divisão excessiva, têm causa multifatorial. Assim, predisposição genética, exposição ambiental de risco, contágio por vírus, uso de cigarro, ingestão excessiva de álcool e outras substâncias psico-ativas ou alimentícias cancerígenas ( os tais estabilizantes, edulcolorantes e tais!- isso aí já se estudava nos anos 70, em aulas de química!), dentre outros, são fatores que contribuem para o desenvolvimento do câncer. Atualizando para os dias de hoje (2018) pensamos inclusive no uso de Lítio e Silício, ligados especialmente ao uso de celulares e computadores. Cuidado, isso já era fonte de pesquisa nos idos de 1950!!!!!!
Pesquisadores também vêm demonstrando que determinados estados emocionais, traumas e situações psiquicamente não resolvidas causam modificações nas taxas hormonais e no sistema imunológico. Cientistas acreditam que a depressão e o estresse são fatores amplamente relacionados ao câncer, pois contribuem para a formação de tumores. Pensa-se hoje que muitos pacientes como que “desejam” um câncer, “fazem“ esta “ferida” no corpo, para dar conta de uma dor maior que carregam em suas almas.
Desta forma, a presença do psicólogo é indispensável na clínica oncológica. Grupos de apoio e psicoterapia com pacientes e familiares são importantes antes, durante e após o diagnóstico de câncer. O psicólogo propicia que o paciente e os que o rodeiam possam lidar melhor com a situação-problema, compreendam o funcionamento da doença e atuem de forma que o tratamento se desenvolva satisfatoriamente.
Sabe-se, hoje, que cerca de 60% das formas de câncer são passíveis de prevenção, o que torna importante uma política social de saúde, no sentido de orientar a população na busca de uma vida mais saudável, de realização pessoal, profissional, familiar, de ambientes sociais agradáveis, de uma leveza maior na condução da vida. A atuação do psicólogo, em suas diferentes modalidades – grupos de apoio, psicoterapia individual, aconselhamento, reabilitação – tem se mostrado relevante e essencial na clínica oncológica. A transmissão do diagnóstico, a aceitação do tratamento, a obtenção de uma melhor qualidade de vida são aspectos que incidem sobre a psicologia. A aceitação da morte, por parte dos pacientes terminais e de seus familiares, é outro fator que requer a figura do psicólogo.
Pesquisas da área mostram também que a ajuda psicológica às famílias de pacientes com câncer, sofredoras, com suas particularidades, suas angústias e seus medos, tem sido considerada essencial, uma vez que as auxiliam no despreparo frente à doença. O apoio familiar é de extrema importância para o paciente.
Os profissionais das Ciências da Saúde, por sua vez, quando exercem determinada função na clínica oncológica, responsáveis por tratamentos invasivos, que infringem grande sofrimento e nem sempre levam à cura e/ou à recuperação, também necessitam de apoio psicológico. Esses profissionais lidam, constantemente com situações de morte e apresentam, na maioria das vezes, um alto nível de estresse.
Psico-oncologia e a atualidade
A psico-oncologia ainda é encarada, por certos profissionais, como uma especialidade sem fins, inútil. Os seguidores do modelo biomédico não a aceitam, pois entendem que o câncer e suas origens não têm relação com o emocional e o psíquico do paciente. A psico-oncologia, nestes casos, é contestada através de pesquisas sobre mutações genéticas e alterações moleculares. Quando psicopatologias estão presentes no paciente oncológico, os seguidores desse modelo as tratam com psico-fármacos, desvalorizando o tratamento psicoterápico e psicológico, que poderia auxiliar, e muito, nessas enfermidades.
Carvalho (2002) questiona e põe em xeque o modelo biomédico que desconsidera a Psiquiatria Psicodinâmica e a Psicologia como ciências importantes na clínica oncológica:
por que uma determinada célula, em determinado momento, sofre uma mutação que a leva a uma proliferação inadequada e descontrolada? Por que em situações de exposição a elementos químicos altamente cancerígenos algumas pessoas desenvolvem um câncer e outras não? Por que nem todos os fumantes desenvolvem um câncer, sendo o cigarro comprovadamente cancerígeno? Através exatamente de que processo ocorre a interferência do sistema imunológico no câncer? O que explica o efeito placebo? E as remissões espontâneas, conhecidas por todos os médicos? Qual o papel da fé nas curas inexplicáveis?
O autor acrescenta, ainda, que estas e outras perguntas só serão respondidas através de uma compreensão ampla do ser humano. Isso porque o diagnóstico de câncer tem inúmeras implicações. Ele traz a idéia de morte, ainda que, atualmente, a cura tem acontecido mais. A perda de cabelo, quando da quimio e da radioterapia, a figuração abatida, os efeitos colaterais, os estigmas, a depressão, a ansiedade, o medo, a revolta, a insegurança, as alterações de humor, a perda da autonomia, entre outros aspectos, são importantes fatores que conduzem ao sofrimento, desencadeiam processos emocionais, com problemáticas psíquicas e que, logo, exigem a presença do psicólogo na clínica oncológica.
Carvalho aponta também as diferenças de abordagens e linhas teóricas dos psicólogos, uma vez que psicanalistas, psicoterapeutas cognitivos, existencialistas, humanistas, comportamentais, transpessoais, dentre outros, todos, podem atuar e atuam na Psico-oncologia. Isso, contudo, leva a questões:
deve-se focalizar o câncer e suas conseqüências, em uma terapia breve focal, ou buscar nas origens da personalidade do paciente, explicações para o próprio desenvolvimento do câncer? (CARVALHO, 2002).
O autor questiona, ainda, a possibilidade de haver uma determinada personalidade típica do paciente oncológico. Vamos mais além e perguntamos se há uma estrutura clínica particular deste tipo de paciente. Será que existem fatores emocionais infantis que incidem sobre esta patologia? Ou determinados traumas que levam ao seu surgimento? Seu desenvolvimento seria desencadeado por outras psicopatologias, muitas vezes encobertas por sintomas físicos? Ainda, a abordagem do profissional de psicologia, sua linha teórica, importa menos do que efetivamente escutar o paciente e atendê-lo, ouvi-lo até onde ele quiser falar, escutá-lo com o amor necessário a levá-lo a conhecer-se, respeitar-se e, por conseqüência, viver melhor consigo mesmo e com os que o rodeiam.
Ainda não se tem pesquisas e conhecimentos que co-relacionem processos psicológicos com o câncer. Grande dificuldade de auto-afirmação, raiva não expressa, ansiedade e sentimentos reprimidos, profunda desesperança e infâncias marcadas por negligência, abandono e isolamento, com fortes sentimentos de perdas são elementos apontados por diferentes autores (Le Shan, 1997; MacDougall, 1991; Marty, 1993; Temoshok, 1992; e outros) para o aparecimento e o desenvolvimento do câncer.
A motivação emocional tem sido o fator mais citado e lembrado como essencial pelos pacientes sobreviventes do câncer para a sua cura. Pouco conhecimento se tem, contudo, do papel da psique na clínica oncológica. Este e outros desafios estimulam a criação e o desenvolvimento de pesquisas em Psico-oncologia.
Siegel, em seu artigo “O que os médicos devem saber” (1997), descreve a importância de se perguntar ao paciente o que ele está sentindo. E o mais importante: ouvir a sua resposta, escutá-la realmente. Não podemos desvincular o físico, o psíquico, o emocional e o espiritual, uma vez que o ser humano é um só, a integração das partes. Segundo Siegel, as doenças que ameaçam a vida são necessariamente transformadoras. Devemos, assim, compreender o paciente como um todo, apoiando-o nas transformações que surgirem com o câncer, bem como ouvi-lo, aprender com ele. É essencial que lembremos que estamos cuidando e tratando de um ser humano e não apenas da enfermidade que ele, neste momento, carrega e suporta, com sofrimento. Eis a principal contribuição da Psico-oncologia para a clínica do câncer.
Referências bibliográficas
CARVALHO, M.M. Psico-oncologia: história, características e desafios. Psicologia USP, 13 (1), 151-166, 2002.
GIMENES, M.G. Definição, foco de estudo e intervenção. In: CARVALHO, M.M. Introdução à psicooncologia. Campinas: Psy, 1994.
GUIMARÃES, J.R.Q. (Org.). Manual de Oncologia - Libbs. 2 ed. São Paulo: BBS, 2006.
HOLLAND, J. Historical overview. In: HOLLAND, J.; ROWLAND, J. (Eds.). Handbook of psychooncology. New York: Oxford Press, 1990.
LE SHAN, L. You can fight for your life: emotional factors in the causation of cancer. New York: Evans, 1997.
MARTY, P. A psicossomática do adulto. São Paulo: Artes Médicas, 1993.
MCDOUGALL, J. Teatros do corpo: o psicossoma em psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
SIEGEL, B. O que os médicos precisam saber. Advances, 13 (1), 1997.
TEMOSHOK, L. The type C connection: the behavior links to câncer and your health. Nwe York: Ramdom House, 1992.
UICC – União Internacional Contra o Câncer. Manual de Oncologia Clínica. 8 ed. São Paulo: Fundação Oncocentro de São Paulo, 2006.
Vera Marta Reolon - MTb 16.069 - CRP 07/7654
Guilherme Reolon de Oliveira - MTb 15.241 - MTb 1127